Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


31.8.12

Parafina (21x23 cm)

29.8.12


Visão do Alto    (trecho do livro O Monociclista)
 
 
Subo e desço montanhas
não há nada de estranho;
um dia como a ciência prega
com o sol na hora certa
e os bois no seu rebanho.
 
Dia comum, opaco e real
como o ateu costuma rezar;
não encontro explicação
é inútil a engenhosa oração
e o vento é uma corrente de ar.
 
Não há nada trás dos montes
gavião voa ao léu e o céu é azul;
este capim é capim-gordura
esta cabeça é cabeça-dura
e o nome do boi é boi-zebu.
 
 
 
 

22.8.12

O Bunda 

 

Conhecido como Bunda, por seu jeito peculiar de mendigar “uma bunda, pelo amor de Deus!” para qualquer pedestre feminina. Apanhou uma dezena de vezes, até o povo se acostumar e achar graça; certamente sua perseverança despertou a compaixão de todos. Nos últimos tempos virou ele próprio uma espécie de fetiche, estimado e protegido pelos habitués da padaria onde fazia ponto, que lhe garantiam a segurança quando desavisados machistas revoltavam-se contra o inocente molambento esticado na calçada de olho fixo na mulher a impetrar com voz de barítono: “uma bunda, pelo amor de Deus!” Na verdade, os homens ali, na entrada do estabelecimento, de cerveja na mão, aguardavam excitados a aproximação de transeuntes forasteiros, principalmente casais, que passavam distraídos. A treta era certa, a diversão garantida. Se o estranho partia para a ignorância, sempre alguém intercedia a tempo, evitando o pior.
Ele nunca emitiu outra frase, para tudo o mais era mudo. Mesmo quando a polícia o levava, retornava assim que podia à calçada da padaria para soltar com vigor à primeira fêmea passante o seu “uma bunda, pelo amor de Deus”. Para homens sequer levantava a cabeça, chegava a cerrar os olhos, como se sentisse uma dor ou nojo; todavia, quanto a elas, além do seu mote, lançava um olhar cândido e profundo, algumas vezes acompanhado de um suspiro. Nunca agradeceu pelas moedas, roupas e comidas que a turma lhe ofertava com prodigalidade. Sorria discretamente quando crianças o encaravam curiosas – para estas somente demonstrava respeito.
O Bunda era sereno, sabia esperar. Uns achavam que tinha formação, que um trauma o deixara assim, talvez a perda de um ente amado. De fato, havia nele uma aura nobre. Queriam lhe oferecer uma prostituta, ele só balançava a cabeça negativamente; uma noite lhe apresentaram à revelia uma tal que aceitara a incumbência por um bom cachê; franziu a testa como se perdesse a paciência, recolheu o acampamento e foi embora. O mendigo era digno, e seu cartaz subia. Um psicólogo frequentador do local dizia que ele vivia sob hipnose, e que esta poderia ser desfeita caso uma mulher lhe desse espontaneamente a bunda. Não levaram o cara a sério.
Uma cabeleireira japonesa, cujo salão ficava na mesma quadra e que, portanto, conhecia-o muito bem, não desdenhava daquela súplica ininterrupta como era costume entre seus pares. Humilde e solitária, avançava já naquela idade em que as esperanças vão sendo corroídas pela rotina até a extinção. Quem sabe por isso sentia certa inquietação cada vez que passava por ele e recebia o pedido. Sem ignorá-lo, retribuía com o seu olhar o olhar do pobre. Considerava aquele homem um homem, contudo, evidente, guardava aquilo pra si. O que lhe pegava não era uma atração, nem compaixão, mas uma cisma, uma curiosidade, ou talvez a instigasse uma outra obsessão oculta: a sua. Para a japonesa, aquele homem era alguém, ao menos tinha conseguido obter a atenção e o cuidado de tanta gente com o seu delírio, e ela não, ninguém a via, era transparente ou totalmente opaca. 

