Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.6.12


No azul da casa da espera



Por onde anda a mesma câmera
Se abre a janela a mesma hera
De um lado pra outro como uma fera
Lustrando o mesmo chão de cera
Respirando a cinquentenária atmosfera.

Bate o carrilhão e o coração acelera
O risco de errar e cair na cratera
Um fogo que nunca expira, a úlcera
Um ácido lento e abrasivo, a cólera
Megera vestida com asas de quimera.

Ex-voto com meras maças e peras
A própria poltrona está áspera
Mesmo dentro, deve haver outra esfera
Esperar é uma contínua véspera
Se existe à vera flor na primavera...

Enquanto isso, no velho poço
Uma rã mergulha... et cetera.




Parafina e hostência (alt: 23 cm)
                

25.6.12


Eu e Ela


A seca não seca o mar.
A cheia não enche o mar.
Nada abala o mar.

Uma montanha pode ser removida.
Uma pedreira, destruída.
Uma floresta, queimada.

O mar, nada abala.
Todas as espécies se extinguem.
E as horas somem.

Amor é mar.
O amor cabe no homem.
Deus sabe que dois podem.





22.6.12

Parafina e pigmento (11,5x11,5x24 cm)

19.6.12

Bico de pena (15x22,5 cm)

15.6.12


Ao assistir ao novo filme de Almodovar, “A pele que habito”, me lembrei dessa história que escrevi tempos atrás, cujo tema se assemelha um pouco. Curioso é que foi escrita como se fosse um roteiro de cinema. Ambas também guardam a mesma violência. Mas a comparação para por aqui.

Eu Vingo, Tu Vingas...



Década de oitenta em Recife, e a velha e repulsiva homofobia de círculos burgueses. Na emergente Boa Viagem, travestis faziam ponto na Conselheiro Aguiar. Estudantes da faculdade de Direito azucrinavam e agrediam as bichas, comandados pelo jovem forte e bonito Roberto, um tipo estúpido e descontrolado, de família tradicional; no currículo, muitas delegacias, de onde saia pelas propinas do pai. Aos trancos, formou-se e foi presenteado com uma longa viagem para a Europa. A intenção dos pais era, na verdade, tirar férias do filho.

Última semana de Brasil; Roberto passou dos limites, culminando por jogar um copo de ácido na cara de um travesti. A vítima teve a face, seio e braço direitos deformados. Essa agressão foi a gota d’água para os travecos que foram pedir ajuda a Missy Miss, a guardiã, aposentada da rua, dedicada ultimamente ao tráfico.

Missy Miss era o máximo, resolvia qualquer parada e intercedia nos casos de grave desordem na rua (mesmo porque vivia distante, escondida num sítio em Garanhuns). Atualmente tornara à forma de homem, porém sempre fiel a sua origem travesti e às suas amigas, muitas delas levadas por ela mesma à profissão – além do que, participavam da rede de distribuição da droga.

A violência desse caso fez com que Miss voltasse de pronto a Recife, onde foi recebido com todas as pompas. Era a vez da prestação de contas. Tomou pé dos detalhes, inclusive da urgência da vingança, dada a iminente viagem do agora advogado. Sua festa de despedida seria numa barraca da praia de Pau Amarelo e pela manhã seguiria direto para o aeroporto – informações fornecidas pelas colegas prostitutas. O primeiro passo foi acionar uma delas, que se insinuou na farra quando o grupo já caía pelas tabelas. Ao raiar do dia, a menina levou o gostosão Roberto para um ermo da praia, onde foi seqüestrado e dopado. Antes disso, não foi difícil pressioná-lo para que contasse a localização de sua casa de veraneio e as condições para invadi-la. O objetivo era roubar suas bagagens, tarefa pequena comandada pela habilidosa Missy Miss e dois comparsas.

*

Roberto acordou nu num sofá, no sítio de Garanhuns, cercado por oito travestis, sete com o pau pra fora. A sua frente, um único trajado de múmia: a vítima, alquebrada, com a cabeça e tronco enfaixados. Não fui eu... eu posso pagar... quanto querem...? etc., etc. O terror criava sua retórica de frases típicas: quedê o macho ...? dá porrada agora dá..., vai virar mocinha... Ao fazer menção de se levantar, foi agarrado e estendido sobre a mesa de jantar. Um apertou seu saco com navalha na mão: vou arrancar fora... Ele berrava ai, espera, ui, não fui eu, por favor, eu pago, pô, calma, ai! Outro já batia o pau em seu rosto, outro quase lhe arrancou o bico, outro ordenou que o abrissem – ia enfiar! Nesse momento entrou na sala, triunfal, com um quimono japonês, Missy Miss.

