Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


25.11.11

A Caminho da Tribo



O caminho pra tribo não é um caminho. Demorei a perceber. Sonho em chegar, por isso ando muito parado. É que recentemente entendi que andar com afinco raramente me fez sair do lugar, e que, parado como estou, pode ser que me aproxime. Isto porque o caminho que percorro não se assemelha necessariamente a uma estrada. E o meu tempo lamentavelmente não se afere no relógio. Por isso vivo em pleno impasse; antes eu agia com esforço e dedicação, o que me dava, ao menos, a sensação de progresso. Hoje nem sei se, sentado à beira do caminho, estou indo — existe a possibilidade de estar simplesmente parado. O que gera em mim um grande medo. Não tenho medo da morte, mas de desperdiçar a vida. Se não alcançar a tribo, que valor a vida tem? O velho caminho que se dissipou mas que ainda existe é uma estrada forrada por cascalhos ásperos e pontudos (razão do passo falso e hesitante), que corta uma paisagem monótona, basicamente formada por um enorme campo onde os animais pastam, as crianças brincam e os homens atiram. Existem nuanças, como amigos que me acompanham num trecho do percurso, passarinhos pousados na rede elétrica e variedades de flores do mato insistindo em ser belas, dentre outros detalhes. Sei que minha misantropia reduz a quase nada a diversidade dessa paisagem, mas não vejo motivo pra descrever as coisinhas.

Ora, já devem estar deduzindo que jamais chegarei à tribo, que a tribo é ilusão e tal, mas eu não duvido, minha certeza é absoluta e me acompanha desde sempre, mesmo que eu não saiba o que exatamente vou encontrar lá, nem mesmo o que é a tribo. Quanto a chegar, nenhuma dúvida. A tribo pode ser tantas coisas, que alguma coisa boa certamente será. Portanto, caminhar. Caminhar? Esta é a questão. Antes eu sabia o que fazer, agora não — desde que compreendi que aquela determinação em seguir não me conduzia à tribo nenhuma, ao contrário, até me desviava. Hoje eu sei que estou no caminho, mas, caminho? Perdi seu rastro...

Inveja eu tenho do caminho dos outros. Eles passam por mim marchando resolutamente pelas paralelas e transversais da minha estrada, uns nem me olham, outros são respeitosos, alguns conhecidos param para um café, mas sempre com pressa, sabem que cinco minutos, no ritmo desenfreado que se impõem, correspondem a 300, 400 metros de um avanço concreto, portanto não posso lhes pedir mais. A maioria já está de volta, conquistaram suas tribos há muito tempo e dirigem-se para uma nova (existem várias), eu sou modesto, desejo alcançar apenas a primeira, a primeira pra mim é o máximo que almejo. Peço unicamente que eles que não me descrevam experiência alguma, nada quero saber do que viram ou viveram ou ganharam na tribo, desejo um dia simplesmente receber a surpresa. Talvez, inclusive, a tribo seja somente isso: uma surpresa.

Os amigos não entendem a minha dificuldade. Criticam o meu caminhar trôpego sem considerar sobre o que eu caminho. Vêem tudo pelo ponto de vista de suas estradas, me aconselham um andar mais objetivo e a fazer check-ups com frequência, pois, pra eles, sem cuidar da saúde não se chega a lugar nenhum. Segundo repetem seguidamente, a maneira mais segura de se atingir uma tribo é com disciplina: cinco quilômetros de manhã, almoço, outros cinco à tarde, jantar leve, descanso, um bom sono, etc. etc. E que é perfeitamente plausível — eu que deixe de pudor — cortar caminho usando as estradas dos outros, principalmente em seguimentos mais intrincados... Imagine, usar estrada alheia... Meu irmão me disse que me emprestaria dinheiro para uma viagem direta de avião. Pronto. O grande drama resolvido em poucas horas. Respondi-lhe, depois de agradecer, que mais rápido que um avião seria nascer e morrer no ato. Ora, encurtar a vida...

