Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.12.11

Ele e Ela



A juventude é romântica, Ele viveu um ano inteiro dedicado à sua paixão. Ela, ambígua, dava bola, sorria, lançava olhares, mas se esquivava de qualquer aproximação. Enfim, Ele marcou um encontro formal, precisava dar um desenlace a sua desconfortável condição de iludido. Sentados num banco de shopping, Ele, inocente, declarou-se e Ela lhe respondeu, com delicadeza:
– Gosto muito de você, de verdade, mas como amiga. Estou apaixonada por fulano...
E, de fato, logo se casou, ainda jovem, com o tal fulano, Ele partiu pra outra, alguns anos depois também se casou, e assim os primeiros anos passavam com encontros esporádicos e casuais, quando então se comportavam com aquela etiqueta que costuma disfarçar antigas atrações. Mas isso eles nem percebiam, só tocavam a vida pra frente.

Ela se separara havia tempo, Ele acabara de fazê-lo, estava alegre, solto, à cata de aventuras, e foi nesse clima que se depararam numa festa de amigos, noite inteira passando a vida a limpo, reconstituindo (no mínimo) a velha amizade que os casamentos desfizeram. Mas pairava ali um desequilíbrio: Ele buscava diversão e sexo, e os sinais de flertes dela eram esperançosos, sentia nele o homem que poderia ter tido no lugar de seu ex-enrosco que somente lhe causara infelicidade. Ele não, ria e tecia comentários com aquele ar de maturidade conquistado com as experiências dramáticas de seu ex-matrimônio. Ambos então com seus trinta e poucos anos, portanto com grande futuro pela frente.
Jantar aqui, chope ali – a amizade plenamente restaurada –, necessário agora era dar conta da renovada atração que deixava a conversa e os gestos um tanto retraídos. Um dia, Ela recorreu a um ataque direto ao apartamento dele, levando consigo uma bela caneta tinteiro (que o outro colecionava) como objeto de sedução. Apareceu de surpresa, com tudo (higiene, roupa íntima, camisinha) em cima. Seu encabulado amigo convidou-a para entrar, arrumando a camisa dentro da bermuda. Ofereceu-lhe água e café, agradeceu muito o presente (Ela estava cismada), quando uma mocinha bonitinha saiu do quarto e cumprimentou-a sem graça. Mal-estar geral: não pegava bem virar as costas e sair, mas a mocinha também não tirava seu time de campo, e, para Ele, restava fazer o meio-de-campo. O constrangimento durou meia hora, o suficiente para uma nova separação.

– Aquele dia terrível eu te perdi outra vez, mas você sempre esteve em meus pensamentos. De verdade. Não sei por que as coisas são tão complicadas entre nós. Mas agora você não me escapa, jamais – foi o que Ele disse, bêbado, três anos depois, num reencontro fortuito, novamente na casa de um amigo em comum.
–É a nossa sina. Estou grávida de um menino e muito feliz com beltrano. Conhece? Ele está chegando...