– Soltem-no, suas depravadas!

Todos deram um passo pra trás.

– O primeiro sou eu.

O agora diminuto Robertinho, apavorado, sentou na beira da mesa.

– Hoje em dia, meu gato, só como virgens – e abriu seu roupão, apresentando um cacete descomunal, famoso entre entendidos. O gaiato chorando convulsivamente implorava nesses termos:

– Com todo o respeito, senhor, minha família tem posse, eu posso pagar...

– Você quer de frente ou de quatro, benzinho?

– Me deixe só explicar, um momento, eu...

Com Miss ninguém precisava segurar o rapaz. De supetão, colocou-o de pernas pro ar, melou o pau e foi rasgando. O currado uivava e urrava, quando uma doce voz chegou colada a seus ouvidos. Era o próprio estuprador quem cochichava:

– Não quero dinheiro, gato. Mas se você escrever um bilhete...

– Eu escrevo, escrevo!

Ela recolheu o mastro e tirou do bolso papel e caneta. Pediu ao trouxa que se sentasse e expôs minuciosamente o conteúdo que queria ver escrito nas palavras de Roberto. Depois de algumas tentativas descartadas, o bilhete ficou assim:

Pai, não queria me despedir de ninguém por isso disse que o avião partiria ao meio-dia mas na verdade ele saía às seis. Peguei um taxi e fui direto. Um beijo na mamãe. Roberto

Miss dobrou o papel e sussurrou novamente em seu ouvido:

– Trocou uma pica deliciosa por uma penca de picas comuns...

E saiu da sala tão triunfal quanto entrara, bradando:

– Ele é de vocês!

Fizeram-no os sete, abstendo-se apenas a pobre enfaixada que assistia à cena distante e assustada. Ao cabo da farra, trancaram o cara catatônico num quarto sem janelas. À noite, Betinha - a enfaixada – lhe trouxe comida, água e um comprimido.

– Disseram que melhora a dor.

No dia seguinte, nova sessão de terrorismo contra o coitado. Os oito ao redor, um deles propondo:

– Prefere todas nós ou só Betinha?

Não obtendo resposta alguma do moribundo, foram tirando o pinto fora.

– Quer mesmo a gente...

– Não, não, não! –sua voz saia aguda.

– Quer só a Bebeta?

– Não, não...

– Então...

– Quero, quero, não, não... – a voz agora mal se ouvia.

Uma loira de olhos pequenos aproximou seu rosto marcado de acne e o intimou como homem:

– Olha, gatinho, você agora é escravo dela, viu?  No que ela mandar, no que ela quiser...

Outras endossaram, outras despejaram ameaças. Estavam encenando, pois precisavam voltar a Recife para o fim de semana e não podiam perder o ônibus. Deixaram-no aos cuidados de Betinha e Missy Miss. A primeira lhe levava os mantimentos e um remédio diário, a segunda aparecia de quando em quando pra arrombar seu rabo e assim justificar a necessidade da droga. Betinha não violava; dizia a Miss, desculpando-se, que não conseguia, não gostava... Sua índole era outra, não nasceu pra odiar, sentia mesmo era compaixão pelo rapaz, por vê-lo naquele estado cada dia mais deplorável. Por ela o moço já tinha pago, queria que o libertassem de vez. Mas não expunha o sentimento com medo de Miss e das amigas que, afinal, tudo faziam para vingar a sua desgraça. Conhecia o fim do plano, o quanto o miserável inda teria de se haver. Desde logo, o cara percebeu seu espírito inocente e benigno, e encabulava-se diante das coisinhas absolutamente desnecessárias que ela carinhosamente lhe oferecia, como guardanapo, palito de dente, copo, lençol, verdadeiros disparates em meio a sua calamidade pessoal. Passava os dias mudo, atônito, derramando lágrimas pra Deus. A culpa que sentia por Betinha crescia na proporção de sua generosidade, e tomou forma de pavor na manhã em que ela apareceu sem a faixa, escondendo com as mãos o lado deformado da face. Antes que a comoção encontrasse alguma palavra, Miss irrompeu no quarto batendo duro um cabo de enxada no chão e soltando fogo pelos poros:

– Olhe pra ela, seu filho da puta, veja o que você fez... vou te enfiar esse pau, seu porra, hoje tem pica não, tenho nojo de você, veado, olha pra ela, covarde... etc.