Contava que passo por um período demasiadamente sentado nos montículos do caminho, mas não que me distraio jogando pedra nas pedras da estrada. De fato, uma perda de tempo... Seria bom que entendessem: esses cascalhos a que me referi são graúdos — cabem na palma de uma mão — e criados pela explosão do granito, portanto nada naturais. Antigamente, o asfalto das ruas era bem feito, sobrepondo-se camadas de cascalhos, do maior ao menor; por baixo, este cascalho que é a minha sina, depois os médios e por fim os cascalhinhos, aqueles grãozinhos, sobre o qual, após o trabalho de prensagem das máquinas, se espalhava o asfalto definitivo. Pois então, quando eu era criança, atirava um cascalhão de encontro às pilhas de cascalhos que os caminhões depositavam, buscando que o choque criasse uma faísca. Mas não tinha força suficiente. Os mais velhos conseguiam. Usavam da força, mas também o faziam com jeito; acertavam de quininha, e, plim! saía a faísca. A lembrança não é nítida, mas acho que acreditava que as faíscas pertenciam às pedras que as liberavam toda a vez que recebessem a batida certa... É com o que me divirto hoje em dia, mas não o tempo todo, eu me controlo, é claro. Arrancar faíscas das pedras... (Tem outra também; diante dos lagos, fazer a pedra pipocar na superfície da água...)

Desviei-me com essas reminiscências. Ou não, ou caminhei — eis um exemplo típico do meu dilema. Se fosse dada pra mim uma estrada nítida, teria certamente me desviado com essa narração irrelevante de tempos remotos. Porém, como não há caminho concreto, posso me distrair e me dispersar à vontade, inclusive escrever coisas desconexas, que estarei de qualquer modo me aproximando da tribo. Porra: desviar-me à vontade, ou somente mais ou menos, ou, ainda, um pouquinho? Perdi a medida da melhor conduta, daí meu medo de estar perdendo a vida, o que é diferente de estar perdido. Perdido eu tenho certeza de que estou. Perdido, mas talvez mais perto...

Quando a vida era uma estrada, somente as bifurcações então me afligiam. A cada uma, uma paulada. Contudo, eu caia, recuperava-me, recobrava a confiança e seguia até a próxima. No lugar em que hoje estou metido não existem mais bifurcações, a estrada é um espaço aberto com cascalhos que transparecem onde quer que eu pise, posso escolher qualquer direção, porque, se estou certo, todas elas me levam. No exato instante em que alguém me vê, esse espaço desmedido se configura numa estrada comum, e todos por isso imaginam que eu sou normal, que tenho uma estrada, que chegarei à minha tribo. (Pensam inclusive que já estou de volta, pois engano bem.) Mas, logo após a despedida, aquilo que em público se apresentava como uma boa reta cercada de pastos transforma-se novamente no imenso campo. Porém, digo pra mim, não se preocupe, velho; espaço aberto ou fechado são formas iguais, meu deserto de cascalhos também está rodeado pela paisagem, basta eu querer ou precisar ver. Assim, real ou virtualmente, existe um pasto aqui do lado, com as crianças, atiradores e as outras coisinhas.

Não tenho medo desses tiros. Podem me acertar, como já acertaram em pessoas próximas e distantes, estão aí, na real, só sabem fazer isso, agredir, humilhar, mas não me pegam. Deve ser arrogância de minha parte, mas não temo essa gente. Há quem me proteja. Isto é fé, evidente. Portanto, são duas fés: minha jornada não será interrompida por atiradores e alcançarei à tribo. Me preocupa a possibilidade de chegar lá exaurido a ponto de nem usufruir. Ultimamente, sinto as energias rebaixadas, as pernas, em especial, por conta dos cascalhos, doem, doem, razão de eu viver sentado, ou catando flores, ou fotografando passarinhos. Alguém me protege; viajo seguro de noite ou de dia. Porém, se há um protetor, e, portanto, sou por ele um escolhido, por que fez do meu caminho um caminho de pedregulhos? Noto as estradas dos outros; têm pedras, é verdade, mas imensas, redondas, funcionam como obstáculos que, como tais, uma vez contornados, oferecem a recompensa de um caminho contínuo de terra batida, cimento ou grama. Como qualquer um, também tenho que enfrentar esses obstáculos, é da vida, o que me incomoda e que reclamo é somente com o andar capenga através dos cascalhos, pois é de toda hora, a cada passo, sem trégua, sem perspectiva.