Dessa vez a distância foi longa, uma década e tanto, porém não perderam o contato por completo. Ela, inclusive, chegou a visitá-lo na maternidade, por ocasião do nascimento do seu segundo filho. Encontraram-se em algumas festas e, casualmente, num congresso, junta eleitoral, livraria, espetáculo musical, quando então trocavam palavras contidas, mas afetivas. Seus cônjuges não eram indiferentes à evidente ligação de ambos, e trabalhavam para mantê-los afastados. Certa feita, chegou aos ouvidos dela a informação, logo confirmada por conhecidos, que o casamento dele era um tormento. Aquilo serviu como gatilho para a agora cinquentona passar a criar fantasias de libertação, o que contribuía para ruir mais e mais o seu próprio casamento. Porque – é preciso observar – Ela lutava para não se tornar uma velha careta, dizia a si mesma que havia muita energia em suas veias, e que ainda a usaria, se Deus quisesse. Devaneando assim, conseguiu o celular do seu nunca amado amante e ligou furtivamente, sem medir consequência.
– Estou ligando pra saber como você está...
– Pois era com você mesmo que eu queria falar. Caiu do céu. Só poderia ser com você.
– Também estou precisando...
Marcaram no café de uma livraria, onde não pudessem ser reconhecidos. Ele desandou a contar os podres de sua mulher, estava de saco cheio, mas havia os filhos, contudo, nada o impediria, havia decidido, iria separar-se novamente, somente não o fizera ainda por conta de uma inesperada doença da esposa que inclusive fazia uma consulta naquele momento etc. Ele falava tão bonito que o desejo dela era agarrá-lo, beijá-lo – como era possível nunca terem se beijado? Longas pausas com olhares e sorrisos tímidos. Então o destino trouxe a conta: o celular do homem, que tocava insistente, era a sua mulher, ansiosa por contar o diagnóstico: câncer terminal. Como podia, catso, naquela hora? – Ela pensou. Ele, em choque, se despediu.
Ela ligou no fim de semana pra saber das coisas, Ele contou, consternado, que uma estranha força havia unido, do fundo do coração, ele e a esposa moribunda. Restou a Ela esperar pela notícia do funeral, mas a tal doença terminal não terminava nunca, a ponto de esfriar toda a esperança e dissolver qualquer fantasia – e lá estava ela de volta a sua realidade de maridão e trabalho. Dois anos mais tarde, recebeu com desdém a notícia do falecimento da dita cuja. No enterro, abraçaram-se consternados, quando nem a verdadeira dor da perda o impediu de sentir pela primeira vez em seus braços o corpo daquela que poderia ter sido a mulher de sua vida. Não que o abraço tivesse sido longo, o bastante, porém, para que o viúvo preservasse na memória ao menos a fragrância real daquele ente imaginário.

Um perfume é deveras fugaz, mas nesse caso acendeu uma brasa abafada por décadas, que logo se transformou numa fogueira. O perfume, o toque das mãos nas costas, aqueles seios atazanavam a cabeça de um cara cansado de luta e de luto. Não tinha mais idade para hesitações: ligar já. Tentativas seguidas, e ninguém atendia. Tinha receio de procurá-la em seu apartamento e dar de cara com o marido, e vergonha, viúvo recente que era, de sondar seus movimentos com os amigos. Mas o destino, dessa vez, deu uma mãozinha, mesmo que a esquerda: topou com o primogênito da mulher, que lhe informou que os pais estavam em “lua-de-mel” na Europa. Sentiu (e disfarçou) um desânimo profundo, blasfemou a sua sorte e jurou nunca mais pensar nessa estúpida e histórica encrenca. Por outro lado, o filho comentou inocente com a mãe o encontro com o viúvo, semanas após o retorno de sua frustrada viagem. Ela imediatamente ligou:
– Tentamos reatar, mas Paris nenhum preenche nosso tédio. Não dá mais.
– Vocês se separaram?
– Ele já saiu de casa. Foi duro, mas foi o melhor.
– É duro...
– Você encontrou meu filho...
– Sim, na saída do cinema...
O papo seguia sem fluir, ela sacando, por vasta experiência, que a porta se fechara mais uma vez. Recuou. De fato, Ele vivia a verdadeira lua-minguante-de-mel com uma jovem que lhe resgatara a auto-estima e a felicidade perdidas. Ela o soube por terceiros e caiu na fossa. E da fossa para o poço, com o advento de delicadas cirurgias ginecológicas.

