Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


6.3.13

Essa pausa permanecerá pelo menos até o mês de abril.
Descupem-me a falta de informação.


Vazio agudo
Ando meio
Cheio de tudo.
 
Paulo Leminski


13.1.13

Pausa para refletir.

18.12.12


Natal
 
 
Ninguém no alto do morro
eu me ponho bobo a rezar:
meu Deus, me dê um sinal
meu Deus, fale comigo
eu estou tão perdido
nesta noite de Natal...
 
Como um milagre ao avesso
tudo brilha ainda mais real
na pele prata dos paralelepípedos,
enquanto nuvens em reboliço
anunciam uma tempestade
que lembra a pintura do Bruegel.
 
Dois pios: um pio e seu eco
— e uma gaivota na escuridão
rasa sobre mim. Nada não.
De repente um calafrio
— gaivota não voa à noite!
Era uma aparição.
 
A ave volta e para pênsil
e eu levito suavemente tenso;
ela sobe e eu desço
feito uma gangorra
ela vem e eu vou
feito um pêndulo.
 
Ou como se valsássemos em silêncio
sobre os telhados da cidade...
porém,  a velocidade da pomba guia
lança-me num vácuo imenso
como se o pêndulo rebentasse
no ponto extremo.
 
E sou chupado por um tufão
e tragado por suas entranhas
em turbulentas contrações;
esmagado, esticado, destruído
observando no último minuto
que acabo nas tripas do infinito.
 
(Não foi bem assim
a duração e o sentido.
Era a minha vida revista
em reviravolta no redemoinho;
toda ignorância, toda mesquinhez
toda arrogância do caminho.)
 
Quando desperto
tenho o corpo torto e virado
deslizando para um  flanco
onde a refrega é mais fraca
e por ali vou saindo e caindo
de cabeça numa praia.
 
Esfolado pelo tombo
sinto a brisa arder meu rosto
um ardor delicioso de sentir;
estou vivo, fui indultado!
mas sem passado ou futuro
pra onde ir?
 
Entro numa casa vazia
sento num degrau, cansado
e assisto aos atônitos veranistas
reparando estragos de uma tempestade
despropositada e desproporcional
que estragou a noite de Natal.
 
 
 
 
 

16.12.12

Bico de pena e pastel (20x24,5 cm)

15.12.12

Ilustração - carimbo e aquarela (11x11 cm)

10.12.12


Decameron  (de Pasolini)
 
 
No afresco que eu sonho
Nossa Senhora está viva
Tudo em volta se anima
É real a natureza simbólica.
 
No afresco que eu pinto
Maria é de cor e contorno
A alegoria só serve de adorno
Para uma parede católica.
 
 


Xilogravura (30x22 cm)

8.12.12


Minha Flor       (revisitada)

 

Um milagre vegetal
Que nada deve à ressurreição;
Uma flor, flor mesmo
Símbolo do efêmero
E da beleza fugas
Essa flor não morre, aliás
Morre, mas renasce sempre
Em qualquer época do ano
Num ciclo atemporal.
 
Achei o vaso no quintal
Com duas folhas velhas
E um brotinho de nada
Quando a levei pra sala.
Desde então floresce
E não morre, aliás
Morre e logo renasce
Mais branca, mais lilás
Essa flor paranormal.
 
Apesar da metáfora banal
Não posso deixar de relacionar
Minha flor com minha dor
Pois não me teria sido dada
À toa; eu também não morro
Aliás, morro, morro sempre
Mas renasço, e ao renascer
Alquebrado, lá está minha flor
Misteriosamente fatal. 
 
 
 
 