Quando penso em desistir (quantas vezes, quantas vezes!) encontro de repente uma seta apontando prum lado qualquer, onde leio: continue. Continue. Continue! Quem me protege deixa somente esse recado: continue. O cara tem senso de humor, pois, certa vez, desesperado com meu destino, roguei pra que ele me desse uma direção. Por aqui ou por ali? Respondeu-me seco: por aqui. Aqui aonde, se não especifiquei o que era aqui e ali...? Outra vez, novamente: estou perto ou longe da minha tribo? Ele disse: perto. Perto, que tempo é perto? Em escala humana ou transcendente...? Pois a vida continua passando e eu sempre estive perto...

Não quebrem meu sonho, não acabem com a minha certeza, a tribo existe, está logo além, não acredito em aqui agora, aqui é lugar nenhum, pasto, tiros, correria, pedras lascadas, desencontros, arbitrariedades... Minha certeza é absoluta. Não destruam meu único sentido: caminhar para o meu lugar. Eu não sei o que é a tribo, se glória, riqueza, harmonia, pode ser um pequeno tempo de paz, um dia que seja, mesmo o último dia, posso chegar lá já sem força, mas meus olhos poderão ver, e, se estiverem cegos, ouvirei — inconcebível uma tribo sem música —, porém, se também estiver surdo, sentirei a fresca, uma brisa específica no peito..., um ar puro que respirarei enfim, nesse possível grande final.





23.11.11

Relatório Final                                                              


                                                      Contar tudo sem dizer nada... (Jh 2,34)


No espaço
 


Nenhum homem, uma cidade de mulheres
Invadi um pequeno quintal na beira do rio
A velha cozinha com seu relógio de carrilhão
Escondia-me nas trilhas do capim baldio

Admirando as belas teias da Araneae entre os vãos.

O corcunda tocava em meu pinto na nave da igreja
Saí sozinho do labirinto das dunas
Deitado na cama com meu rádio de pilha
À noite todos punham os colchões das ruas

Mães e filhas faziam balaios de palha.

Sofri numa escola cinza com janelas muito altas
Era linda a lagoa escura que quase me matou
Passei muitas horas num muro quebrado
Da mercearia e da própria rua nada restou

A cidade ignora um significado.

Solidão vivia em piscinas geométricas
Roubaram minhas figurinhas atrás da parede
Por ali entrei na floresta amazônica
A telepatia que se deu sabemos eu e ele

Com o rio ao lado repetindo sua crônica.

Na roda da máquina de costura dela
Meu mundo de fora cabia no campinho
Nas réstias do sol, o pó e o universo
Esculpia passarinho por passarinho

Para pôr a revoada em cima do berço.

Era um apartamento vazio de quatro quartos
Contei Meu Tio o Iauaretê pras minhas crianças
Sonhei com uma escada espiralada sem fim
Pobre querido ateliê cheio de esperança

Onde os coelhos comeram meu jasmim.

As andorinhas escureceram o dia mais cedo
Na varanda de trás contei dezessete balões
Foi uma benção, na nascente do São Francisco
A encanação era cantar todas as canções

Num palacete imperial quase ruído.

Dormi com ela na cama de seus pais
Que casa aquela! mulheres e morcegos
Hortênsias que põe seu ego pra fora
Bolacha de água e sal era nosso brinquedo

Quando demorava a passagem das horas.