Por ironia, a gravidade de sua internação voltou a uni-los. Assim que se inteirou do caso, Ele passou a se dedicar a Ela de corpo e alma, portando-se como um grande companheiro. (Companheiro?) Os dois nem se preocupavam em manter as aparências, ignoravam até os filhos e Ela pediu diretamente para o ex-marido se afastar. Viviam um idílio.
– Acabou completamente. Foi dessas paixões de homem mais velho, carente...
– Bobão...
Todos os dias a visitava no hospital. Queria paz, queria segurança, e Ela significava essa bonança que jamais tivera na vida. Agora o caminho estava desobstruído. A seus olhos, Ela se tornara uma senhora bonita, sensual; as vezes em que deixava escapar das abas do avental um fragmento de coxa era o bastante para Ele imaginar o resto.
– Doutora, e então?
No hospital, tratavam-no como se fosse o marido. Trazia flores, conforto, alegria. Brincava com a paciente:
– Parece que meu destino é acompanhar mulheres no hospital... A doutora me disse que tudo está indo muito bem, mas a alta é imprevisível.
Ela pedia para as amigas enfermeiras que a mantivessem o mais ajeitada possível, sentia-se envergonhada pela languidez da convalescença. O ciclo estava no fim, a maré cheia de felicidade, por estranhas vias haviam enfim se unido. Aguardava diariamente, excitada como uma adolescente, o beijinho na testa da chegada e da saída. Mas a sombra voltou a pairar, com a ausência do amado por três dias.
– Estive ocupado, mudando de casa. A doutora está aí?
– Segunda é seu dia de folga.
– Ah é... Sabe, talvez não possa ir amanhã...
Ele estava mudado. O que mais conhecia naquele homem era a sua dissimulação. Nisto era íntima. A tristeza voltou, pois seu novo nunca amor não apareceu no dia seguinte, nem nos subsequentes. Telefonou duas vezes, uma das quais para informar que a doutora lhe daria alta no domingo e que Ele ali estaria, sem falta, para levá-la para a casa. Então, não a abandonara! Seria Ele um esquisitão, seria esse o seu jeito de amar... aquele tipo de homem que precisa mostrar que é livre...? Bem, a verdadeira natureza dele era justamente o que Ela desconhecia.

– Hora de ir pra casa...
Ele entrou no quarto e lhe deu um beijinho na testa. Você está linda! – Ele foi sincero ao enaltecê-la. Nunca havia se declarado dessa maneira, era o primeiro elogio que recebia. Num só tempo, Ela alegrou-se e pôs a pulga atrás da orelha: a naturalidade do colóquio também poderia sinalizar distância fraternal... Deixou a cisma de lado. A simpática doutora acompanhava o casal até a rua. Ele abriu a porta do carro, quando então se deu um repentino e terrível impasse: ambas menearam os corpos para entrar no veículo. Como assim – Ela pensou – ela vai? enquanto a doutora, inquirindo com os olhos o namorado, parecia dizer: Ela, na frente? Ele não pensava em nada, olhava inerte para o nono ou décimo andar do hospital...
– Vocês dois...!? – Ela disse, apontando à doutora e Ele.
E a doutora:
– Por quê? Vocês dois...? – apontando Ela e Ele. Ele balbuciou à doutora:
– Não, nada...
A nossa mulher cambaleou dois passos, virou-se, pegou um taxi no ponto e sumiu.

Tangenciavam os setenta anos, quando, numa ocasião, Ele apareceu com cara de piedade em sua porta...
– Saia. Suma!

Três anos depois desse breve episódio, no velório, Ela se debruçou no caixão chorando piamente, agarrou o rosto do defunto e lhe aplicou um beijo na boca, que não aplacou em nada a sua angústia.


Óleo sobre tela (29,5x24 cm)
















25.12.11

Aquarela (23,5x35 cm)

19.12.11

Natal



Ninguém no alto do morro
eu me ponho bobo a rezar:
meu Deus, me dê um sinal
meu Deus, fale comigo
eu estou tão perdido
nesta noite de Natal...

Como um milagre ao avesso
tudo brilha ainda mais real
na pele prata dos paralelepípedos,
enquanto nuvens em reboliço
anunciam uma tempestade
que lembra a pintura do Bruegel.

Dois pios: um pio e seu eco
- e uma gaivota na escuridão
rasa sobre mim. Nada não.
De repente um calafrio
- gaivota não voa à noite!
Era uma aparição.

A ave volta e para pênsil
e eu levito suavemente tenso;
ela sobe e eu desço
feito uma gangorra
ela vem e eu vou
feito um pêndulo.

Ou como se valsássemos em silêncio
sobre os telhados da cidade...
porém, a velocidade da pomba guia
lança-me num vácuo imenso
como se o pêndulo rebentasse
no ponto extremo.

E sou chupado por um tufão
e tragado por suas entranhas
em turbulentas contrações;
esmagado, esticado, destruído
só me restando observar que acabo
nas tripas do infinito.

(Não foi bem assim
a duração e o sentido.
Era a minha vida revista
em reviravolta no redemoinho;
cada ignoranciazinha, cada mesquinhez
cada arrogância do caminho.)

Quando desperto
tenho o corpo torto e inclinado
deslizando para um flanco
onde a refrega é mais fraca
e por ali vou saindo e caindo
de cabeça numa praia.