Betinha chorava, Roberto tremia. De repente, um espanto: o arrependido virou-se na esteira, arriou os trapos e se postou de bunda arrebitada. Miss, desarmada, somente encostou o cabo em seu anus e o ameaçou sem muita convicção:

– Vou te enfiar isso ou você me escreve um bilhete...

– Escrevo.

Pai, não estou em Londres faz tempo não adianta tentar me procurar. Não sou mais moleque. Estou com uns amigos conhecendo o mundo. Não preciso do seu dinheiro. Não tou afins de ficar dando explicações. Mamãe te amo

– O que vocês vão fazer comigo?

– Cê vai acabar melhor que a Betinha.

*

Em dois meses, os mamilos cresciam e os pêlos caiam; o remédio era hormônio. Tão logo descobriu, recusou-se a tomar. Betinha não podia deixar de contar a Miss que designou um capanga para fazê-lo engolir a dose diária. Diante das seguidas hesitações de Betinha, Miss teve uma conversa de ex-travesti pra travesti, e este lhe confessou a sua compaixão. Uma meia verdade; sentia era paixão.

– Quando eu começo uma coisa eu termino. É meu nome que está em jogo. Você sinta o que quiser, só não sabote, que eu te arrebento a outra metade.

– Se preocupa não. Sei também que se soltasse Robertinho, nunca mais ia ver...

Os dois enamorados (ele, por necessidade de amparo) viviam juntos. Era permitido ao cativo umas horas de sol no pátio, sob a guarda da jagunçaria. Belinha conseguiu o ingresso de um ventilador que alternava um silvo e um grunhido em contraponto, o que ajudava a passar o contratempo. Havia sempre um mea-culpa em tudo o que Roberto dizia. Era agora outro homem, de corpo – com tetinhas e depilado – e alma; sob terror constante, perdeu a carapuça da arrogância. O que fariam com ele? perguntava à amiga repetidamente. Esta lhe respondia apenas que não o matariam, caso se comportasse.

Deitada, ocultando a face ruim, Betinha tocou na pica do preso. Este fez menção de se desvencilhar mas aceitou, pois havia perdido a capacidade de recusar. Sem outras delongas, trocou a mão pela boca para regozijo do prisioneiro que sentia ali restituída a sua sexualidade. Passaram a dormir juntos naquele lúgubre quartinho, um hotel de luxo para a felicidade de Betinha. A ojeriza que a deformação do travesti proporcionava a Roberto era sublimada por seu hábito de olhar oblíquo o vazio.

*

Quarto mês de rotina, o capataz no controle do hormônio, Betinha servindo-lhe o possível, Missy Miss muitas vezes ausente por suas viagens. Depois de um sexo torrencial, Betinha dengosa sussurrou:

– Se Miss te solta nunca mais você queria me ver...

Roberto em silêncio.

– Eu nunca fui uma bicha bonita, agora sou medonha...

– Você salvou minha vida e eu fodi a tua.

– Voltaria pra tua casa, tua turma...

– Vou pagar uma plástica pra você, eu juro... se um dia sair daqui...

– Também... querer um gato como você, bonito, rico como é...

– Eu não sei de nada, Betinha, perdi tudo... não sei de nada... só tenho você.

A medonha se emocionou e saiu choramingando. De passagem pelo paiol, um cacunda nojento lhe pediu uma chupeta, o que ela rejeitou indignada, toda trejeitos, com aversão e desdém; bateu o portão às suas costas e desembestou pelo quintal. O homem não gostou da cena, ficou puto, entrou no quarto e estuprou um Roberto boneco, enquanto mantinha, por sadismo, o cano da pistola em sua cabeça. Betinha o encontrou mais tarde encolhido num canto, mudo, mudo até exclamar desesperado para a companheira:

– Eu te amo, te amo...

*

Missy Miss como um samurai apareceu de repente com seu quimono, acompanhado de seu séquito de travestis, alguns dos quais o dito cujo conhecia muito bem. Era outra vez o terror. Miss ordenou a um guardacostas que levasse a sensível Betinha para longe (que nessa altura já não escondia de ninguém a sua paixão).

