Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.8.11

Minha Flor



Um milagre vegetal
Que nada deve à ressurreição;
Uma flor, flor mesmo
Símbolo do efêmero
E da beleza fugaz
Essa flor não morre, aliás
Morre, mas renasce sempre
Em qualquer época do ano
Num ciclo atemporal.

Estava perdida no quintal
Com duas folhas velhas
Num vaso de lata
Quando a levei pra sala.
Desde então floresce
E não morre, aliás
Morre e já renasce
Mais branca, mais lilás
Uma flor paranormal.

Apesar da metáfora banal
Não posso deixar de relacionar
Minha flor com minha dor
Pois não me teria sido dada
À toa; eu também não morro
Aliás, morro, morro sempre
Mas renasço, e ao renascer
Alquebrado, olho minha flor
Misteriosamente fatal.



27.8.11

Grafite (24,5 33,5 cm)
Grafite (24x33 cm)
A Discussão



A discussão chegou ao ponto de um dizer:
– A morte tem hora marcada, aquela na qual termina a missão de um homem.
O outro, já fora de si, puxou a faca, avançou em cima e retorquiu:
– A morte é obra do acaso! Pois eu te mato agora, seu místico de merda, e como poderás terminar tua missão?
– Se me matares agora, a morte usará tua mão para asseverar que minha missão está completa; se falhares, a razão não será outra senão a necessidade ainda de ter de completá-la. De uma forma ou de outra, terás de concordar comigo.
– E como isso me provaria, se não sei, e nem tu sabes, qual a tua missão?
–Tens razão: se morro, jamais saberás o destino da minha missão; se me deixas vivo, terei um tempo indefinido para concluir a tarefa – e tu não estarás a meu lado para conferir.
– Esta hipótese não existe. Eu vou te matar e provar a mim – e é só o que me interessa – que a morte é obra do acaso.
– Isso apenas fará com que concordes imediatamente comigo, pois logo compreenderás que parte crucial da tua própria missão era matar-me e assumir as consequências do ato pelo resto de teus dias.
Diante desse argumento, houve uma pequena pausa, interrompida pelo primeiro:
– Estúpido. De nada importa saber se temos ou não tal missão; deverias me questionar quanto a vantagem de tê-la, caso haja.
– Agora tu tens razão. Pois então te pergunto: o que ganhas com tua ideia que eu perco com a minha?
– Aqueles que têm a capacidade de conhecê-la caminham pela vida sem medo, pois estão acompanhados pelo seu destino.
– Sim, sim, agora entendo tudo muito bem e agradeço por teres me ajudado decidir pelo que deve ser feito.
E alçando a mão para o alto, desferiu-lhe um golpe rasante na altura do pescoço, quase arrancando a cabeça do outro fora.
– Missão ou não, medo pra mim não é a questão.


Nanquim e guache (22x27,5 cm)

20.8.11

18.8.11

O Coração da Pedra


A ideia

Quando bate o coração da pedra
a pedra desperta
o mundo de dentro sente.

O coração da pedra quando bate
o mundo de fora sabe
o que significa.

Porque é um coração de pedra
que bate
quando bate o seu coração.

E não há nada mais evidente
que um coração de pedra
batendo simplesmente.

Esse coração:
como um olho que abre
de um sono profundo.

Esse olho:
como uma luz que nasce
para renovar o mundo.

O coração de pedra quando bate
abre o olho do início
de um início sem fim.

*

O coração do homem quando bate
só adormece
as pedras do mundo.

Pedras dormindo
são pedras propriamente ditas
pedras frias.

E o sentido da vida então
são pedras propriamente frias
soltas pelo chão.

O coração da pedra quando bate
desperta a pedra
do coração do homem.

Para sempre será
este momento
dos corações de pedra batendo.

A batida desse duplo coração
ecoa no longínquo
quer queira quer não.

O eco dessa batida
comove
as pedras dos corações dos homens.