Esfolado pelo tombo
sinto a brisa arder meu rosto
um ardor delicioso de sentir;
estou vivo, fui indultado!
mas sem passado ou futuro
pra onde ir?

Entro numa casa vazia
sento num degrau, cansado
e assisto aos atônitos veranistas
reparando estragos de uma tempestade
despropositada e desproporcional
que estragou a noite de Natal.



16.12.11

Aquarela (12,5x16,5 cm) - 1977

12.12.11

O Símbolo Tao
 



Deixo para os vários futuros (não a todos) meu jardim das veredas que se bifurcam... Ao reler essa passagem de um escritor argentino do século passado, decido enfim também deixar registrado, aos vários futuros e aos vários passados, o relato da minha secreta aventura, agora que me dedico a amar os netos.

Sou eu o criador do is nt inself que me permitiu a viagem ao tempo pregresso. Já o destruí; seria a gene de uma inevitável manipulação do passado, ou ainda será, já que sua redescoberta é possível, mas não provável. Não preciso me estender quanto ao risco que um médium como esse significaria para a humanidade, basta apontar a derrocada da História tal como é entendida, e portanto de todos os valores. Posso estar enganado, mas por mais que eles invistam grana e talento, será difícil que alcancem a síntese do inself, que exige não apenas chegassem a sua fórmula ideal, como também à substituição em escala de cada signo da sentença por uma arbitrariedade n, sobre a qual nada direi; não quero estimular mentes perniciosas. Gastei a vida dentro de laboratórios a fim de criar esse médium retroativo, e adianto às raposas que o concebi por puro acaso — através de uma sobreposição aleatória de duas transparências numéricas—, mais por benção divina que mérito pessoal (o que não me surpreende, ao contrário, diante do que conheci e participei, mensagens como essa são triviais). Mesmo assim, como disse, existem chances remotas dessa alcateia alcançar um novo inself, por isso acompanho apreensivo o esforço de vários centros de ponta na aplicação de senhas de arbitrariedades – de mim nada conseguirão, saí de cena há duas décadas, finjo-me de louco, e quando tiverem acesso a essas palavras estarei vagando tranquilo na esfera eterna. No auge da minha fama, pressionavam-me com todos os meios, sabiam que o gênio criador da era da arbitrariedade seria o mais apto a conceber um transportation, mas tudo o que fiz foi sabotá-los e desviá-los o quanto pude (mesmo o pouco do que transmito aqui pode ser uma nova arapuca...). Diziam que o projeto se restringiria à busca da verdade, eu retrucava: quem pode afirmar que o falso conhecimento da história não seja a verdade mais pura? Para o equilíbrio humano, não saber é matéria tão importante quanto saber... Além da possibilidade bastante razoável da experiência fugir do controle, como inclusive aconteceu comigo...

Enfim, chega de confusas ponderações, vamos ao caso. No meu laboratório holográfico, consegui penetrar virtualmente in loco em qualquer momento do tempo histórico – e evidentemente filmá-lo em três dimensões, se quisesse –bastando para isso alimentar o inself com a data do calendário (e suas terríveis imprecisões) e as coordenadas geográficas desejadas. Grosso modo, esses dados ativavam a antena mapeadora da memória térmica dos corpos físicos e do corpo luz detectáveis em qualquer tempo-espaço dos últimos milênios. (Não vou além do que qualquer cientista sabe, é claro, inclusive não direi nada sobre a natureza da preparação do corpo para a viagem.) O que importa neste relato é que a minha parafernália tekhnológica retransmitia na tela esférica qualquer passagem da história com perfeita nitidez até por volta de sete mil anos a.C. Para trás, a imagem reduzia-se a duas dimensões, desbotava e passava a falhar seguidamente, até se desvanecer por completo antes dos nove mil (o que implica que não tive a meu dispor a origem da primeira civilização).

