Latrina
Não
é fácil lavar latrina, pior ainda de casa de detenção. Cocô de prisioneiro é
mais fedido, podre, pois é fruto de um ser intrinsecamente sujo. Quem nunca
limpou não sabe; esse excremento é em si a própria essência da malignidade. Eles
fazem questão de cagar na latrina inteira, que fica um todo lodo de cocô
incrustado, um horror! Sem falar no xixi; a urina desses cabras é de dendê
pútrido. Com seus fluidos e dejetos, os condenados parecem querer sedimentar geologicamente
o lado negro da existência, como uma inscrição cifrada para gerações futuras.
Eu sei – não sou ignorante – que qualquer banheiro público masculino é
naturalmente imundo, que nossos dejetos são nojentos e o ser humano é
mal-educado – mas não há medida de comparação com a matéria dos presídios. Até
os vermes, moscas, baratas se incomodam; uma mariposa, por exemplo – sou
testemunha da cena –, que teve a infelicidade de sobrevoar em torno da latrina,
desabou repentinamente dentro daquilo. Foi demais pra ela. O cheiro impregna no
nariz, não há banho que purifique.
Por que eu, meu Deus, o que é que fiz? Estou convencido de que me foi
destinada a última instância de submissão do homem. Vejam bem, não é pelo cocô,
com cocô se convive diariamente, inclusive participa de certas relações sexuais,
sem problemas – existe um quê natural no mau cheiro dessas fezes cotidianas,
que permite uma convivência sem drama. Aqui na prisão não – totalmente
diferente: curtido, maldito, azarado, um esgoto invertido eclodindo nessas
latrinas que eu lavo. A ordem que recebo é para deixar um branco omo, como
pode? por mais que eu esfregue, não sai, alguma coisa até sai, mas tem mais e
mais embaixo, anos, camadas hereditárias de ódio e podridão, que vêm de
bisavôs, avôs e pais ruins num encadeamento de negatividades cuja expressão concreta
está inscrita na latrina de um presídio. Entra prisioneiro, sai prisioneiro, e
eu sigo limpando. Como vim parar aqui? por quê, dentre todos no mundo, eu?
Tudo
bem, precisava de um emprego, estava nas últimas, fiquei até contente ao me
aceitarem de faxineiro, mas não avisaram o tipo de serviço. Dia desses soube
que os próprios prisioneiros se recusam a limpar, que para eles é condição sine
qua non: latrina, não. A comida pode ser ruim, a cela cheia, o banho de sol
limitado, as visitas canceladas, mas lavar a privada, nunca! Sujam mas não
lavam! É aí que eu apareço, nesse hiato; precisava sobrar pra alguém, na vida a
gente é levado, não escolhe, me enganaram, e cá estou.
Escutem,
não pensem que eu sou um bosta não. É puro desespero, as dificuldades nos levam
ao imponderável. Ninguém opta por participar de uma guerra estúpida, nem ser
estuprado por um canalha, nem ser faxineiro numa casa de detenção. E eu
estudei, entendem? não completei todo o ciclo, mas não fui mau aluno. Além disso,
tenho boa aptidão musical – já participei do coro na ópera Guarani, do nosso
Carlos Gomes, numa montagem em setenta e três, na minha Manaus. Sou amazonense.
Sim. Canto bem. Também trabalhei em muitos bares, e lá na terra, no bairro onde
morava, era demais conhecido. O padre da minha paróquia, quando soube que eu
tinha arrumado trabalho com o auxiliar do maestro, presenteou-me com o próprio
livro Guarani, do nosso José de Alencar. Li-o de cabo a rabo. A história do
índio. Agora eu pergunto: de que serve ler José de Alencar, e acabar nessa
condição? Então não tem valor algum? Nem cantar na ópera? Poucos sabem, e esses
bandidos muito menos, o que significa a palavra ópera, e eu já participei de
uma! Ninguém leva isso em consideração? Hoje vejo na TV campanha pra gente ler,
eu digo: ler não serve pra nada.
Meu
erro foi tentar a vida no sul; trouxe mulher e filhos – não podia ficar parado.
Aqui eu tentei de tudo, só conseguia bico. Não dava pra viver, passávamos
necessidades. O único emprego que arrumei foi esse. A mulher não agüentou – já
disse que o cheiro não sai. Entranha. Calcifica. Porra, o que eu podia fazer?
Nem meus filhos, chegavam perto não. No ônibus era a maior vergonha – agora só
ando a pé. Um dia, ao voltar do trabalho, encontrei um bilhete: adeus. Foda-se. Deve ter arrumado outro
cara. Nunca nos demos bem. Saudades eu tenho dos meninos. Por mais que eu tente,
não me livro da prisão; também preciso comer, e aqui me dão refeição, vale
transporte (que eu vendo) e o salário. Tentei várias vezes um bar pra cantar,
mas, com esse cheiro, não deixavam nem me aproximar, quanto mais demonstrar meu
talento. Querem as latrinas brancas, como? Nem se nota a cor original da
porcelana. Já pedi um formão pra tirar a crosta, respondem que armas são proibidas.
Somente palha de aço.
Às
vezes me detenho todo um dia num só lugarzinho, e, acreditem, sinto alegria
quando noto que clareia o local; faz-me crer que um dia o trabalho teria fim.
As mãos ficam em carne-viva, mas a aproximação da possível cor da peça anima
sobremodo meu regresso no dia seguinte. Mas eles são maus, parece que
adivinham, que conhecem a minha luta, e então combinam, todos, tão logo eu saio,
fazer as necessidades bem ali naquele ponto quase limpo, pelo sádico prazer de
acabar com minha esperança. Não tem jeito. Não tem fim.