Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


27.10.12


Poema d’água
 
 
 
Sinhá dorme no meu colo
Lucinha me chama de alegria
eu ando tão perturbado
que não reparo a garoa
companheira tão antiga.
 
Dói em mim o óbvio limite
de que não posso escrever à toa
que não basta a idéia solta
um poema precisa de ordem
o verso é avesso à desordem.

Dói em mim a consciência
de que a poesia não passa
de uma taça cheia de água
que só serve pra servir
à sede dos deuses.
 
Uma esfinge mesquinha
resguarda a bendita água
no poço de um oásis
onde tantos mergulham
de cabeça na areia.
 
A água que eu retiro
parece aquela que jorra
nos sonhos: a gente bebe
bebe, bebe e desperta aflito
morrendo de sede.
  
 
 

23.10.12

Bico de pena e lápis de cor (35x25 cm)

19.10.12


O Guardião do Fogo
 
 
 
Toda a tribo dizimada por lobos estúpidos. De que serve vida? Custa nascer, custa criar, para no fim virar comida de lobo. O que foi, meu fogo, o que aconteceu? Preciso pensar. A vida é uma pedra parecida, os dias, a gente se acostuma, aí de repente caos. Quando os deuses abandonam, eu sei. Não tem volta, ninguém corrige o dia. Meu vigia dormiu, cansado de nada, não viu, não farejou, entraram, a alcatéia, de tocaia. Era a hora mesma, ontem: o meio da noite. Besta! E aquela zoeira sem obediência. Antes da aurora, eu mesmo acabei com os feridos. Não gosto de ui, de ai, de lamúrias. Moribundo não serve pra nada. Gostava dela, isso sim. Se estivesse dormindo a meu lado, estava viva. Apaziguaria meu corpo esta noite, ao menos esta. Os lobos me levaram o sono. Chego a doer. Bosta! Mataram tudo que prestava, sobrou a tralha. Três moleques, eu e a velha. Não conto as três crianças. Pra nem ver o inverno acabar... De que adianta o fogo agora, se a Deusa está com os lobos...? Adormeceu meu vigia... A canalhada veio de mansinho, pata pé pata, pra morder de vez, o máximo, os melhores – só não se atreveram comigo. Se eu lutasse, eles apagavam o fogo – não a brasa da fogueira, mas meu fogo, o fogo do oco da pedra. Futuro nenhum. Disseram que vão voltar. Agora é fácil. E com a Deusa do lado... Merda! Gosto de viver. Aprecio meu posto. Todos me respeitam, até lobos. Viram? Vieram de vingança, que se fosse por fome catariam os primeiros, os três: o vigia e a mulher com filho que dormiam lá fora. Estaria bem, seria bom. Vingança por ter pintado praga na parede contra eles. Eu avisei. Mandei apagar. Apagaram, era tarde; Deusa já tinha voado avisar. Nunca vi tantos. Reuniram todos. A planície inteira. Foda! Somente a velha. Onde vou meter? Se não forem os lobos, quaisquer uns aí virão, quando souberem da desgraça, acabar com resto da gente. E já foram avisar, os ventos... Homens piores que lobos, que matam por matar. Matar precisa de razão, todo mundo gosta de viver, beber água, trepar. Bichos matam pra comer, homem mata pra matar ou morrer. Lobo veio por vingança, dessa vez. Também, os meus queriam acabar com eles todos. Burros! Como se pudessem enfrentar a natureza. Lobo não se elimina, tem deus pra tudo. Agora, qualquer leão caduco acaba com a gente – qualquer leopardinho. Os três moleques precisam de força, crescer, o que vão comer? Só sabem caçar ratos, catar coco, e eu não caço, nem na miséria eu caço, tenho mais o que fazer. Viver. Eu gosto de viver. Saio pouco, aprecio o nascer do sol. Com a pedra da brasa na mão.  Meto muito, vários filhos eram meus, os outros metem e quase não fecundam, eu, e a mulher embucha! Eles me respeitavam. Gravidar a velha, arre! Cátiço! E a velha é nojenta. Nunca fui com a cara. Com ela tive aquele mongol. Dei pros lobos. Depois, não quis mais. Bons tempos, oferecia-se criança ou velho de vez em quando, e os lobos deixavam a gente em paz. Mas veio a modernidade, e chega de sacrifícios, é guerra, a tribo garante – deu nisso. Essa rapaziada não conhece o tempo, pra eles nada existiu, nada existirá. A graça é que acertaram, nada haverá, mesmo, ao menos pra eles: viraram carne. Pensam que fogo só acende fogueira e que deuses só existem pra nós. Cansei de falar. Ouviam-me com atenção, mas não entendiam. Brincaram, zombaram. Fazer aquela pixação... Pensavam que o mundo é a planície... Eu tive avô. Ele me deu o fogo. Tanto trabalho... Quem vai saber o que eu sei? O que sei morre, e meu fogo morre junto? Não sei. Meter em quem? Na velha – prefiro cu dos