Quando ficou pronto (o que me custou arquitetar tudo isso só eu sei – e meus filhos, indiretamente) desejava logo ir atrás do sonho, do chamado que me perseguia desde a juventude, por conta do contato com meu avô. Já conto. Antes, precisava experimentar o inself, e o fiz, por puro gozo, escolhendo personagens ou episódios famosos, pois seria mais fácil a localização, sobretudo a espacial. Enumero alguns, dentre uma centena de investidas. Encontrei Michelangelo sozinho e sereno pintando, à luz de velas, a cabeça de são Brás, no Juízo Final (garanto que o santo olhava pra frente, prestes a enrabar, como se sabe, Catarina de Alexandria...). Diverti-me com uma caça ao touro na cidade de Lisboa, no ano 1755, uma vez que errei os dados do grande terremoto, chegando um dia antes. Voltei ao nosso século, à final da Copa de 2026, para entender todo aquele debacle – e era verdade: o quinto juiz de fato desmaiou e nada viu. Passei muitos dias observando até presenciar, enternecido, ao sexo que me fecundou – apesar da resistência da minha mãe. Não quis adiantar nove meses até a cena do nascimento, pulei três anos, e me deparei com uma criança que era eu e que era estranha no corredor da casa, agachada, fazendo um não-sei-quê no assoalho, para depois correr à janela de onde vinha uma canção... Tentei localizar ao menos um dos autores de “As mil e uma noites”, mas logo vi que demandaria tempo e passei o foco para o ano de 625, Meca, por mera curiosidade de conhecer o tipo físico de Maomé – forte e vibrante, de pele escura, naquele momento ouvia atentamente sua esposa, ou talvez a mãe – de icharb, era impossível distinguir (nada entendi do diálogo, deu pane no ponto de tradução). Presenciei um momento banal do elegante Schopenhauer fazendo a barba. Estive ao lado de Colombo no desembarque, menos interessado pelo feito que curioso quanto às condições de higiene da tripulação (e agradeci às limitações do programa por não decodificar aromas). Emocionei-me com o discurso articulado e gracioso de são Francisco diante do que me pareceu um grupo de catedráticos, em que dizia que a verdadeira igreja de Deus seria simplesmente a natureza com telhado... (claro que resumo, mas a frase é literal). Fiz menção de focar o ano trinta e dois na Palestina, mas recuei; os segredos seriam devastadores demais para alguém que tinha pressa. Hoje em dia, envergonho-me de ter ousado sondar aquela história; por pouco não me rebaixei dentre aqueles para quem esse projeto seria uma fonte do poder. Enfim, por quase seis meses, viajei aleatória e superficialmente por episódios históricos e particulares, corrigindo as imprecisões no meu médium, aprendendo a manipulá-lo e preparando-me fisicamente.

Conhecer a origem do símbolo Tao, unicamente isso; dentre as incalculáveis possibilidades de pesquisas no oceano de tudo o que aconteceu, somente esse tema me levou ao esforço descomunal para criar o is nt inself. O Tao me levou a buscar o Tao. Meu avô dizia: toda a origem de coisas que tenha alguma relevância no destino dos homens se apaga nas incertezas do tempo: a primeira vida, o nascimento do homem, da civilização, da linguagem, da música, a criação dos grandes livros éticos e religiosos, o Big Bang, a partícula mínima, enfim, tudo o que tem valor para a humanidade foi propositadamente escamoteado da memória histórica – sua revelação é apenas mítica. Ele dizia: procurar a origem é profanar um templo. E completava: mais abstrusa que a morte é o nascimento. Meu avô estava certo, mas errando eu acertei. O conhecimento às vezes dá saltos, e o relativamente breve intervalo desde sua época até o meu invento foi o suficiente para qualquer passado se descortinar plenamente diante de mim numa grande tela holó e, ainda mais – o que me perturbou por muitos anos –, poder interagir com ele. O que atenua meu arrojo arrogante, como ele me criticaria, foi a sinceridade do meu impulso, que sobrepujou os cuidados éticos. Talvez ninguém me entenda, mas você, querido avô, saberá o que eu digo quanto ao imperativo de um chamado religioso.