3.12.12

 
As Três Latinhas
 
 
Eu era casado com alguém que não recordo, sei que a Didi era bebê. Levava cinco cruzeiros para compra do lanche do jantar. Quase em frente ao falido mercado Cooperativa de Cotia, no Largo das Batatas, estanquei-me pela enésima vez para assistir à antiga arte de roubar dinheiro dos pobres, o jogo das três latinhas. O prestidigitador embaralha três latinhas sobre uma mesa improvisada de caixotes, forrada por uma folha de jornal, mantendo uma bolinha de feltro na ponta do indicador e o médio; de repente a esconde e aposta com os transeuntes onde está. Canta um estranho mantra hipnótico, que é interrompido no momento em que lança o valor da aposta. Paga o dobro, e de quando em quando propõem rodadas de fogo. Sempre tive pena ver aquele povo perdendo todo o dinheiro com pegadinhas banais (eles apareciam especialmente em dias de pagamento). Digo banal porque, para aumentar a confiança do apostador, o crupiê chegava ao cinismo de levantar a latinha com o bolinha; enquanto o coitado distraia-se um segundo tirando o dinheiro do bolso, ele simplesmente trocava a posição de uma das duas latinhas vazias, de modo que a bolinha que ocupava a latinha do centro, por exemplo, passava para a esquerda ou direita. Este mero reposicionamento era o suficiente para o opostador, com toda a segurança, levantar a latinha central e se espantar pela bolinha ter desaparecido. Um dos muitos truques tolos. Era frequente o inclusive o consentimento de que se pusesse o dedo sobre a latinha para evitar qualquer alteração, ou mesmo, quem desejasse, que conferisse se a bolinha marota continuava no lugar -  sempre que sentia que a pequena aglomeração em torno havia se inibido de apostar. Acontecia também de o cara deixar de fato que vários ganhassem, pois sabia que o dinheiro retornaria nas rodadas subsequentes. Outro recurso era fazer um cúmplice ganhar muita grana – servia de chamariz. O bando era formado por esse cúmplice vencedor e por outros dois a meia-distância, em pontos estratégicos, que assobiavam com a aproximação da polícia e serviam de segurança contra apostadores desesperados que perdessem o controle. A tentação de me arriscar crescia a cada dia dentro de mim. Ia embora com o coração batendo.
Sentia que não era bem vindo na roda, um tipo como eu, branco, estudado, com cara de esperto. Não seria páreo pra mim aqueles truques dirigidos para quem nunca armou um puzzle, nunca procurou o Wolly, nunca resolveu problemas de palitos do Tesouro da Juventude, nem sabe o que é tan-gran, nem onde fica o Japão e, muito menos, fosse da faculdade de Física. Naquele dia, cinco cruzeiros era muito pouco. Com cinco faria dez - e teria sabedoria de parar por aí. Poderia levar umas surpresinhas para a casa. Quem sabe não fizesse disso um costume, um milagre da multiplicação das notas (ainda não sabia que o milagre, que de fato existe, exige inocência); todos os dias trocar cinco por dez e jantar melhor com minha família. Quanto valeria aqueles cinco da época? Imagino 200g de presunto, 200g de queijo, pãezinhos, leite, um pacote de macarrão, meio quilo de carne moída, talvez ainda um sabão em pó pra mulher e uma papinha pra a filha. Achava pouco. Dobrar significava, para além disso, duas garrafas de cerveja, um bom tablete de chocolate, uma lata de goiabada, queijo branco ou, no lugar destes dois últimos, um pedaço de provolone. Meu coração batia como nunca. Estudava rodada por rodada e, em todas elas, ganharia facilmente. Precisava vencer o medo; amassei o dinheiro na palma da mão para não desviar o olho, não era bobo. Me preparei para o bote. O plano era pôr o dedo sobre a latinha como garantia, pagar a aposta pedida (o mínimo era os tais cinco) receber a grana e sair de fininha (ninguém era obrigado a continuar no jogo, eu é que tinha pudor). Minha excitação fazia o lusco-fusco do fim de tarde parecer mais lusco e fusco que nunca ou a bolinha suja se camuflava na folha cinza do jornal... Besteira. Vinha do tremor e da zoeira. Contudo, assim não seria certo arriscar, resolvi ir embora, voltar mais tarde, refeito. No exato instante que partiria, um cúmplice que não parecia cúmplice à minha frente pôs o dedo na latinha e conclamou todos os presentes; era uma rodada de fogo e a banca apostava cinquenta! Isso significava juntar de cinco a dez de cada um, e no final repartir o lucro. Ele quase berrava, e encanou especialmente comigo, põe, põe, olha aqui (levantava a latinha), está aqui, é só casar, porra, vamos lá, ele mesmo já dera vinte, outro ali, outro acolá, tive tempo só de reparam no banqueiro impassível e meu cinco amassado e suado saiu da minha mão sem que eu percebesse. E depois, olhar o cúmplice abrir a latinha vazia e fingir uma cara de oh!
Voltar pra casa sem nada, encontrar uma desculpa para a mulher e sobretudo controlar a química descontrolada do meu corpo, o sufoco... Um mês depois, atravessava o viaduto do Chá e me deparei com outro jogador. Este era o diabo em agilidade. Cantava o mesmo mantra enquanto embaralhava as latinhas, de repente a bicha sumia dentro de uma delas, e raramente eu sacava o destino. Cheguei a achar que ele a escondia na mão, mas o povo, depois de perder, conferia e ela estava lá, na latinha mais improvável. Enfim: a banca estava rodeada de tipos refinados, advogados, estudantes, comerciantes e tal. Então entendi o que havia acontecido comigo: os malandros dançavam conforme a música. Ele não era melhor que o meu do Largo da Batatas: unicamente jogavam de acordo com a natureza dos estúpidos que apostavam. Ali, ante os refinados, mostravam toda a habilidade; lá, no meu bairro, jogavam pro gasto com gente batata.
 