A experiência


Ninguém sabe o que bate
de repente
o coração da pedra.

E quem busca saber não sabe
que a busca
só adormece o coração da pedra.

Cheguei a pensar que a sinceridade
absoluta
tocasse o seu coração.

Depois cri em sacrifícios
trabalho
amor.

A pedra dormindo sorria
do meu debate
em vão.

Tentei pelo vazio
zen
e nada.

Num sonho, sabendo que me escaparia
ouvi o coração da pedra
eu vi o que era.

*

Então fui eu que deixei
a pedra
com a minha interrogação.

E parti sozinho
(como quem desiste de tudo)
apenas com meu coração.

Quando cheguei ao fim
meu ódio deu um murro
num muro de pedra.

Um murro numa pedra
é duro
e fere até a pedra.

A lágrima da pedra ferida
despertou o coração da pedra
do meu coração.

Meu coração desperto pedia perdão
por desejar à força
aquele coração.

Nesse dia eu aprendi tudo
por exemplo

a esperar em vão.



Lápis de cor (29x21 cm)

13.8.11


Vulcão


Na paisagem há uma imagem de homem
Refletida na vidraça embaçada
A forma inversa tem nome
No verso perdeu sua graça.

Na paisagem há um rosto que fuma
O homem tem gosto de homem
A diferença entre dois é uma
Poeira que voa mais leve.

Na paisagem tudo é evidente
Como homens construindo viaduto
Nas colunas de concreto aparente
O terror de um abalo súbito.

Na paisagem o céu está limpo
Escurece então rapidamente
Quando toca a campainha
A solidão vem de repente.

Na paisagem uma mosca zumbindo
Conduz às dunas da lembrança
Foi na piscina de um clube
Que quase afogou uma criança.

Na paisagem rola uma lenda
Que lagoa é cheia de mágoa
Quem passa estranha a força
Da superfície parada da água.

Na paisagem a gota deságua
Uma barragem muito antiga
Foi a lágrima de um olho
Que viu no fim a ruína.

Na paisagem há um livro aberto
Numa estampa do monte Fuji
Quem vê se remete ao Japão
Num vulcão longe de si.


12.8.11

em Moeda, 1982, homenagem a Tâmara (aquarela, 10x13 cm)

10.8.11

Bico de pena (29x23 cm)

5.8.11

A balada da coragem (ou covardia)



Atrás de sua sombra
ele sempre inicia o passeio
pela rua central da cidade
onde o comércio ancestral espalha-se
pelas transversais (escolhe uma arbitrária)
e aos poucos, como de costume
resume-se a pequenas lojas
onde o próprio dono atende
e o freguês sabe o nome do dono.

A cada paralela que atravessa
pressente a proximidade do sonho, pois acredita
que no ponto de fuga da perspectiva
lá onde um fragmento de paisagem se divisa
encontrará o novo.
Mas ele sabe por outras viagens
que revive a mesma ilusão
que jamais alcançará o mundo
– de renascimento, beleza,
esperança, revelação, harmonia,
graça, compreensão.
Então pondera: continuará apenas
até a próxima paralela.

Porém, tudo se repete, de sonho e de fato
nesse velho novo quarteirão;
diminui o movimento dos carros
predomina casas antigas
com cachorro e sem cachorro
afora a locadora de filmes,
o salão de beleza, o lava-jato,
quando então chega ao objetivo:
outra paralela similar à primeira
e às outras e às memoriais
– e ali aquele renascimento ainda longínquo.

Mesmo assim, renova consigo o contrato
até a próxima – não mais! – e segue
sentindo agora um forte aperto
pois em relação ao centro
afasta-se demais.

Enfim, na última esquina
avista, como tantas vezes
naquele fragmento da paisagem
o singelo portal, logo ali.
Hesita, mas precisa recuar
– continuar não tem fim.


Carimbo (42x37 cm)