Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


1.11.11

No Portal dos Mortos



O pintor estava chateado, sabia que havia morrido. Diante dele, uma grande porta e um porteiro:

– Seu nome.
– José Tatit.
– Sim, estou vendo em sua ficha. Do Brasil. Pintor. Pintor frustrado, etc., etc. Bem, nesta porta você deve decidir o destino de sua obra. São duas as opções: deixá-la à deriva na Terra, podendo vir a ser reverenciada ou esquecida, ou trazê-la consigo e fazer parte do museu dos mortos.
– Prefiro que venha comigo, mas nada de museu; quero tê-la ao lado, em minha próxima casa – se nesse mundo houver –, como foi em vida.
– A morte não continua a vida. Esta alternativa não existe.
– Mas que museu é esse que me receberia, diante de milhares de pintores geniais que me antecederam? Na Terra, nem uma única galeria me aceitou...
– Explico sobre o museu, já que realmente não é possível que recém-morrido possa sabê-lo. Trata-se de um museu quase infinito, cuja obra completa de qualquer artista é exposta num magnífico salão projetado em perfeita harmonia com seu estilo, e visitado pelos mortos – todos os mortos – que contemplam cada trabalho com enorme paciência e regozijo – você há de convir que tempo não lhes falta. Não há distinção alguma entre aqueles que vocês chamam de grande artista e um mero artesão, ou entre profissionais e os que se dedicaram às artes como hooby. O mesmo procedimento se dá com os músicos, literatos, atores, dançarinos, como também, nas áreas do conhecimento, os filósofos, cientistas, religiosos – todos ganham seu espaço próprio. Até os esportistas exibem-se em estádios sempre cheios. Você pode notar que o mundo, para além desse portal, é generoso.
– E quanto às obras reconhecidas em vida, que pertencem à humanidade?
– Se estão lá não podem estar aqui. Seus autores e seus amantes vivem aqui de sua memória.
– Por quê, dentre tantas possibilidades, algum morto se dedicaria, mesmo sem ter o que fazer, por algo que nenhum vivo se interessou?
– Na eternidade, o passatempo é se dedicar a conhecer a individualidade de cada um dos trilhões de seres que nasceram e morreram na Terra, incluindo obviamente as plantas e os animais – e os artistas são considerados o filé-mignon. A arte aqui é saboreada na medida da capacidade destinada a cada um. Não se trata da competição típica dos vivos, em que um relativo maior diminui um relativo menor; a obra para nós é expressão do esforço de um indivíduo em dar conta da tarefa a ele encomendada, o que significa exatamente referendar os desígnios de Deus. Qualquer traço de um pintor – para ficarmos em sua área – é um gesto divino, e esta é a única forma de sondá-Lo, pois, mesmo aqui, Ele não se apresenta senão como reflexo. É claro que tudo isso que dá sentido à eternidade você somente poderá apreender após ultrapassar esse portal. Mas primeiro precisa arbitrar; trazer sua obra ou deixá-la na Terra e torcer por um reconhecimento pós-morte, que, adianto, acontece na proporção de um pra cada cinco milhões quinhentos e trinta e cinco mil, trezentos e quarenta casos.
– Você não me dá alternativa. A morte me pegou de surpresa, quando me parecia aproximar o reconhecimento. Tive pelo menos três sinais nítidos nesse último ano. O último, inclusive, apontava para uma retrospectiva num centro cultural...
– Neste caso, se você não estiver inventando – nada vejo sobre isso em sua ficha –, a proporção cai para a casa de algumas centenas de milhares. Escolha.
– Se trouxer minha obra pra cá, o que acontecerá com aquela que deixei em casa?
– Não se preocupe, isso é com a gente. Usamos traça, mofo, incêndio, ou simplesmente incitamos sua nora a chamar um carroceiro para dar fim a tudo; são muitas as possibilidades, esteja certo de que em três ou quatro anos não restará nem a sua assinatura, e esse tempo, transposto pra cá, não vai além do fim da nossa conversa (que já se estende em demasia).
– Os mortos, pelo que me diz, continuam comportando-se como indivíduos?
– Sim e não. Mantém-se o espírito, mas não há sentido aqui algum para qualquer ação que signifique trabalho ou criação. Porém, a eternidade precisa ser vivenciada; pode imaginar a importância para nós de uma novidade? Cada vez que aparece uma nova obra é grande a fila. Tudo precisa ser rediscutido, redimensionado. Calcula a qualidade dos mortos com quem terá o prazer de tratar? Agora, você e as coisas que deseja trazer consigo só entram aqui uma vez; se acaso passar deste portal de mãos vazias, jamais poderá resgatar a matéria abandonada e se contentará em descrever aos colegas todo o esforço de sua vida. Escolha.
– Confúcio. Giotto. Kafka. Hiroshigue. Meu pai... Uma sala especial divinamente iluminada... Posso imaginar os trabalhos em ordem cronológica, desde as cópias infantis de Batman feitas ao pé da escada até o derradeiro autorretrato... Olhe, porteiro, agradeço seu empenho, mas digo não. Depois de tudo o que ouvi ficou claro: vivi a vida inteira colado em minha arte, nunca pude me separar – justamente o destino inglório me impediu. Tive de amá-la, não havia alternativa. Agora você me propõe que nem a morte nos separe. Deixe, deixe pra lá; aliás, se vocês não jogarem traças divinas, as mundanas meu filho há de cuidar. Será um estorvo, eu sei, mas ele sempre foi atencioso com a minha obra e não duvido que a carregue consigo, à sua hora, debaixo do braço. E, pelo que você me conta sobre o tempo, talvez ele já apareça quando eu mal tiver passado dessa porta. Mas esse hiato é a minha libertação. Vale o risco.



Pastel (19x25cm) 1981 


4 comentários:

Tamara disse...

Adorei. Mas acho que o museu dos mortos esta parecendo que e' aqui : Inhotim ( rs) . Bj Tamara

Bel Tatit disse...

Nossa Zé que texto lindo! Deu vontade de passar pras outras pessoas! bjs

Carol Tiussi disse...

Deu vontade de construir um museu dos mortos em vida! Muito bom!!!!

Anônimo disse...

Até que nem a morte nos separe.