meninos. A velha comeu a carne da bunda da filha! Hoje ainda. Disse que estava com fome. Quando os lobos voltarem, entrego a velha. Duro mais uns dias. Gosto de viver. O dia é bonito. A noite é muito longa. Já pedi pra Deusa acabar com a noite. Pra quê? Respondeu que os lobos e leões lhe pediram pra acabar com o dia. Então acho que faz a média. Sair, ir embora, voltar a vagar como os antigos – a gente não resiste mais. O primeiro bicho, e mais um já era. Perdi meus guerreiros, perdi meus filhos, perdi minha tribo, invenção antiga do meu avô. Pau que ele tinha – igual ao meu. Não ligo de virar carne de abutre, porém, e o que sei? E o que meu avô sabia, pra onde vai? O fogo vai apagar. E eu ainda não entendi morrer. Perguntei pra Deusa o que é, me disse morra pra ver. Mas eu gosto de viver. Comer cordeirinho assado. Tinha um filho hábil pra caçar cordeiro. Trazia pra mim o primeiro pedaço. O primeiro, não, o depois da oferta. Gostava de escolher uma fêmea quando eu enchia a barriga, fornicar e dormir olhando meu fogo. No meu nicho. Trabalhar, não, nunca; caçar é humilhante pra minha classe. Eu penso. Eu sei. Eu rezo. Eu explico. Esse é o meu trabalho. Sei tudo, menos de morrer. O que aconteceu e o que acontecerá. O fogo diz tudo, quase tudo. Às vezes eu erro, digo que será esta noite (acho que eles estão voltando) e é depois, dias depois, dois ou três. Erro por pouco. Vejo: o que eu não sei não morre, porque não está em mim. Não tem problema. Mas, e o que sei? De que adianta saber que se parar de cheirar o vazio a gente se afoga, como dentro d’água? Explicar tudo pra uma das crianças, pra quê? Não sobrará ninguém. Sei quando a chuva vem, se dilata o inverno, pro que serve cada ser, pra aquilo que ele nasceu, se presta ou não. As plantas. Tem estúpido que come qualquer coisa que encontra e morre da barriga. Meus filhos me traziam a folha, o fruto: esse pode, esse não. Sei o segredo de fazer filhos. E curar. Curar o curável, é claro – rezar certo. E conheço os deuses, cada um, seus poderes, seus castigos – mas só amo a Deusa. Agora não, escolheu os lobos. E também ela não serve pra nada mais, estou no fim. Antes, não, não é bom brigar com deuses. Fazer a coisa fora da hora e do jeito. Por isso nunca matei a velha. Deusa me disse para não matar. Obedeço. Obedecia. Morrer apaga os olhos, isso eu sei. Então como ela quer que eu veja a morte? Morrer é dormir – mas em que corpo? O corpo apodrece, fede e derrete. Mas quando penso eu não tenho corpo. Onde está meu pensamento? Eu conheço o futuro. Mas só sei o futuro da vida, vivo, não sei o futuro da morte. Não gosto de morrer. Uma vez eu dormia com uma que já tinha morrido, na sombra escura eu não percebia. Falava com ela, não respondia. Diacho. Dia seguinte, que vi, não sei nem se tinha metido nela morta ou viva. Arre! Acordei abraçado com defunto. Orra, de repente a mulher não está ali no corpo dela, não obedece. Bem, ela não pensava, eu penso. Eu não morro. Senão o fogo apaga. Só se a morte levar o fogo. Bobagem. Mas se a carne vira osso, por que o pensamento não vira fogo? Bobagem. Um filho bom que eu tinha sabia pensar, eu sei, porque ele me contava. Poderia ter ensinado tudo pra ele. Virou o quê? Meu fogo que não, que não aumentou. Viro deus? Isso é o que pode ser. Pra meter na Deusa. Não entendo, entendo tudo, isso não entendo. E não quero morrer sem entender. Quando eu canto, minha voz vai pra onde? Porque ela se apaga no ar. Voa até ali adiante e some. Pedi pra uma mocinha sentada cantar sem parar e fui andando, andando, a voz dela foi sumindo, sumindo, pra onde? Morreu? Mas fui voltando, a voz baixinho, aumentando, até reaparecer igual. Então ela some, então ela volta. Fogo! Ninguém entende. Andei pra longe da fogueira. É a mesma coisa; a luz foi diminuindo até desaparecer na escuridão. Você vai longe, vê a fogueira pequenina, mas ela não ilumina. Quando volta, ela continua iluminando. Pensava que fosse por respeito a mim. Não; acontece com qualquer um, eu vi.  