Tao: essência do conhecimento humano. O símbolo Tao: essência do essencial continuamente redivivo por gerações milenares de estudiosos e pensadores. Onde, como, quem o concebeu? Que fique claro: não buscava a origem do taoísmo que, como qualquer filosofia, terá tido inúmeros colaboradores até a sua concepção final. Estava sim atrás de quem sintetizou o símbolo que tem como pressuposto a dualidade yin e yang e que transcende o próprio taoísmo — até porque foi criado muito anteriormente e, portanto, é a filosofia que deriva de sua essência. E o apropriou tornando mítica a sua origem, até porque, segundo dizem, o Tao sempre existiu. Porém, como símbolo não — um desenho é concreto, não pode nascer da linguagem oral. Imaginei por muitos anos essa hipótese: se esse símbolo em si é a totalidade, deverá ter saído da cabeça de um ser somente, e de repente. Se verá que errei por pouco, ou acertei de certa forma.

Estudos davam conta do ano 1046 a.C., fim da dinastia Shang, na região de Lo, China central. Se os dados estivessem corretos, o que desconfiava de antemão, poderia me defrontar quem sabe com o próprio Duque de Zhou e seu pai, o rei Wen – sábios clássicos, considerados os autores dos comentários do I Ching –, e, através deles, perseguir o caminho da origem. Parecia um começo auspicioso, não fosse acontecer de o inself me lançar no alto de uma serra; não havia Lo nenhuma ali onde mapas antigos apontavam, apenas uma geleira deserta. Retornei e me preparei para outro ritual, sob novo foco de dados: caí então num descampado, caminhei a esmo até uma vereda, onde encontrei um camponês com um feixe de galhos na cabeça. Acompanhei os passos desse homem cansado; adiante, cruzamos um ribeirão, alcançamos uma vila ou tribo, quando então ele entrou num dos quinze casebres de taipa. Sua provável companheira estava sentada à porta olhando o nada; meu homem não deu sinal, nem proferiu palavra nenhuma para a mulher que lhe retribuiu com a mesma ausência. Logo percebi o tamanho da tarefa que teria pela frente, sem ter dia e local exatos; a China é grande e seu passado enorme.

Para alguém da metade do século XXI, o primeiro grande embate era aceitar o contraste dos tempos; suportar uma hora sem que nada acontecesse, enfrentar a viagem de volta, trocar data e local, depois o ritual, para novamente experimentar outra hora no oco da história, e isso centenas de vezes... O objetivo, se alguém ainda não entendeu, era encontrar uma cidade com sinais do meu símbolo, num palácio ou congregação de religiosos, para daí investigar sua procedência, e assim por diante até a origem. Recobrava a fé no dia seguinte, e lá estava eu ao lado de outro camponês de cócoras à espera de um garoto que enfim chegava de um cafundó qualquer, para juntos caminharem em silêncio meia milha, ao cabo da qual colheram folhas num ermo e retrocederam pelo mesmo percurso. Voltava pra casa cansado, como se meu corpo tivesse de fato se exercitado. Repetia sempre a operação com dados próximos (carregar cada definição custava-me intermináveis 13 minutos, afora o tempo de preparação que me reservo de contar); recuava um ano, deslocava três dígitos a latitude e dava de cara, por exemplo, com um nicho de galhos entrelaçados. Ou campinas vazias, ou montanhas, ou nevoeiros, sem contar os frequentes breus noturnos... Centenas de vezes... Buscava me acalmar, aliás, imbuir-me de algum taoísmo, e foi assim que decidi acompanhar uma monótona carroça carregada de peles que por sorte dirigia-se à minha primeira descoberta, a cidade de Shang Wu. Porém, não havia centro político nem religioso, nem sequer um centro. A ideia de cidade não condiz com aquele aglomerado de casebres às margens do rio Amarelo – parecia mais uma enorme favela de barro apinhada de chineses alegres e aloprados, com uma feira de cereais no porto. Sobrevoando suas vielas e becos miseráveis, logo constatei que aquele povo não tinha raiz em Tao algum. Dessa vez não voltei pra casa; tomei um junco para o porto acima, depois ao seguinte, onde curiosamente uns cavaleiros recrutavam homens do povoado, ao que parecia, para uma batalha. De porto em porto, tribo em tribo, retorno em retorno, varri um intervalo de oitenta anos nessa região. E nada.

