O pintor estava chateado, sabia que havia morrido. Diante dele, uma grande porta e um porteiro:
– Sim, estou vendo em sua ficha. Do Brasil. Pintor. Pintor frustrado, etc., etc. Bem, nesta porta você deve decidir o destino de sua obra. São duas as opções: deixá-la à deriva na Terra, podendo vir a ser reverenciada ou esquecida, ou trazê-la consigo e fazer parte do museu dos mortos.
– Prefiro que venha comigo, mas nada de museu; quero tê-la ao lado, em minha próxima casa – se nesse mundo houver –, como foi em vida.
– A morte não continua a vida. Esta alternativa não existe.
– Mas que museu é esse que me receberia, diante de milhares de pintores geniais que me antecederam? Na Terra, nem uma única galeria me aceitou...
– Explico sobre o museu, já que realmente não é possível que recém-morrido possa sabê-lo. Trata-se de um museu quase infinito, cuja obra completa de qualquer artista é exposta num magnífico salão projetado em perfeita harmonia com seu estilo, e visitado pelos mortos – todos os mortos – que contemplam cada trabalho com enorme paciência e regozijo – você há de convir que tempo não lhes falta. Não há distinção alguma entre aqueles que vocês chamam de grande artista e um mero artesão, ou entre profissionais e os que se dedicaram às artes como hooby. O mesmo procedimento se dá com os músicos, literatos, atores, dançarinos, como também, nas áreas do conhecimento, os filósofos, cientistas, religiosos – todos ganham seu espaço próprio. Até os esportistas exibem-se em estádios sempre cheios. Você pode notar que o mundo, para além desse portal, é generoso.
– E quanto às obras reconhecidas em vida, que pertencem à humanidade?
– Se estão lá não podem estar aqui. Seus autores e seus amantes vivem aqui de sua memória.
– Por quê, dentre tantas possibilidades, algum morto se dedicaria, mesmo sem ter o que fazer, por algo que nenhum vivo se interessou?
– Na eternidade, o passatempo é se dedicar a conhecer a individualidade de cada um dos trilhões de seres que nasceram e morreram na Terra, incluindo obviamente as plantas e os animais – e os artistas são considerados o filé-mignon. A arte aqui é saboreada na medida da capacidade destinada a cada um. Não se trata da competição típica dos vivos, em que um relativo maior diminui um relativo menor; a obra para nós é expressão do esforço de um indivíduo em dar conta da tarefa a ele encomendada, o que significa exatamente referendar os desígnios de Deus. Qualquer traço de um pintor – para ficarmos em sua área – é um gesto divino, e esta é a única forma de sondá-Lo, pois, mesmo aqui, Ele não se apresenta senão como reflexo. É claro que tudo isso que dá sentido à eternidade você somente poderá apreender após ultrapassar esse portal. Mas primeiro precisa arbitrar; trazer sua obra ou deixá-la na Terra e torcer por um reconhecimento pós-morte, que, adianto, acontece na proporção de um pra cada cinco milhões quinhentos e trinta e cinco mil, trezentos e quarenta casos.
– Você não me dá alternativa. A morte me pegou de surpresa, quando me parecia aproximar o reconhecimento. Tive pelo menos três sinais nítidos nesse último ano. O último, inclusive, apontava para uma retrospectiva num centro cultural...
– Neste caso, se você não estiver inventando – nada vejo sobre isso em sua ficha –, a proporção cai para a casa de algumas centenas de milhares. Escolha.
– Se trouxer minha obra pra cá, o que acontecerá com aquela que deixei em casa?
– Não se preocupe, isso é com a gente. Usamos traça, mofo, incêndio, ou simplesmente incitamos sua nora a chamar um carroceiro para dar fim a tudo; são muitas as possibilidades, esteja certo de que em três ou quatro anos não restará nem a sua assinatura, e esse tempo, transposto pra cá, não vai além do fim da nossa conversa (que já se estende em demasia).
– Os mortos, pelo que me diz, continuam comportando-se como indivíduos?
– Sim e não. Mantém-se o espírito, mas não há sentido aqui algum para qualquer ação que signifique trabalho ou criação. Porém, a eternidade precisa ser vivenciada; pode imaginar a importância para nós de uma novidade? Cada vez que aparece uma nova obra é grande a fila. Tudo precisa ser rediscutido, redimensionado. Calcula a qualidade dos mortos com quem terá o prazer de tratar? Agora, você e as coisas que deseja trazer consigo só entram aqui uma vez; se acaso passar deste portal de mãos vazias, jamais poderá resgatar a matéria abandonada e se contentará em descrever aos colegas todo o esforço de sua vida. Escolha.
– Confúcio. Giotto. Kafka. Hiroshigue. Meu pai... Uma sala especial divinamente iluminada... Posso imaginar os trabalhos em ordem cronológica, desde as cópias infantis de Batman feitas ao pé da escada até o derradeiro autorretrato... Olhe, porteiro, agradeço seu empenho, mas digo não. Depois de tudo o que ouvi ficou claro: vivi a vida inteira colado em minha arte, nunca pude me separar – justamente o destino inglório me impediu. Tive de amá-la, não havia alternativa. Agora você me propõe que nem a morte nos separe. Deixe, deixe pra lá; aliás, se vocês não jogarem traças divinas, as mundanas meu filho há de cuidar. Será um estorvo, eu sei, mas ele sempre foi atencioso com a minha obra e não duvido que a carregue consigo, à sua hora, debaixo do braço. E, pelo que você me conta sobre o tempo, talvez ele já apareça quando eu mal tiver passado dessa porta. Mas esse hiato é a minha libertação. Vale o risco.
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Pastel (19x25cm) 1981 |
4 comentários:
Adorei. Mas acho que o museu dos mortos esta parecendo que e' aqui : Inhotim ( rs) . Bj Tamara
Nossa Zé que texto lindo! Deu vontade de passar pras outras pessoas! bjs
Deu vontade de construir um museu dos mortos em vida! Muito bom!!!!
Até que nem a morte nos separe.
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