Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


30.6.11

Nanquim (28,5x21 cm)
Guache (20x28 cm)

20.6.11

No Odre


Deus não olha espelho
não vê graça no perfeito
belo, eterno, pleno e calma
não está nem aí pra alma
Deus ama o corpo nojento.

Põe sua mensagem num odre
que o corpo carrega dentro
para ser sorvida gole a gole
a cada gole um segredo
para o destino dos homens.

O corpo é seu passatempo
o corpo é seu descontrole
o corpo é seu corpo pobre
com um odre abastecendo
todo desvio do fundamento.

O povo se debate nos obstáculos
e diz que tudo é acaso ou sorte
Ele logo ajusta o oráculo
e renova o néctar dos odres
–acha a vida um espetáculo.



12.6.11

Colagem com papel de seda pintado (24x33 cm)
Madrugada em Ouro Preto

7.6.11

O Gosto



Político gosta de aparecer
artista de televisão
corrupto de se esconder
ginecologista de discrição.

Fotógrafo gosta de ângulo
arquiteto de régua T
bissexual de triângulo
sexóloga de ponto G.

Filósofo gosta de ética
madrasta de moral
madame de etiqueta
bacharel do formal.

Bailarino gosta de espelho
estrela de atraso
vedete de vermelho
poeta de acaso.

Jurista gosta de gramática
humorista de política
empresária de ginástica
empresário de polícia.

Modelo gosta de preto
noiva de buquê
gordinha de negro
gueixa de saquê.

Ensimesmado gosta de si
adoentado de dó
enciumado de ti
enrolado de nó.

(E onde eu estou que não sou
se mal gosto do bom gosto
e até aposto no mau gosto?)

*

Poeta gosta do maldito
escritor da cultura
intelectual do erudito
pintor da ruptura.

Pintor gosta da História
cantor do presente
compositor da glória
poeta do ausente.

Ator gosta da noite
designer de society
idoso de baile
executivo de boate.

Malandro gosta de malandragem
matreiro de mutreta
picareta de picaretagem
pamonha de punheta.

Burguês gosta de botequinho
travesti de calcinha
bossa-nova de barquinho
pederasta de bundinha.

Uma gosta de amar
outra de paixão
muitas de casar
poucas de tesão.

Taoista gosta de ser
budista de estar
católico de permanecer
protestante de ficar.

(Se um adora, outro deplora o bom gosto;
se este detesta, aquele atesta o mau gosto;
e quem é esse que degusta o desgosto?)

*

Hirochigue gosta do Fuji
Cezanne de Saint-Victoire
Gauguin do Tai-chi
Andy Warhol de New York.

Raichiano gosta de sexo
junguiano de arquétipo
freudiano de Édipo
edipiano de complexo.

Marinheiro gosta do porto
prostituta da porta
seminarista do horto
ecologista da horta.

Sexóloga gosta de explicar
feminista de discutir
pedagoga de dialogar
psicóloga de ouvir.

Mulher gosta de apanhar
titia de chicote
viúva de uivar
virgem de fricote.

Juiz gosta de pena
moleque de franga
carioca da gema
músico de canja.

Quem gosta de cu
cujo de vaselina
o qual de bumbum
do que de vagina.

(E assim todos gostam de um gosto
mas ninguém admite o oposto.
E quem é este que busca o lusco-fusco num contragosto.)








Ambas: guache (16x22 cm)

1.6.11

O Sexo


Confunde-se sexo com desejo
pela semelhança na insatisfação
mas desejo é da mente e de mentira
e sexo é de verdade e do corpo.

Sexo independe do desejo
do amor, da paixão
às vezes do tesão.
Tem funcionamento autônomo
e inocência irracional
pelo que é visceral, reto, belo
perturbador, natural e sujo.
(Não de matéria suja;
suja é a nódoa que ele emana
em toda ordem do mundo.)

A insatisfação sexual nos abate
como se o corpo se emaranhasse
nas teias de um casulo
inabitável, inabordável, inominável;
inabitável, porque no hábito não habita
inabordável, porque o barco é à deriva
inominável, porque nome não se aplica.

E como também sexo procria
através dele
Deus cria.



Carimbo (11,5x10 cm)