E aquilo no céu era mesmo um tornado
As matracas acabaram com as flores do ipê
Andando e ouvindo o Jornal Nacional nas ruas
Havia dois vidros entre eu e meu bebê

Desde o começo ela foi prematura.

Naquele cubículo fui um grande pintor
Gozar na chuva, no perigo da mata
Desde então o pardal é meu amigo
Chique comer a tal truta defumada

Falando em comer, era uma vez um ovo cozido.


No Tempo


Quando vi, seus pêlos eram ruivos
O caminhão vinha na contramão
Me deram jogo de varetas e um mico no Natal
A gata era uma senhora uivando de tesão

Enquanto eu fazia tai-chi no quintal.

Godô atropelado pelo caminhão de gás
O pai dele me disse que eu tinha personalidade
A cena do urubu saindo da bunda do cavalo
Eu e ela curtimos toda a tempestade

Deitados no chão da casa da Amaro.

Gritei: pai, to se sentindo mal...
Quando nasceu era pele e osso
Deus não deixava, então fomos embora
Meu primo caindo dentro do poço

E eu menino o tirando pra fora.

Perderam somente o meu outdoor
O caixão do meu pai não passava no corredor
As pessoas leves, soltas, e eu na viatura
No caminho do aeroporto fundiu o motor

Com criança de colo na estrada escura.

Abri os olhos: a lua ali, na ponta da proa
Fui agraciado com um corredor polonês
Seu nome correto era vagina
Quebrei a secretaria da escola na minha vez

Tudo por conta de uma vacina.

E o grande banquete era porco com pêlo
Depois de seis meses segurei sua mão
Não fiquei com nada, só com a alma lavada
Quem nos recebeu foi um pastor alemão

A juventude tem sua graça.

Saí desatinado quando o jogo acabou
Me debatia com a bóia presa aos pés
E enfim saiu a porra bendita
Então ele se virou e falou Zezé

Até hoje ninguém acredita.

Quando soube do lápis no cu do Viana
Agora meu pai era um querido defunto
Disse que eu tinha também o bem dentro de mim
Sentia atônito a imensidão do mundo

Então a lua desceu literalmente no jardim.

Joguei 90% dos trabalhos no lixo
Uma bruxa de repente escancarou a janela
Cheguei de viagem, o menino havia morrido
Brochei quando ela apagou minha vela

Que iluminava seu corpo bonito.

Uma após outra as canções nasciam
Crianças também tomando a auasca
O quanto aquele beijinho me reconfortou
Por exemplo, depois da feira, chegando em casa

Já sofri o pão que o diabo amassou.




19.11.11

Cumuruxatiba



Sombras de amendoeiras;
uma urubu se aproxima.
Ela me conta que foi humana
e paga uma dívida.
Comigo é o inverso – digo a ela:
já fui um urubu
e pago com o que sou.




Bico de pena (33x25 cm)

17.11.11

Lápis de cor (29x21 cm)