Pra onde foi a luz? Some no vazio. O cheiro é igual. De longe não se sente. O vazio chupa tudo. Tudo vira azul. O som, o cheiro, a luz: azuis. E o pensamento, e eu? Azul. Não sei. Não consigo dormir. Tenho pouco tempo pra entender. Eles estão vindo, hoje ou amanhã. Eu sei. Os rapazes têm medo de ficar na vigia. Pus a velha. Pelo menos serve pra isso. Berrará, antes. Porque os lobos vêm vestidos de noite. Não dá pra ver sem lua. Quando eles derem o bote na velha, a gente acorda. Pra quê? Só pra acabar com alguns antes de morrer. É bom. Eu não, não perco tempo, nenhum eu mato, não sou de guerra, meu posto é outro. Observarei parado, do alto de minha pedra. Eles me respeitam, deixarão pro fim. Se eu quisesse, matava meia dúzia ou mais, de que adianta? Mata um vem dez, mata dez vem cem. A história está escrita, é fim. A tribo do meu avô. Antes dele, ele me contou, a tribo era pequena e vagava. Igual a muitas por aí – tudo comida ambulante de bicho. Ele encontrou esse buraco de pedra, com água abundante na frente e disse: ninguém viaja mais. Sábio: a tribo cresceu. Sempre que tinha visita de homens, a gente deixava entrar, na surdina, cercava e descia o pau. Resguardava as moças e crianças. Feneceram aqui dentro várias tribos que sequer sabiam falar. Não dava pra entender o que rosnavam. Mas mulher é bom no mundo todo – e sobrevinha a temporada de farra. Umas anunciavam uns costumes... Uns bons tempos. Meu avô me explicou que o mundo é distante e tem tipos diversos de gentes e bichos. Me contou o que é mãe. Disse que eu tinha tido uma. O velho sabia tudo, ia me ensinando devagarinho: que o filho sai do pinto do homem na fornicação. Que eu observasse que menina só ganha barriga depois que uns enfiam. Isso era segredo antigo; o filho sai na horinha do choque. Penso muito nisso; o que sai do pinto é a gosma doce, filho nenhum. Que sai pequenininho eu sei, porque depois cresce na barriga, nove ou dez luas. Mas não vejo nenhum menininho. Só se fosse antes, na horinha do choque, não na gosma mesma. No choque... parece que sai uma coisa forte de dentro, que depois sobrasse a gosma... Tem muita coisa na vida que a gente não vê como acaba nem começa. Exemplo, como o primeiro homem que nasceu, exemplo, como o fim do mundo depois do deserto. Eu não entendo por que não vejo o corpo de Deusa. O sol eu vejo, a lua, o raio, a chuva, a terra e o céu. Deusa fala comigo no pensamento ou quando eu durmo. Às vezes já vi, voando cabeluda com um bundão enorme. Meu avô dizia que ela tem rabo, mas não reparei. Não gosto do que não se vê, por isso não gosto da noite escura, como esta. Tudo escondido. Pensava que as coisas também sumiam no vazio, até a aurora. Invocado, saí com a brasa mínima para não clarear, na escuridão, queria descobrir o esconderijo. Os galhos viram galhas pra assustar, as árvores ficam gentes, tão pretas que iluminam sua volta. Vi que continua árvore, fui lá tocar, era, e as pedras também eram, e nada tinha desaparecido; eu tinha deixado antes um pau de propósito ali, e o pau continuava lá. Então esconderijo nenhum, somente um brilho de carvão nas coisas, no vazio. Só lobo cego pra preferir o avesso. Mas isso é modo de dizer, não tem carvão nenhum, não entendo; se o Sol dorme e não ilumina, a verdadeira coisa real some? Fogo meu. Tenho pouco tempo, por isso de tudo vou pensando hoje. Morrer sabendo seria alguma coisa. É o caso da sombra. Sou eu? Me mexo, ela também. Está grudada. Mas se dou uma cacetada na cabeça dela que é a minha, não sinto nada. Sombra é uma parte da gente que não se pega. Como o vento. Mas vento é vento e a sombra é uma coisa da coisa. Sol faz a sombra, reparei, o fogo também. Caralho, que o problema é o mesmo: pra onde vai a sombra no escuro? Vou morrer jovem... Então uma parte minha some no escuro. Morre um pouco? E quando eu durmo, morro um pouquinho? Muitas vezes eu viajo dormindo. Visito lugares que já fui ou não fui. Vôo, sei voar. Sei correr sem pôr os pés no chão. Mas sempre esqueço o fogo. Às vezes, roubaram meu fogo. Acordo suado, aflito, a boca colada de sede. E se eu não voltasse, se continuasse viajando, até o fim, depois dos mil invernos? É a morte. É isso. Mas quando eu durmo eu levo meu corpo, morto nenhum leva o seu. Chega! Não dá pra entender. Como se a sombra saísse, deixasse o corpo apodrecendo e viajasse por uma noite que nunca amanhece... Mas tem o dia, não adianta imaginar que não. Tudo sumir, apagar de vez, acabar a boa vida, será? e o meu pensamento, este mesmo que estou fazendo? Chega! Não consigo dormir. Meu pau está duro e não tem ninguém. Se eles não vierem hoje, de dia é que não. Quando me pegarem, rasgar tudo, quero estar bem vivo pra ver.
 
