Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.4.12

Latrina



Não é fácil lavar latrina, pior ainda de casa de detenção. Cocô de prisioneiro é mais fedido, podre, pois é fruto de um ser intrinsecamente sujo. Quem nunca limpou não sabe; esse excremento é em si a própria essência da malignidade. Eles fazem questão de cagar na latrina inteira, que fica um todo lodo de cocô incrustado, um horror! Sem falar no xixi; a urina desses cabras é de dendê pútrido. Com seus fluidos e dejetos, os condenados parecem querer sedimentar geologicamente o lado negro da existência, como uma inscrição cifrada para gerações futuras. Eu sei – não sou ignorante – que qualquer banheiro público masculino é naturalmente imundo, que nossos dejetos são nojentos e o ser humano é mal-educado – mas não há medida de comparação com a matéria dos presídios. Até os vermes, moscas, baratas se incomodam; uma mariposa, por exemplo – sou testemunha da cena –, que teve a infelicidade de sobrevoar em torno da latrina, desabou repentinamente dentro daquilo. Foi demais pra ela. O cheiro impregna no nariz, não há banho que purifique.

Por que eu, meu Deus, o que é que fiz? Estou convencido de que me foi destinada a última instância de submissão do homem. Vejam bem, não é pelo cocô, com cocô se convive diariamente, inclusive participa de certas relações sexuais, sem problemas – existe um quê natural no mau cheiro dessas fezes cotidianas, que permite uma convivência sem drama. Aqui na prisão não – totalmente diferente: curtido, maldito, azarado, um esgoto invertido eclodindo nessas latrinas que eu lavo. A ordem que recebo é para deixar um branco omo, como pode? por mais que eu esfregue, não sai, alguma coisa até sai, mas tem mais e mais embaixo, anos, camadas hereditárias de ódio e podridão, que vêm de bisavôs, avôs e pais ruins num encadeamento de negatividades cuja expressão concreta está inscrita na latrina de um presídio. Entra prisioneiro, sai prisioneiro, e eu sigo limpando. Como vim parar aqui? por quê, dentre todos no mundo, eu?

Tudo bem, precisava de um emprego, estava nas últimas, fiquei até contente ao me aceitarem de faxineiro, mas não avisaram o tipo de serviço. Dia desses soube que os próprios prisioneiros se recusam a limpar, que para eles é condição sine qua non: latrina, não. A comida pode ser ruim, a cela cheia, o banho de sol limitado, as visitas canceladas, mas lavar a privada, nunca! Sujam mas não lavam! É aí que eu apareço, nesse hiato; precisava sobrar pra alguém, na vida a gente é levado, não escolhe, me enganaram, e cá estou.

Escutem, não pensem que eu sou um bosta não. É puro desespero, as dificuldades nos levam ao imponderável. Ninguém opta por participar de uma guerra estúpida, nem ser estuprado por um canalha, nem ser faxineiro numa casa de detenção. E eu estudei, entendem? não completei todo o ciclo, mas não fui mau aluno. Além disso, tenho boa aptidão musical – já participei do coro na ópera Guarani, do nosso Carlos Gomes, numa montagem em setenta e três, na minha Manaus. Sou amazonense. Sim. Canto bem. Também trabalhei em muitos bares, e lá na terra, no bairro onde morava, era demais conhecido. O padre da minha paróquia, quando soube que eu tinha arrumado trabalho com o auxiliar do maestro, presenteou-me com o próprio livro Guarani, do nosso José de Alencar. Li-o de cabo a rabo. A história do índio. Agora eu pergunto: de que serve ler José de Alencar, e acabar nessa condição? Então não tem valor algum? Nem cantar na ópera? Poucos sabem, e esses bandidos muito menos, o que significa a palavra ópera, e eu já participei de uma! Ninguém leva isso em consideração? Hoje vejo na TV campanha pra gente ler, eu digo: ler não serve pra nada.

Meu erro foi tentar a vida no sul; trouxe mulher e filhos – não podia ficar parado. Aqui eu tentei de tudo, só conseguia bico. Não dava pra viver, passávamos necessidades. O único emprego que arrumei foi esse. A mulher não agüentou – já disse que o cheiro não sai. Entranha. Calcifica. Porra, o que eu podia fazer? Nem meus filhos, chegavam perto não. No ônibus era a maior vergonha – agora só ando a pé. Um dia, ao voltar do trabalho, encontrei um bilhete: adeus. Foda-se. Deve ter arrumado outro cara. Nunca nos demos bem. Saudades eu tenho dos meninos. Por mais que eu tente, não me livro da prisão; também preciso comer, e aqui me dão refeição, vale transporte (que eu vendo) e o salário. Tentei várias vezes um bar pra cantar, mas, com esse cheiro, não deixavam nem me aproximar, quanto mais demonstrar meu talento. Querem as latrinas brancas, como? Nem se nota a cor original da porcelana. Já pedi um formão pra tirar a crosta, respondem que armas são proibidas. Somente palha de aço.

Às vezes me detenho todo um dia num só lugarzinho, e, acreditem, sinto alegria quando noto que clareia o local; faz-me crer que um dia o trabalho teria fim. As mãos ficam em carne-viva, mas a aproximação da possível cor da peça anima sobremodo meu regresso no dia seguinte. Mas eles são maus, parece que adivinham, que conhecem a minha luta, e então combinam, todos, tão logo eu saio, fazer as necessidades bem ali naquele ponto quase limpo, pelo sádico prazer de acabar com minha esperança. Não tem jeito. Não tem fim.
 



