Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


26.9.11

A flor que recebi pelo correio - Parafina (21x27 cm)

23.9.11

Guache (24x33 cm)

19.9.11

14.9.11

(Errata: essa estorinha foi postada faltando uma palavra justamente na conclusão. Pode ser bobagem, mas agora está corrigida.)

Enésima Parábola Taoista


O mestre perguntou a seus onze discípulos:
– Olhem para a montanha. Ela permanece imóvel à nossa frente desde o início do conhecimento. Pois bem, quero que me digam: ao contemplá-la, o que vocês veem? Começo por você, Lu-is.
– Mestre, eu vejo uma montanha.
– Muito bem. E você, Ta-ti?
– Eu vejo a montanha.
– Certo. E você Lu-ci-la?
– Não vejo nada demais; só me interessa aquilo que está por trás da montanha.
– E você, Chi-co?
– Não existe nada detrás da montanha. Uma montanha é uma montanha. Eu sinto sua força.
– Você, Leo-jai-me...
– Meus colegas estão muito zen, mestre. Eu vejo um corpo de mulher, uma mulher verde, e posso imaginar seu tufo secreto naquela fenda cheia de arbustos, de onde brotam duas pernas que se deitam sobre a planície. Diria muito mais, mas passo a palavra.
– Muito bem. E você, Bi-bi-a?
– Mestre, eu vejo um vulcão extinto que se resguarda pacientemente para o dia de sua glória, que haverá de chegar.
– Obrigado, Bi-bi-a. Agora você, Jo-sé.
– Me recordo daquele velho provérbio, aqui ligeiramente adaptado: o sábio aponta a montanha; uns olham para o dedo que aponta, outros para a montanha.
– Sua vez, So-lan-ge.
– A montanha em questão não existe. A coisa em si que existe não cabe em nome algum e a palavra montanha, que também existe, tem por coisa uma generalidade.
– Jo-a-quim, diga alguma coisa...
– Também concordo que ela não exista, mas não por razões linguísticas e sim metafísicas. O que existe, em breve resumo, é meu ser junto a vocês debaixo dessa figueira refletindo sobre uma montanha que se apoia na terra debaixo do céu onde duas gaivotas voam para lados opostos enquanto fumega a chaminé da casa do ancião Bei-ja-mim. Não existe nenhuma montanha nem nada em si.
– Muito bem. E então, Ca-du?
– Mestre, vejo somente sua beleza única e inaudita, que os pintores tentam timidamente captar, aquilo que eu, mesmo que fosse o melhor deles, não ousaria.
– Ok. Por último você, Lau-ra.
– Minha amiga Lu-ci disse que se interessava por aquilo que está atrás da montanha, querendo dizer, se estou certa, a busca de um sentido por detrás das coisas, no caso, de uma montanha. Para mim, mestre, que nunca saí dessa aldeia, interesso-me literalmente pelo que está atrás desse colosso que me oprime a visão, por saber simplesmente que existe um mundo grande e receptivo que ela me esconde.
Então o mestre abriu a discussão para algumas crianças que assistiam à aula:
– E vocês, meninos, desejam falar alguma coisa?
– Eu vejo a caixa d’água...
– Não dá pra ver daqui, mas eu gosto de ir lá em cima com todo o mundo tomar banho na nascente do Ri-a-cho...
– Eu não vejo de longe, mestre, minha mãe vai na cidade mandar fazer meu óculos...
Todos riram da criançada e o mestre concluiu:
– Muito bem, vocês estão de parabéns, por hoje é só, meus amigos.
– Mestre, com sua permissão, acho que a gente gostaria de saber aquilo que o senhor vê nessa montanha.
– Já parabenizei a todos. Eu não vejo nada além do que vocês viram.

Guache (39x30 cm)



10.9.11

Xilogravura (18,5x17,5 cm)

3.9.11

Umbigo Ubíquo
                                  
                                   ao Guto


Arainha que paira no ar
Você é uma grande vertigem
Suspensa por um fio transparente
Que sustenta teu corpo no meu teto
E sustenta meu teto em teu corpo.

Meu umbigo também me une
À minha mãe e ela a mães ubíquas
Em fios umbilicais também transparentes
Que tecem uma imensa teia concêntrica
Aparentemente inexistente.

Eu venho de um bárbaro barbudo e nojento
Eu venho de uma mongol bronca e peituda
Alguém um dia pagou uma prostituta
Alguém um dia despediu-se da amante
Somos todos fios de uma Mãe errante.

Esse sorriso leve e sereno que pensa ser seu
Você o deve a um marinheiro antuerpiano
Que o deve a um alcoólatra aristocrata russo
Que o deve a uma bela camponesa de pés no chão...
Ninguém jamais criou um gesto, um jeito, uma dicção.

Meu carinho, paciência, mau humor e sensibilidade
Não são meus, minha inteligência, cheiro, delicadeza
Não são meus, meu é a mistura, a opção que escolho
Meus são apenas a vontade e o sonho
E a frustração ou alegria pelo que se realiza.

Tudo o que tem nome no corpo e na alma
Foi herdado, nossos são o vazio, o olhar, o terror
A arquitetura azul do sonho de ser a desabar
E a se reerguer, nosso é o mistério de existirmos
Como um, como alguém, como um ente inominável.

Porém, justo no ponto em que alguém é alguém
Abdica-se do que se é para ser como os outros são
E se já não somos a matriz original que julgamos ser
Perdemo-nos mais ainda por temer vir-a-ser
O imprevisível sem nome que seríamos sem querer.



Guache e nanquim (23x30 cm)
Bico de pena (30x25 cm)