Vinte e três horas, comércio fechado, nenhum movimento na rua; aproximou-se do Bunda e, antes de ouvir seu pedido, falou baixinho, afetivamente:
– O senhor quer uma bunda? Me acompanhe.
O homem levantou-se e seguiu a mulher. Entraram no salão através de um corredor externo escuro, ladeado por paredes altas, ao cabo do qual se abria uma pequenina área ocupada quase exclusivamente por um banco de madeira. Sem qualquer cerimônia, deu-lhe as costas, baixou a saia e a meiacalça até os joelhos, deixando saltar o largo quadril rosado, bem feito, banhado pela palidez de uma lâmpada de poucos watts. E assim ficou, ali, apoiada no banco, disposta a tudo, inclusive ao sexo, caso fosse possível. O homem nem a tocou; caiu de joelhos com as palmas das mãos coladas parecendo rezar para aquela bunda santa, fechando e abrindo os olhos com fervor. A japonesa sorriu daquilo que considerou ser uma estranha preliminar; sentia um frio agudo no lombo e na alma, mas não tinha pressa. Contudo, de repente, sua paciência terminou e se vestiu de pronto:
– Agora chega, vamos.
O homem ergueu-se em lágrimas. Fez à dona da bunda uma respeitosa reverência e saiu. No dia seguinte, havia desaparecido. 

Foram cinco anos, tempo suficiente para o Bunda ser esquecido e a mulher assumir-se como idosa. O aluguel aumentou, o salão faliu, preparava-se naqueles dias para partir. Um homem bateu em sua porta com um buquê de flores. Vestia um terno desbotado mas ajeitado e sapatos novos. Tinha raspado a barba, cortado os cabelos, estava mais gordo e sadio, e sorriu para a senhora espantada com dentes novos. Como o olhar era o mesmo, a japonesa o reconheceu e caiu na gargalhada:
– É o senhor, seu Bunda? Entre...
– Por obséquio, madame, não posso ouvir a senhora falando esse nome...
– Vamos, entre, sente, então... está vivo!
– Senhora, vim pedir sua mão em casamento.
Bunda apresentou-se como João Everaldo de Moreira Teles. De alguma forma havia refeito sua vida e relatou a ela com minúcias o quanto teve que esperar por esse dia.
– Quase não me pega mais...
A japonesa não precisava mais se preocupar. Ele a levou para uma casinha simples, mas muito arrumada.



 
Pastel (19x27,5 cm)

18.8.12

Guache (20x22,5 cm)

15.8.12


Relatório Final       (segunda versão)



Não havia homem algum na cidade
A lua desceu literalmente no jardim
Olhava encantado o relógio de carrilhão
Ninguém me achava no meio do capim

Onde a Araneae fazia teias entre os vãos.

E aquilo no céu era mesmo um tornado
As matracas acabaram com as flores do ipê
Pensar que estava preso na viatura
Dois vidros separavam eu do meu bebê

Desde o começo ela foi prematura.

Joguei 90% dos trabalhos no lixo
Uma bruxa de repente escancarou a janela
Cheguei de viagem, ele tinha morrido
Brochei quando a mina apagou a vela

Que iluminava seu corpo bonito.

O grande banquete era porco com pêlo
Enfim se rendeu e me deu sua mão
Nomes como Neniné, Mandichole, Luz-quebrada
Quem nos recebeu foi um pastor alemão

Minha juventude teve sua graça.

O bem que eu sentia nas piscinas geométricas
Roubou minhas figurinhas atrás da parede
Depois do casebre, a floresta amazônica
Esperei seis meses deitado na rede

Com o dia-a-dia repetindo sua crônica.

O corcunda tocou no meu pinto na nave da igreja
Escureceu e virou um labirinto de dunas
Deitado na cama com o radinho de pilha
À noite o povo punha os colchões nas ruas

E as mulheres teciam balaios de palha.

As andorinhas escureceram o dia mais cedo
Era um menino contando os balões
Me entregaram o móbile todo destruído
Foram mais de três horas cantando canções

Num palacete imperial quase ruído.

Naquele cubículo fui um grande pintor
E eu nem sabia o que era personalidade
Saiu um urubu do bumbum do cavalo
Eu e ela curtimos a senhora tempestade

Deitados no chão da casa da Amaro.

Pobre querido ateliê cheio de esperança
Ainda hoje sonhei novamente com o vulcão
Mico e jogo de varetas de presente de Natal
A gata era ela uivando de tesão

Enquanto eu fazia tai-chi no quintal.

O caixão não passava no corredor
Me afogava com a bóia presa aos pés
O silêncio foi a melhor despedida
A primeira palavra que falou foi Zezé

Até hoje a família não acredita.

Enfiaram um lápis no cu do Viana
Crianças também tomavam a auasca
Saí desatinado quando o jogo acabou
Depois da feira, me tranquei em casa

Já sofri o pão que o diabo amassou.




Bico de pena (29,5x21 cm)


14.8.12

Barro (14x8 cm)



9.8.12

Barro (7x14 cm)

7.8.12

3.8.12

Grafite (21x30 cm)

1.8.12

Guache (22x16 cm)


O Amor do Eco



O amor do eco ecoa...
do eco ecoa...
ecoa...