As primeiras explorações serviram para que eu abandonasse os dados históricos – todos errados – e me decidisse a procurar aleatoriamente em torno dos três grandes rios (mas nunca visitei o terceiro). Deixei a monotonia do Amarelo para perscrutar sinais de civilização em torno do rio Yang-Tsé, no centro-oriental da China, região de clima temperado e preservada de invasões e conflitos. Evidente que era apenas mais uma aposta. Evitando repetições narrativas, um dia finalmente entrei em Anyang, cidade histórica da dinastia Shang, localizada acima do que meus mapas propunham. De razoável densidade demográfica, bastante desenvolvida em comparação, casas bem construídas, fornos de cerâmica, carruagens militares e um palacete que me encheu de esperança que logo malograria – a propriedade era de um velho comerciante astuto, dono das embarcações e vazio de espírito. Vagueei em vão pelo alojamento de soldados farrapeiros, sem entender a que senhor ou rei serviam (a intenção era conhecer alguém poderoso). Resolvi vasculhar casa por casa de Anyang, e de repente aconteceu, num fim de tarde, o acaso que eu tanto esperava: o símbolo Tao esculpido em madeira no alto da soleira de uma casa simples, desgastado pelo tempo, com vinte centímetros de diâmetro. Senti o impacto, chorava a ponto de encanar que os chineses me ouviam. Estava no ano de 1195 a.C. A imagem era rudimentar e incorreta: uma linha reta dividia o círculo em duas metades, uma vazada, outra cheia – mas era ele, só podia ser. Penetrei no casebre, onde uma família sentada sobre três esteiras fazia a refeição. O dono da casa tinha a mesma feição alheia de seus conterrâneos, sua mulher era feia e gorda, o ambiente nojento; mesmo sendo sinais subjetivos, nada indicava pra mim qualquer relação daqueles moradores com a sabedoria do símbolo que abençoava o lar. A corrosão da madeira indicava um período anterior.

Retrocedi vinte anos no tempo, sem alterar o espaço; o símbolo continuava ali. Repeti sucessivamente a operação até 1250 a.C., quando então não encontrei nem o símbolo nem a casa. Após idas e vindas, consegui localizar o dia preciso em que um senhor esculpia o símbolo com uma ponta de pedra, no início de 1233 a.C. Agora precisava achar quem o ensinou. Acompanhei sua história pregressa até a morte do seu pai, num pequeno sítio não distante de Anyang. No modesto ritual de incineração desse ancião, um novo caminho a ser tomado: na altura do seu peito, à esquerda, um pequeno círculo tingido sobre o couro, com o yin e o yang divididos com o mesmo rigor.

(Aqui preciso fazer uma observação, para não me repetir adiante: o tempo desde sempre andou pra frente, está claro, pois então qualquer recuo na história obrigava-me a retornar pra casa e reajustar o foco. O fastio dessa operação me levava a arriscar saltos de meses ou anos, o que comumente acarretava perder o destino das pessoas que investigava – bastava o china ter viajado, ou mudado de casa, ou morrido, para que eu tivesse de ir e voltar inúmeras vezes até localizar o ponto exato do desaparecimento. Contudo, havia uma condição em que eu preferia seguir naturalmente o fluxo do tempo: quando sabia que o futuro de uma pessoa passaria por tal ponto da estrada tal hora de tal dia. Podia então ficar ali esperando-o, passeando, dormindo no ar... como se eu tirasse uns dias de férias na minha querida China... Tudo seria mais fácil se meu phono realizasse uma tradução simultânea satisfatória, o que não era o caso para línguas muito antigas; viajava com a versão mais avançada do mandarim arcaico, que me permitia somente a compreensão de alguns ideogramas óbvios. Com o andamento do trabalho, é verdade – depois de quatro ou cinco meses –, já conseguia entender umas tantas expressões coloquiais e palavras isoladas, mas não o suficiente para abreviar minha pesquisa.)