 
 
 
Xilogravura (15,5x11,5)
 

2.12.12

Bico de pena (13x20,5 cm)

28.11.12


Ou
 
 
Ou não me conheço
Ou estou com febre
Ou me aproximo
Ou não tem sentido.
 
 
 
 
 

22.11.12


Resposta         (segunda versão)
 
 
Quero sentir o sabor da pinga
que um cara me serviu em Caratinga
"é pura, de cabeça, envelhecida etc."
de fato, nunca bebi uma dessa.
Trouxe um litro pra São Paulo
mas aqui a pinga tinha gosto de álcool
o que me deixou surpreso, ou quase
pois logo entendi a metamorfose:
este sabor é de dia paulista
este sabor é de rotina
o gosto mudou porque a pinga
sente a falta de Minas
porque até a pinga é viva
e chegar numa cidade cheia de conhaque
whisky, vodca e vinho importados
não é fácil para um pobre destilado.
 
Isso posto, doravante
não quero saber de nada que fuja à ordem da natureza
daquilo que nela é fugaz ou permanente
que no ser fugaz me ensina a seguir
e no ser permanente, o essencial.
Digo isso de um modo geral para que se entenda
porque não quero nada com o novo
a ideia do novo me aborrece demais.
O que escrevo é e sempre será
banal, comum, reconhecível
porque me esforço por me aproximar
por me assemelhar
por amar as coisas à minha volta
e com elas me distrair e por elas me entregar
a um movimento casual e religioso
- como encanar com uma folha de quaresmeira
que hoje encontrei junto ao telefone da delegacia
e que se parecia com outra folha
que fotografei ali mesmo outro dia.
Perguntei: meu Deus
aquela era verde com manchas vermelhas
esta, vermelha com manchas verdes;
será que o tempo transformou a primeira
ou terá caído uma outra no mesmo lugar?
Me importa esta diferença
mas a verdade mesma, o que importa?
 
Preciso ver as marcas do tempo nas coisas
(não seria isso a beleza simplesmente?)
então eu saio nas ruas e fico contente
quando observo o paradoxo das transformações
e as confusões do homem em nomear a matéria alterada;
quando a casa é ruína?
quando a folha é sujeira?
quando a menina é mulher?
(Minha mulher não tem idade definida
e me encanto com sua ambiguidade
de beleza de jovem madura
de inocência de velha menina.)
(Isso me faz pensar em mim mesmo:
onde estou? a que ponto do fim?
a que distância do começo?)
 
Escrever vale mais que o escrito
eu gosto de usar muitas palavras
porque não sei definir aquele homem-menino
esperando o caminhão vir buscar sua barraca de laranja.
Olhe, antes, é preciso que eu diga:
não gosto de poesia
nunca tive paciência com abstrações poéticas
nem com arte refinada de espécie alguma;
para mim, a poesia simplesmente vaga
como alma penada em busca de um corpo
e naquele dia encarnou naquele garoto.
Não que ele fosse puro, belo, sábio
-- na verdade, nem vi sua cara
se era japonês, se estava feliz...
Era poesia e só
e na hora não notei
– na hora eu parecia um aloprado caçador de formas poéticas
procurando o melhor ângulo para fotografar
uma uva solta no asfalto –
(mas agora vejo tão bem)
aquele menino-homem
sozinho, domingo, três da tarde, rua deserta
sentado na sarjeta esperando o caminhão
com o corpo inclinado tocando o chão com os dedos
como se tivesse encontrado algo ainda menor que a minha uva...
e nem precisasse fotografar...
 
É por isso que eu digo:
se a ideia do transitório está na moda, foda-se
porque com ela aprendi tudo o que sei
sobre seu fio ilusório é que procuro equilibrar-me,
entre um crepúsculo subindo do oco da terra
e uma alvorada, sempre à frente, caindo do céu.
Por isso o passarinho continua lindo
e a morte, desfilando ao leu como dama da noite
e a vida, como a puta do dia
e Deus em cima da pinta me dizendo:
ora você pensa que de você Eu quero muito
ora que quero pouco
mas a medida é menos que seu muito
e mais que seu pouco.
(Estas palavras não me enganam
estão cheias de orgulho e vaidade.
Como quando ouço dizer
que o homem é um grão de areia
dito com a arrogância do mármore.)
 
Poeira. Canta o passarinho já.
Pegue seu caso: você escolheu sua mulher
porque diferente das outras
mas quando a conheceu de perto era igual.
Se passou desse ponto e mergulhou mais fundo
encontrou de novo a diferença e tocou o essencial.
Se penetrar ainda mais em seu espírito
poderá se deparar com nova semelhança
num lugar e tempo
que são todos os lugares e todos o tempos
iguais.
Verá que a eternidade está a seu lado
na sua mulher, nas coisas, em tudo.
Quem sou eu pra dizer isso?
De que serve saber? E o que me importa?
Só me importo com isso
e esta é a minha resposta.