– Chegou o dia, minha gente, que o nome de Missy Miss se espalhará para além dos confins desse sertão. Tirando a roupinha, gatinho. Tudo, tudinho. Ixe, tetinhas de mocinha. Não, não, quero elas assim, ó, Fafá de Belém. Unm, que bicha cheirosa... Olha só como Betinha trata nosso hóspede...

Roberto falou com respeito, mas firme:

– Vocês já acabaram comigo. Me mata, mas chega!

– Chega não, querido, o serviço não está completo.

Zum-zum-zum de ameaças e ironias. Conduziram-no à sala e o depuseram naquela mesma mesa de triste memória. Uma iniciou uma depilação depurada, outra preparava as seringas de silicone.

– Não vamos cortar o bagulho dele? Viajei até aqui pra quê, porra?

– Betinha implorou de joelhos, diz que ela sairia perdendo...

– Bebeta tem jeito não...

– Bicha besta de tão boa. Uma anja.

– Depois do que ele fez pra ela...

Riam, tagarelavam, enquanto faziam inúmeras aplicações naquele corpo sem alma; aumentaram seios, bunda, lábios, bochechas, modelaram um travesti exagerado mas vistoso, mesmo porque a matéria prima ajudava com seus belos traços originais. Separaram o casal por duas semanas, até que o líquido se acomodasse e as dores diminuíssem. Havia também um fundo de prazer sádico na turma em sacanear Betinha por esta ter, depois do trabalho que dera, se apaixonado pelo carrasco. Ela, inconformada, passou a temporada como uma adolescente, trancada numa das dependências da grande casa. Enfim, o momento aguardado: um contingente no pátio – travestis, empregados, pistoleiros, cachorros – para assistir ao reencontro dos dois. Missy Miss quieto, a meia distância.

– Olha que fizeram de mim...

– Oh, querido, que maldade...

– Agora sou uma puta também...

– Suas brutas! – Betinha, indignada, virando-se para a platéia.

– Mas ela ficou linda! – alguém zombou.

– Ele é meu homem, invejosas. Maldade! Maldade! Robertinho, te amo mesmo assim...

– Por favor, Betinha, agora Robertinha! – alguém interrompeu.

Foi quando ex-Roberto perdeu a cabeça que já não tinha:

– Eu quero que você se foda, Betinha, que a merda de Missy Miss se foda, que cada uma de vocês se fodam, podem fazer o que quiserem comigo, vou me matar mesmo...

– Ai, que macho! Agora que virou veado, voltou a velha macheza...

– Precisa aprender a falar, amor... com essa voz cê não pega ninguém...

– Não fala mais nada não, amor... – segredou Betinha, desconsolada, aflita, antevendo o que viria. Missy Miss, quieta até então, fechou o tempo:

– Olha aqui seu merda. Ninguém me chama de merda. É assim que trata Betinha, que deu tudo pra você? Cão, seu bosta, ó: vou cortar tua rola, e é já!

Chamando a cirurgiã de plantão:

– Corta a pica dele e joga pros cachorros...

Desespero do casal, que viu a coisa desandar de vez. Sururu histérico: não, não, corta, já, não, pode cortar, não... Minuto depois:

– Tu fica com a pica, mas escreve um bilhete...

Redigido nesses termos:

Pai estou chegando. Sou outra pessoa. Vocês nem reconhecerão seu filho. Mudei muito e me achei na vida. Já estou no Brasil. Por favor mamãe entenda que ainda sou seu primogênito. Me receba de braços abertos, por favor. Quero a família toda e meus amigos no salão do Country... dia tal, tal hora.

Desespero de Roberto.

– Puta merda, vão me entregar assim. Não vou não, de jeito nenhum. Porra! Podem me matar etc...

*

Já na capital, despediu-se de Betinha com um aperto de mão. Ansiada, ela pulou no pescoço de Belinha – o novo nome de guerra do mutante, agora travestido nos trinques do travestismo – ao mesmo tempo em que colocava o endereço de seu quarto na bolsinha dele. O carro seguiu com Belinha, Missy Miss e dois capangas em direção ao Country, onde chegaram propositadamente atrasados. O sequestro havia completado seis meses. Pularam o muro do clube num canto ermo previamente escolhido. Acompanharam-no, de arma em punho, até a porta de vidro do repleto salão, de onde puderam assistir, encobertos pela vegetação, à entrada solene de uma pata com salto alto. No primeiro momento, o choque se deu pela mera presença de um travesti naquele ambiente. Mas logo a ficha caiu, e estampou-se o espanto na cara da sociedade.