15.11.11

O Bicho




Estava distraído na TV, quando senti uma fisgada na sola do pé, bem no meio do calcanhar. Tirei logo o sapato, a meia e vi, com repulsa e horror, um bicho penetrando no meu pé. Não havia tempo para pensar, precisava arrancá-lo imediatamente pela parte do seu corpo que ainda se esperneava fora. Puxava aquela coisa surpreendendo-me com o seu comprimento, parecendo mesmo, naquele longo instante, que não teria fim. O bicho saindo do meu pé assemelhava-se a uma centopeia que tivesse longas pernas como de grilos e asas transparentes como de moscas. Quando por fim o retirei, aquilo se debatia na minha mão com tal repugnância, que o larguei de pronto – e ele se rastejou em direção à lavanderia. O problema é que o buraco aberto no meu calcanhar ficou cheio de seus restos, patas, pedaços de asas, que eu ia limpando com algum sofrimento, pois inevitavelmente fisgava um pouco da minha carne. A natureza daquele bicho não era desconhecida, já ouvira falar a respeito dessa espécie de artrópodes que penetra rapidamente no corpo humano – mas não recordei o nome. Decidi então matá-lo, para evitar novos incidentes tanto comigo quanto com os outros. Contudo, não estava fácil encontrá-lo dentre às folhas e panos que se espalhavam pelo chão. Quando enfim o encurralei, faltou-me a ferramenta adequada, uma vassoura, um sapato qualquer, com o que pudesse exterminá-lo. Catei uma pá, e com ela acertei bem no meio do bicho, o que só aumentou duas vezes meu trabalho, pois agora eram duas metades correndo em direções opostas. Sem hesitar um instante, esmaguei a primeira delas com meu pé perfurado. O nojo causado pelo efeito sonoro e gosmento foi ainda maior que a dor, como se eu tivesse estourado uma lesma com epiderme de plástico. A outra metade escapou e desisti da procura. Até porque já era hora de me cuidar, de pedir ajuda para alguém me levar a uma farmácia, pois agora, reexaminando a ferida, fiquei impressionado com os nacos de carne que dela se desprendiam, e bastante preocupado com uma possível infecção, especialmente por conta dos dejetos pretos que restavam incrustados. Percebi que o tratamento disso levaria tempo e que certamente iria levar muitos pontos.
 
 

Nanquim (10,5x13 cm)


8.11.11

Um amigo me pediu para ver outras posições dessa escultura que postei aqui há pouco. Aí estão.

Aproveito pra agradecer de coração a todos os que perdem um tempo tão caro em nossos dias, para visitar esse blog tão fora do nosso tempo.

Agradeço aos amigos invisíveis e silenciosos.
Agradeço aos amigos que me incentivam.

Demorei pra chegar a uma exposição como essa. Demorei tanto que tenho ouvido dizer que blog já está fora de moda...

Definitivamente, jamais alcançarei...




 






























O Passarinho


Tudo dói no passarinho.
Dói o corpo
Dói a vida
Dói a saudade.

No passarinho que não voa mais
Dói a solidão
Dói a insignificância
Dói a espera.

Comovido com o passarinho
Minha alegria se retrai
Diante do passarinho
Do olho do passarinho.


Bico de pena (21x29,5 cm)

1.11.11

No Portal dos Mortos



O pintor estava chateado, sabia que havia morrido. Diante dele, uma grande porta e um porteiro:

– Seu nome.
– José Tatit.
– Sim, estou vendo em sua ficha. Do Brasil. Pintor. Pintor frustrado, etc., etc. Bem, nesta porta você deve decidir o destino de sua obra. São duas as opções: deixá-la à deriva na Terra, podendo vir a ser reverenciada ou esquecida, ou trazê-la consigo e fazer parte do museu dos mortos.
– Prefiro que venha comigo, mas nada de museu; quero tê-la ao lado, em minha próxima casa – se nesse mundo houver –, como foi em vida.
– A morte não continua a vida. Esta alternativa não existe.
– Mas que museu é esse que me receberia, diante de milhares de pintores geniais que me antecederam? Na Terra, nem uma única galeria me aceitou...
– Explico sobre o museu, já que realmente não é possível que recém-morrido possa sabê-lo. Trata-se de um museu quase infinito, cuja obra completa de qualquer artista é exposta num magnífico salão projetado em perfeita harmonia com seu estilo, e visitado pelos mortos – todos os mortos – que contemplam cada trabalho com enorme paciência e regozijo – você há de convir que tempo não lhes falta. Não há distinção alguma entre aqueles que vocês chamam de grande artista e um mero artesão, ou entre profissionais e os que se dedicaram às artes como hooby. O mesmo procedimento se dá com os músicos, literatos, atores, dançarinos, como também, nas áreas do conhecimento, os filósofos, cientistas, religiosos – todos ganham seu espaço próprio. Até os esportistas exibem-se em estádios sempre cheios. Você pode notar que o mundo, para além desse portal, é generoso.
– E quanto às obras reconhecidas em vida, que pertencem à humanidade?
– Se estão lá não podem estar aqui. Seus autores e seus amantes vivem aqui de sua memória.
– Por quê, dentre tantas possibilidades, algum morto se dedicaria, mesmo sem ter o que fazer, por algo que nenhum vivo se interessou?
– Na eternidade, o passatempo é se dedicar a conhecer a individualidade de cada um dos trilhões de seres que nasceram e morreram na Terra, incluindo obviamente as plantas e os animais – e os artistas são considerados o filé-mignon. A arte aqui é saboreada na medida da capacidade destinada a cada um. Não se trata da competição típica dos vivos, em que um relativo maior diminui um relativo menor; a obra para nós é expressão do esforço de um indivíduo em dar conta da tarefa a ele encomendada, o que significa exatamente referendar os desígnios de Deus. Qualquer traço de um pintor – para ficarmos em sua área – é um gesto divino, e esta é a única forma de sondá-Lo, pois, mesmo aqui, Ele não se apresenta senão como reflexo. É claro que tudo isso que dá sentido à eternidade você somente poderá apreender após ultrapassar esse portal. Mas primeiro precisa arbitrar; trazer sua obra ou deixá-la na Terra e torcer por um reconhecimento pós-morte, que, adianto, acontece na proporção de um pra cada cinco milhões quinhentos e trinta e cinco mil, trezentos e quarenta casos.
– Você não me dá alternativa. A morte me pegou de surpresa, quando me parecia aproximar o reconhecimento. Tive pelo menos três sinais nítidos nesse último ano. O último, inclusive, apontava para uma retrospectiva num centro cultural...
– Neste caso, se você não estiver inventando – nada vejo sobre isso em sua ficha –, a proporção cai para a casa de algumas centenas de milhares. Escolha.
– Se trouxer minha obra pra cá, o que acontecerá com aquela que deixei em casa?
– Não se preocupe, isso é com a gente. Usamos traça, mofo, incêndio, ou simplesmente incitamos sua nora a chamar um carroceiro para dar fim a tudo; são muitas as possibilidades, esteja certo de que em três ou quatro anos não restará nem a sua assinatura, e esse tempo, transposto pra cá, não vai além do fim da nossa conversa (que já se estende em demasia).
– Os mortos, pelo que me diz, continuam comportando-se como indivíduos?
– Sim e não. Mantém-se o espírito, mas não há sentido aqui algum para qualquer ação que signifique trabalho ou criação. Porém, a eternidade precisa ser vivenciada; pode imaginar a importância para nós de uma novidade? Cada vez que aparece uma nova obra é grande a fila. Tudo precisa ser rediscutido, redimensionado. Calcula a qualidade dos mortos com quem terá o prazer de tratar? Agora, você e as coisas que deseja trazer consigo só entram aqui uma vez; se acaso passar deste portal de mãos vazias, jamais poderá resgatar a matéria abandonada e se contentará em descrever aos colegas todo o esforço de sua vida. Escolha.
– Confúcio. Giotto. Kafka. Hiroshigue. Meu pai... Uma sala especial divinamente iluminada... Posso imaginar os trabalhos em ordem cronológica, desde as cópias infantis de Batman feitas ao pé da escada até o derradeiro autorretrato... Olhe, porteiro, agradeço seu empenho, mas digo não. Depois de tudo o que ouvi ficou claro: vivi a vida inteira colado em minha arte, nunca pude me separar – justamente o destino inglório me impediu. Tive de amá-la, não havia alternativa. Agora você me propõe que nem a morte nos separe. Deixe, deixe pra lá; aliás, se vocês não jogarem traças divinas, as mundanas meu filho há de cuidar. Será um estorvo, eu sei, mas ele sempre foi atencioso com a minha obra e não duvido que a carregue consigo, à sua hora, debaixo do braço. E, pelo que você me conta sobre o tempo, talvez ele já apareça quando eu mal tiver passado dessa porta. Mas esse hiato é a minha libertação. Vale o risco.



Pastel (19x25cm) 1981