Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


23.7.12


Entre o índigo e o ultramar



Havia prometido parar com tristezas
mas não é todo dia que morre um pai.
Eu escrevo pra você
que agora sabe que sou escritor.
Entre o índigo e o ultramar
cabe tudo o que Deus quiser.
Eu digo pai pai pai
e sei o que estou dizendo.

*

Me dou o direito de não explicar nada.
Hoje tenho o direito de não me fazer entender.
De dizer: zezé não sabe o que dizer
zezé é feliz sem saber...
Estou livre, escrevo para as pedras
meu rio perdeu ou encontrou o rumo.
(Se eu pudesse seguir para sempre esse chamado
que agora escuto tão bem...)

*

Terá meu pai
- não sua glória, nem sua agonia -
me deixado como uma epifania
poder escrever qualquer coisa
sem querer dizer nada a ninguém
– e, caso dissesse, o fizesse
sem pretender ter dito
nada a ninguém?




Bico de pena (30x25 cm)

18.7.12

Grafite e óleo (32x22 cm)

14.7.12


A fogueira



Sobre a terra ou na lareira, a fogueira expressa o espírito daquele que a acendeu e que a contempla e cuida. Portanto, cada fogueira tem seu caráter, não por seus galhos e lenhas, mas por fidelidade ao dono. (Essa é a razão de um homem não gostar que outro mexa em sua fogueira. Minha mulher já ralhou comigo por isso.)
A água propõe questões filosóficas - dentre outros motivos, o seu movimento tem correspondências com o tempo -, o fogo invoca questões religiosas, exatamente por não ter forma. Contudo, assemelham-se quanto à relação de dependência: se a água é limitada por um continente, o fogo depende da matéria.
Conforme o espírito do criador de uma fogueira, o fogo pode ser íntegro ou disperso, agudo ou tranquilo; conforme seu cuidado, pode durar ou se extinguir; conforme sua contemplação, pode se rebaixar como simples fonte de calor ou ascender como mistério para a alma.
A metáfora que relaciona a fogueira com a vida que nasce, brilha, obscurece e vira cinzas é óbvia e superficial. Sua estrutura é exatamente contrária às transformações da vida; a base de um fogo são gravetinhos que queimam gravetos que queimam lenhas finas que queimam lenhas grossas. O elemento fraco está na base. E ainda, antes que sua potência diminua, acrescentamos outra peça de lenha pesada sobre sua estrutura já debilitada pelo fogo - o que costuma acarretar desabamentos e exigir constantes reparos. Aliás, desabamentos ocorrem quer ponhamos mais lenha ou não, pois a fogueira precisa ser sempre reconstruída, já que sua base sempre se desintegra. Não acho que esse processo possa servir como metáfora à vida, mesmo considerando que inúmeras vezes carregamos pesos demasiados nas costas. Contudo, estes raramente aniquilam nossas bases.
(Melhor metáfora para o decorrer da vida é a da água com seu fluxo contínuo contido por um leito que se deforma quando de uma enchente, mas que se recobra com o tempo. O fogo é um fenômeno por natureza descontínuo.)
O fogo de uma fogueira é uma excelente metáfora para as coisas impalpáveis do espírito, como a beleza, a compreensão e a fé. O esforço de assimilação dessas forças nos abate internamente com o peso de um fardo – a luz tem um peso enorme - que costuma desabar toda vez nossas bases psíquicas frágeis e mesquinhas.
É preciso ressaltar que ninguém tem posse do fogo, ao contrário da água que se pode comprar e armazenar (mesmo não sendo própria pra isso).
As cores vermelha e negra da brasa (o negro-fuligem da madeira queimada) não existem em outro lugar da natureza ou da arte. São irreprodutíveis. Sim, também o azul do céu é irreprodutível, mas inventamos uma correspondência razoável com as tintas. Quanto as cores da brasa, não chegamos perto. É pura luz que, curiosamente, não ilumina o ambiente, apenas a si mesma. Até um vagalume tem um poder de luminosidade maior.
Os homens tendem a gostar mais de um fogo feito na lareira ou na terra, enquanto as mulheres, num fogão de lenha. Até aqui elas são mais objetivas.
Uma fogueira canta, estala, assovia, em certos momentos chega a parecer uma garoa caindo sobre a terra. É a madeira se entregando sensualmente para a chama que a envolve e consome, numa relação que conta com a dor da entrega de sua carne para o prazer sublime de sua consumição. Há madeiras duras e altivas que se recusam a morrer por esse prazer.
Pra que servem a beleza, a compreensão e a fé? É o que as cinzas da fogueira respondem.



Carimbo (51x38 cm)

10.7.12


No Exato Instante...