– Pai, olha o que fizeram comigo...

Foi o máximo que pode pronunciar, antes de ser alvejado por porradas e chutes do pai, enquanto este teve forças, do avô, tios e amigos... Entregava-se passivamente – apanhar já era um ritual. O silicone se espalhava deformando o corpo do recém-nascido. Num dado momento, a mãe abriu passagem no centro da arena, levantou o filho amorfo e berrou:

– Chega! Vá embora daqui! Este aqui não é o meu filho, mas não suporto ver meu sangue derramado. Já sofri demais. Ninguém sabe o que tenho passado. Você acabou com a minha vida. Vá embora, suma, desapareça, não volte nunca mais!

Belinha não ouvia o que era vociferado. Saiu cambaleando de calcinha, descalço, com as tetas tortas expostas e, por um inusitado instinto feminino - ou por acaso - com sua bolsinha a tiracolo. A pequena multidão ali observando, em frente ao salão. Uns ex-colegas animaram-se, vamos lá.

– Não quero mais que judiem dele, façam isso por mim – a mãe gritou.

Tropeçando sua nua figura pela Rui Barbosa, tomando buzinadas no ouvido, seguia simplesmente a ordem motora de seus passos. Seu calvário ainda teria requintes. O antigo grupo do ex logo o alcançou em três carros. Emparelharam – ele não olhava. Roberta, me dá uma chupetinha... e mil outras frases pouco inspiradas. Como o fantasma continuasse absorto em sua peregrinação, a turma desceu dos carros e o cercou. Uns passavam a mão em sua bunda, outros alertavam para não bater, que a dona Tal tinha pedido. Belinha parada, olhando oblíquo. Aquele que parecia ser o novo líder o abraçou fraternalmente, distanciou-se cinco passos levando o velho amigo no ombro e bradou ironicamente para a turma:

– Olha aqui, ninguém mexe com Roberto... ou com a Roberta... Eu quero falar com ele... – e, compassivo, dissimulava. – E aí, mano, como foi isso... que te deu na cabeça? – e o aconchegou ainda mais no braço. Belinha, carente, se abriu.

– Ninguém imagina, ninguém vai acreditar, to fodido mesmo, dói tudo, cara, você foi meu mano, precisa acreditar, caralho, to fodido, me sequestraram, cara, me sequestraram!

– Ixe, então foi isso, ela foi sequestrada... – uma das muitas vozes.

– Porra, deixa ele falar, ele tava falando! E daí?

– Me levaram aquela noite, no fim da festa. Eu não fui pra Europa, fiquei preso, não sei aonde, as bichas, lembra? queriam se vingar de mim, lembram? joguei aquela porra na cara do traveco, caralho, como me arrependi, justo a melhor pessoa de lá, que cuidou de mim...

– O cara delira... – um.

– As bichas levaram o cara pra casa, uau... – outro.

– Pera aí – o líder interrompeu – deixa o cara falar! Os travecas te sequestraram pra vingar e aquela do ácido cuidou de você...

– É, cacete, cês não sabem o que eu passei, olha o que me fizeram, vocês têm que contar pra mãe, merda, tá foda, me leva prum pronto-socorro, me transformaram na marra, cara, me deram hormônio...

– Êta estória arretada, porra! Na marra, cês viram? foi na marra! – um gordinho ironizava, outros tiravam igual. O líder organizava a desordem:

– Pode deixar, meu irmão, vou fazer a cabeça da tua mãe, pronto. Continua. Então você não queria ficar assim, elas te sequestraram e te fizeram, sem você querer, te deram hormônio, sem você querer...

– É, é...

– E aquela do ácido... como é que é?

– Ela foi boa demais comigo, me salvou, cês não imaginam, eu fodi a vida dela e ela ainda me salvou do pior...

Risadas forçadas. De repente o talzão fechou a cara, deu uma gravata no pescoço do coitado e cerrou os dentes:

– Então cê foi sequestrado, seu filho da puta, e as cartas, seu puto, e as cartas que sua mãe me mostrava, sua mãe, a pobre coitada, e a carta de Amsterdã, de Madri? veado, olha o que você fez com sua família, seu porra, com todo mundo... Eu não te arrebento agora em consideração à sua velha, seu porra, mas você vai dar, vai dar pra todo o mundo aqui etc...