Parafina (9x10x23 cm)

 

26.4.12

Outra Noite


Esta noite
mas existe outra noite dentro da noite
antiga. 

Uma noite
eclipse desta noite
vazia. 

Sua essência
matéria desta presença
ambígua. 

Débito do tempo
cobra nesse momento
uma dívida. 

Escuro sobre escura
sombra de uma penumbra
rediviva.



17.4.12


Parafina (8,5x8,5x10 cm)

13.4.12

O Sonho 



Debaixo do temporal
que não dá trégua
desço a trilha íngreme
para ver a queda d’água.

Nem queda nem nada vi
olhando só meus pés
preocupado em não cair
– então escureceu.

Cegos, a serra e eu
volto pelo mesmo barro
guiado por um lusco-fusco
nos meus sapatos.


Xilogravura (25x18,5 cm)

8.4.12

Eco


Durma em paz, meu amor, durma
Você não sabe de nada, nada
É só um instante de mágoa, só um
(Mas um abismo profundo...)
Está tudo escuro, tão escuro
Como esse jogo é estúpido, estúpido
A mulher não quer o homem, a mulher
O homem não quer a mulher, o homem
Este vazio que seguro nas mãos, e escrevo
É a distância que separa os dois, nós dois
O saldo do destino é triste, é isto
As coisas parecem certas, certo
Amanhã já terei esquecido tudo, tudo
Te esperei o dia todo, todo
Você merece muito mais, meu amor
Alguém que entenda mais que eu, de amor
E tenha paciência de te amar, como for
Você merece muito, mais do que eu
Durma em paz, durma, durma...

(Letra de uma canção com Paulo Neves.)


Nanquim (31x24 cm)

6.4.12

Guache (16x24 cm)

2.4.12

A Companheira



“Também, você joga tudo pro ar...”, pensei... não, ouvi, alguém falou... então me virei e a vi. Parecia uma menina de origem hindu, a julgar pela pele morena e o turbante branco na cabeça. Não, era uma mulher de feições joviais e sua beleza plácida era familiar. Estava sentada em cima de uma pedra, mas não havia pedra; seu corpo simplesmente acomodava-se na posição sentada, e olhava para um abismo que também não existia, apenas um nevoeiro ou nem isso, o cinza de um nevoeiro. Voltou-se para mim, sorriu e me disse: “então me encontrou...”, ao mesmo tempo em que eu pensava: “então você existe...”. Mantinha-se serena, ainda que eu tenha notado em seu olhar uma leve expressão de surpresa com a minha descoberta. Perplexo, compreendi de imediato que é ela quem me acompanha desde sempre, que é dela a voz que sopra os meus pensamentos, especialmente aqueles que me resgatam do desânimo e da desilusão, quando parece não haver saída. Nessa hora (em todas as horas, mas no cotidiano é imperceptível) ela vem e me fala, e se meu estado de ânimo é tal que nem ouço seu sussurro sutil, transporta-se para a voz de qualquer pessoa, de um transeunte, de uma criança, ou então me envia a mensagem através das coisas, orelhas de livros, bulas de remédios, programas de televisão. Sempre pressenti a sua existência (nunca sob a forma de menina-mulher que parece me amar com amor humano, imaginava o estereótipo de um anjo ou um espírito ancestral qualquer) e, quem sabe, eu a tenha encontrado pela frequência com que venho caminhando por ermos arriscados, labirínticos, onde se convive com a matéria transcendente sem grandes sobressaltos. Mas é possível também que tenha ocorrido um pequeno descuido de sua parte ao me falar de tão perto, acostumada talvez com meu jeito de escutá-la com o olhar fixo no chão. E eu me virei. Ela não se importou nada com isso, pois continuava sorrindo com a segurança de quem sabia que sua realidade não resistiria às primeiras intempéries do dia. Quando acordei, sua presença (em especial, a sua beleza) ainda estava intacta, e aquela frase em que comentava a minha impulsividade ressoava intensamente dentro de mim.

Eu não acordei de um sono — eu mal tinha me deitado e demoro muito pra adormecer. O que aconteceu, eu sei, não foi um sonho – mas isto é irrelevante. Escrevo somente para tentar subverter, ao menos em parte, a sua certeza infalível de que será esquecida (mesmo que a inexorável correnteza já esteja de fato levando seu espectro...). Palavras nunca serviram com precisão à substância da vida, mas podem enunciar, a seu modo, a metafísica. Por isso, este registro se propõe apenas a conservar a memória etérea do nosso encontro na projeção física e limitada das palavras.


P.S.: Agora que passo a limpo este texto, alguns meses depois, não tenho mais lembrança concreta alguma, restando-me somente aquilo que as palavras puderam reter. Dói-me especialmente ter perdido a noção de sua beleza, palavra que usei duas vezes no meu relato e que hoje percebo, abismado, não significar mais nada. Sou um leitor, como vocês. É como se a minha experiência comprovasse a abstração retórica das palavras. Mas o intento, como foi dito, não era outro; de algum modo, ela foi trasladada para uma linguagem que me permite ao menos sonhar.

Parafina (alt:26 cm)

1.4.12


Parafina (alt:26 cm)