No exato instante que eu morrer
O tubo da pasta de dente estará quase cheio ou quase vazio
A talha estará quase cheia ou quase vazia
O botijão de gás quedará no seu canto sombrio
Sobrará a louça de ontem na pia
Certamente um tablete de manteiga na geladeira
Contas a pagar, um trocado na carteira
Cândida, desinfetante e Veja na despensa
E livros inacabados sobre a mesa.

No exato instante que eu morrer
A luz ficará acesa ou apagada
A água na torneira me esperará retesada
O telefone tocará mais cedo ou mais tarde
Nas gavetas, restos de cola, etiqueta, band-aid
Dentro de uma caixa haverá uma bolinha de gude
Na mesa da cozinha restará um grude
No meu estômago, a última refeição
E o corpo tombado estará sujo ou não.

No exato instante que eu morrer
Será em meio a uma ideia ou um delírio
Meu espírito encontrará a paz ou a paz, meu espírito
Cigarrilha acesa, uma sensualidade ainda sentida
Uma dor de cabeça, um cansaço do dia ou da vida
Sorrirei diante do amargor previsto
Ou, ao contrário, me surpreenderei com o sentido
Ouvirei um bem-te-vi ou um sabiá, um canto de estiagem
Estarei em mim e já acolá reparando a passagem.



Nanquim e guache (29,5x19,5 cm)

Parafina (25,5x20 cm)

4.7.12


Sob a Lua Cheia



Ouvi de um místico chinês quando eu era jovem para ter cuidado com noites de lua cheia. Lua cheia rouba energia.  É tão difícil para um urbano poder reparar a lua que, desobedecendo a orientação do mestre, continuei a me encantar com ela, mesmo me sentindo culpado.

Hoje, andando debaixo de uma rara lua cheia paulista, recordei-me da recomendação, esquecida por mais de trinta anos.  As arbitrariedades do misticismo oriental, ao menos em nossa época (falo de um modo muito geral, sem levar em consideração as incontáveis nuanças), acabam por confundir ou escamotear a verdadeira grandeza das filosofias e religiões em que se baseiam.  Se, por um lado, certa tradição oriental nos ensina, por exemplo, a não controlar a vida, vários de seus modismos, ao contrário, parecem querer controlar todas as vias invisíveis de energias - existentes e inexistentes - envolvidas em cada ente ou fenômeno da natureza e no nosso corpo. A isso se soma um rigoroso conhecimento do sentido de cada hora de um dia e o que de melhor se deve fazer em cada momento. Sobre toda a evolução da vida, sabem a razão do fluxo e do sentido.

É evidente que, por trás de tanta arrogância, existe um modus operandi de regras e convenções para a vida que deve funcionar mais eficientemente pelo menos que o modo nada operante do meu caos, da minha “metamorfose ambulante”. Mas não vejo superioridade entre esses métodos arbitrários e custosos de conduta e as regras e o rigor com que minha mãe aos oitenta e seis conduz plenamente a sua vida, cuja sabedoria trouxe das ruelas escuras de Itapetininga.

Parecem confundir, muitas vezes, o símbolo com a coisa. Quando dizemos fogo, terra, ar e água, em mais um exemplo, estamos refletindo sobre categorias simbólicas e impalpáveis dos estados transitórios do nosso espírito; mas, hoje em dia, a medicina oriental diagnostica objetivamente qualquer doença pelo desequilíbrio desses símbolos, como se fossem realidades concretas. Acertam, é claro, algumas vezes, pois a acupuntura, dentre outras medicinas do oriente, guarda um conhecimento prático histórico inquestionável. Mas seu discurso é deveras questionável. Mesmo assim, acho que ainda procuramos intuitivamente nesses tratamentos qualquer coisa distinta da linguagem cientifica e estupidamente cega e muitas vezes também eficiente da medicina ocidental.

Brinquei comigo, caminhando sob a lua: digamos que aquele senhor estivesse certo, o que afinal a lua teria me roubado nesses anos? Será que foi por ela que me tornei leso? Será que esse fenômeno explica as minhas dores? Será que ela vem tornando o homem milênio a milênio mais débil e idiota? Será que o próprio esplendor da lua cheia se deve à quantidade de energia que chupa dos humanos a cada ciclo?

Encontrei então uma formulação fabulosa que me satisfez. Imaginei um chinês inventando a ideia: a lua cheia rouba energia. Mas o cara, metódico como todos os místicos orientais, certamente dormia ao anoitecer, em seguida ao último chá, e, portanto, sentia sono no momento de analisar o movimento monótono do astro. Daí até a sua conclusão foi um pulo. E daí até espalhar a ideia ao mundo, dois pulos.

A coisificação das forças naturais (nada tão distinto do próprio conceito marxista para o termo) deixa de lado duas outras fontes de sabedorias intrínsecas às melhores filosofias religiosas orientais do mais longínquo passado: a contemplação e o respeito ao mistério.