Belinha paralisou-se, autômato em sua via sacra. Doía-lhe todo o corpo, mas agora ainda mais a alma, por não ter ninguém no mundo, por não pertencer a mundo algum. De todo modo, não havia mais espaço dentro de si para assimilar nova desgraça.

– Põe a bicha no carro.

Não deu tempo, a polícia chegou. Alguns e Belinha foram pra delegacia – aqueles, de passagem. Belinha estava presa – e sua história se espalhava.

– É o Roberto Delmanto Acioli!

– Telefona pro pai...

Não viria. E seu estado de dor e alienação era tal que não inspirava maiores sacanagens entre os policiais – desfaleceu numa cela e levaram-no para o hospital. Braço, pé e costelas quebrados, cirurgias por conta dos silicones, infecções, em suma, foi a melhor estadia dos últimos meses, Belinha apagou numa profunda sonoterapia.

Tempos depois, saiu de lá claudicante. Arranjaram-lhe uma muda de roupa e devolveram, a troco de troça, sua bolsinha de puta. Ela sorriu consigo mesma, pois agora podia discernir o absurdo de ainda lhe restar aquele acessório. No estacionamento do hospital, antes de descartá-la no lixo, abriu-a na ilusão de encontrar um trocado, encontrou o endereço de Betinha.

Dois dias esmolando pelas ruas do centro, de muleta e um braço enfaixado, dentre outras mazelas - um resto de orgulho o impedia de procurar a amiga. Por fim, alguém lhe pagou a condução para Guararapes, subúrbio de Jaboatão. Betinha abriu a porta e caiu de joelhos, agradecendo aos santos; Belinha percebeu ali que aquela era a única pessoa que possuía no mundo.

*

Betinha fazia do seu quarto-e-sala um salão de beleza para travestis, com o que conseguia uns trocados. Missy Miss também a ajudava pra amenizar a pobreza. Belinha precisava trabalhar, havia se recuperado, aprendeu a conviver com o seu vazio e sentia-se mais fortalecido com o amparo da companheira e colegas.

– Não sossego enquanto não te pagar a cirurgia. Pra porra da minha família essa grana não é nada.

– Se preocupe não, querido, minha alegria é só você comigo. Sou a frankenstein mais feliz do mundo. Só queria ir embora daqui. Meu sonho é São Paulo. Aqui você corre perigo.

– Nós vamos. Mas primeiro a cirurgia.

Belinha tinha sido recauchutada: seios, bunda e bochechas. E o dia chegou:

– Começo hoje, vou lá com elas.

– Ai, gatinho, uma sensação me aperta, sufoca, horrível. Tenho pressentimentos... tenho ciúmes... tenho pena...

– Precisamos da grana, e eu não sei roubar. Vou trabalhar.

*

Estava de fato bonita: os cabelos longos loiros, tetas mais adequadas, bunda arrebitada e, além do mais, levava consigo um respeitável membro. Pegou a manha, invertia a passividade na maior parte dos programas. Logo fez a clientela. Mesmo diante do sucesso na rua, o casal preferia seguir na pobreza e depositar a maior parte da grana na conta da futura cirurgia – sua capacidade de administrar, puxara ele do pai. Pagava um bom plano de saúde – somente para Betinha. Acabou o medo dos ex-amigos que, como sempre, passavam pela avenida causando terror; uma blitz nada delicada, a mando de Miss, acabou com a alegria dos idiotas que sumiram do pedaço. Ao menos em bando. E nos primeiros meses. Depois, alguns vinham sozinhos na calada da noite, amáveis e trêmulos, pagar alto por Belinha, a travesti mais requisitada de Recife. Com estes, gostava de simular respeito, seduzi-los e papá-los com enorme prazer – não bastava como vingança, mas amainava a brasa do ódio.

Seu pai mandou matá-lo no primeiro ano, quando sua fama alcançou as rodas tradicionais. O pistoleiro errou de veado e matou uma parceira. Missy Miss, na mesma semana, invadiu com os seus a casa dos Delmantões, estuprou o pai na frente da mulher e empregadas, tirou fotos de sua bunda arreganhada, da boceta arriada da mamãe... e assim nunca mais se meteram. E do que roubaram, não esqueceram de levar uma parte pra Belinha.

– Tá aqui tua herança.

– Obrigado, Miss, quero não. Dinheiro do meu pai é mais sujo que cu de bacharel. Quero só trabalhar em paz.