 
 
 

Parafina

12.10.12

 
As Horas


A hora é uma experiência empírica
que exige uma aritmética gótica,
por exemplo: a hora do pesadelo
é uma dízima periódica, a hora
do gozo, um número primo
e a hora do recreio do menino,
um eufórico logaritmo.
 
A hora se dilata na labuta do dia
ou se contrai na luta da criação.
Têm horas homeopáticas, ninguém sente
horas idênticas de raiva de medo de fome de sede
horas eternas de verdadeira paixão
hora que sequer passa pois pula
hora que dura exatamente duas.
 
A hora do bicho é agora, a hora
da planta é sempre, a do objeto é nunca.
As horas da humanidade guardam um segredo
pois se dispersam, evaporam e viajam em nuvens
e nos polos se condensam em gelo
trilhões de camadas de horas vãs
horas perdidas em tantas mazelas.
 
Têm horas que nunca existiram, tenho certeza
muitas, a maioria, nem nos foram dadas.
E serão no fim acrescentadas
na contabilidade de nossas vidas
e mais velhos seremos tantos anos
por horas que não usamos, horas ocas
horas fantasmas, horas dívidas.
 
 
 
 
 
Parafina
 

10.10.12

Nanquim 921x29,5 cm)

8.10.12


A Carta
 
 
Quarto escuro
cachimbo apagado
e aquele silêncio que tiro do bolso desde o dia em que nasci.
 
Mas hoje o silêncio quer me dizer...
– nada, continua mudo
e o quarto mais escuro.
 
De repente o profeta avista uma praia;
cada passo é uma palavra
e aí estão minhas pegadas.
 
Agora o passo mais difícil:
estou apaixonado por você.
Pronto: pegadas na areia.
 
Leia logo: maré cheia.