Missy Miss agora admirava aquele que chamava de minha cria. Belinha o respeitava formalmente e armazenava seu ódio num armário trancado.

*

Estrela da noite, estrela da rua – mas não fazia inveja às amigas, pois as ajudava em tudo o que podia. Trabalhava com enorme avidez. Cobrava caro de políticos e homens de sociedade – em menos de dois anos fez a grana da cirurgia.

– Vamos pra São Paulo com isso, querido. Esqueça essa cirurgia...

– Nunca. Você nem sai na rua... Resta saber onde operar.

Queria o melhor. O tal Pitangui – não confiava nos médicos da cidade, preconceituosos e conhecidos do pai. Chegaram em Rio de Janeiro no começo dos anos noventa com o nome de um cirurgião recomendado, que acabou por fazer um excelente trabalho. Betinha não era mais uma aberração; chamava ainda a atenção dos olhos do mundo, mas virou gente e, curiosamente, mais masculinizado, pois o médico a proibiu de qualquer silicone na face. Estavam felizes.

– Eu te amo muito.

– Eu também te amo.

*

Tarefa cumprida, culpa expiada. E o que se sucedeu? O esperado: não encontrava mais seu lugar ao lado de Betinha. Seu coração era ódios. Nem Rio, nem São Paulo: voltaram pra Recife. O dia-a-dia da labuta era um ócio. Voltava a sentir dentro em si um velho conhecido, o homem. Sonhava com mulher, mas sua aparência espantava qualquer experiência mais íntima. Trepou com algumas putas amigas, mas nenhuma nem nada o satisfazia. Era seu mundo que caía novamente. Se deixasse a profissão, o que faria? Fosse Recife, fosse São Paulo... levaria a putaria consigo. Não havia retorno, não tinha aonde ir e esgotara o tempo de ficar. Betinha não lhe preocupava mais: agora era dona de um salão de beleza incrementado e tinha dinheiro no banco. Tornara-se ensimesmado, distante, irascível, para a desolação da renovada companheira. Bebia e cheirava muito.

*

Soube da notícia por um freguês. O vulcão entrou em erupção. Discretamente vestido, foi ao hospital onde o pai se preparava pra morrer. Tirou informações de uma débil funcionária; desviou de médicos aqui, fingiu que não ouvia enfermeiras ali, até alcançar o quarto do pai. Entrou.

– Quem é a senhora?

– E quem é o senhor?

Derramou no rosto do moribundo um litro de ácido sulfúrico e fugiu. Ato contínuo, partiu com seu carro para a casa da família, no Rosário, onde se insinuou ante empregados perplexos e acabou sendo recebido pela abalada mãe.

– Eu amava muito a minha mãe.

– Eu nunca deixei de pensar em você... – gaguejou, trêmula, diante do horror à sua frente: um estranho com uma faca na mão.

Mentia a mulher – facada nela! Uma desconhecida irmã surgiu de repente e levou um corte fundo de recordação. Depois seguiu a sequência prevista de endereços. Facada terminal no tio dentro de sua revendedora de carros. A polícia atrás, mas ele já estava em Piedade, subindo as escadas escuras do escritório de advocacia do amigo líder, aquele. Não o encontrou – faca apontando o pescoço da gostosa secretária, até que lhe revelasse o restaurante em que o patrão almoçava. Antes de sair, estuprou-a demoradamente, e sentiu no toque, no gosto, no gozo tudo o que perdera na vida. A experiência o esmoreceu quase a ponto de perder a determinação.

Agora rompia uma teia de olhares abismados de senhores e senhoras de dentro do restaurante para se sentar cara a cara com o bem sucedido colega de profissão, à direita de um gordo de terno.

– Como vai, doutor Jarbas Ramalho Vieira Gaspar?

– Ora, ora, quem vem lá, se não é o famoso Roberto...

– Roberto, não, Belinha.

– Vixe, sim, a alinhada Belinha...

E era uma vez a piadinha; facada no pescoço, alvoroço no salão, gordo debaixo da mesa, garçom espetado no caminho, cujo fim seria Garanhuns, cujo fim seria Missy Miss. Mas a polícia cercava o local, ele correu por correr, não dava, não deu. Antes de morrer, pensou baixinho:

“Miss estava na dele. Tudo bem. Não era o pior. Queria matar, não deu, mas não fracassei”.




Guache (12,5x25 cm)