Como dizia, passei a perseguir o passado daquele pai. Já adianto que, a cerca de duas décadas antes do seu funeral, partira com a mulher e três filhos de To Jo, localidade distante trezentas milhas a noroeste, à beira do mesmo rio, lançando-se numa longa e lenta viagem, aparentemente sem rumo (trabalhava em vários senhorios com os números). Justamente pelo seu deslocamento contínuo e incerto, essa foi a etapa mais aflitiva do trabalho; se voltava ou adiantava demasiado o tempo, perdia-o de vista – e ele era o meu fio condutor ao símbolo. A fim de descansar um pouco, deixava-me ficar uns dias entre eles, para aproveitar a boa dicção do homem e melhorar meu mandarim – mas segui-los pra frente era um atraso pra mim. Enfim, a trancos e barrancos cheguei à sua origem, onde constatei de imediato que conhecera o símbolo na região portuária da rica To Jo, onde mais de uma dezena de místicos jogava varetas de adivinhação em troca de mercadorias. Esse tipo de oráculo viria a ser codificado tempos depois no I Ching, mas me animava constatar que aqueles magos já interpretassem as linhas dos hexagramas sob o preceito da dualidade um e dois (futuros yin e yang), jogando as varetas numa pele redonda de carneiro estendida na esteira, estampada com aquele mesmo Tao rígido. A alegria com a descoberta durou pouco; eram tantos, que um novo dilema se anunciava: quem? Haveria de escolher inicialmente um dentre eles e retroceder... E o fiz; e o caminho se bifurcou continuamente em investigações repetitivas, sobre as quais registro apenas a desalentadora conclusão: o símbolo ali fora introduzido por pelo menos sete forasteiros. Alimentava a esperança de poder estar próximo da região onde havia sido criado, pois se retrocedia meros trinta anos, o mesmo porto era tomado por videntes de casco de tartaruga. Digo esperança porque sentia o temor bastante plausível de descobrir uma nova cidade onde alguém tivesse trazido a filosofia de longe...

No vai-e-vem da minha jornada, concluí que o ingresso do símbolo em To Jo não ultrapassava dezessete anos do dia em que aquele meu “inverso” guia partira dali, e sua ascendência estaria provavelmente escondida num raio de no mínimo cem milhas ao norte. (Assim concluí estudando as características geográficas do que nos cercava: de um lado, o deserto Akin, de outros, regiões pouco habitadas e desenvolvidas – mas me fugiam as inúmeras rotas dos rios...). Se eu me estimulava com a esperança da aproximação, a tarefa de continuar embrenhando-me no destino anterior de sete figuras exauria-me a ponto de pensar sinceramente em desistir. A essa altura, a empreitada custara-me cinco obsessivos anos, o fim do casamento, a distância dos filhos, amigos, parentes e a derrocada das economias guardadas... nada digno de nota, faço constar apenas como motivos suficientes para abandonar o barco. Cada vez permanecia menos em casa, o mínimo necessário para a alimentação e higiene – até porque a vida real tinha sido reduzida a vazio e solidão. Agora, as noites eu dormia na antiga China, escutando a poesia ancestral dos grilos e corujas... Havia muito que me acostumara já a permanecer sereno ao lado de um “condutor”, enquanto este esperava por duas horas um chuvisco passar sob um toldo de palha, ou enquanto enchia a cara de ke-sat (vinho de arroz) numa palafita do porto... O processo invertera-se em relação aos primeiros anos; agora me identificava com os costumes desses amigos que me ignoravam, bem mais que com a atroz demanda do meu tempo. Meus estímulos e interesses cotidianos estavam lá: o que a prestimosa esposa de um cavaleiro cozinharia “hoje”, o que teria sido do flerte do bom rapaz com a garota púbere mais bonita, se a tempestade acabaria com a cuidadosa horta do velho Liu-liu... Voltar pra casa injuriava-me – aquilo de ganhar tempo acertando neuroticamente o foco doze, treze horas antes, correndo o risco de perder meu guia que, nesse meio tempo, poderia ter entrado num matagal para fazer cocô, e depois se distraiu catando amoras... Eu queria ficar lá, naquele continuum, mas a obrigação era sempre se lançar pra trás...

Subia e descia o Yang, penetrava em seus afluentes, enfrentava montanhas geladas, visitava cemitérios, ouvia a conversa mole de ermitões, de adivinhos, de sacertodes antrozoomorfos – agora que compreendia a língua, os achados e descartes agilizaram-se. Nas cercanias por onde delimitei minha exploração, conheci todos os palacetes feudais e o próprio palácio do príncipe Lau Yu – ele próprio e toda a sua corte veneradores de um rinoceronte de bronze... Esses ambientes agradáveis e bem conservados serviam pra mim como uma boa hospedaria – os poderosos sempre viveram bem. Anteriormente eu dormia em qualquer parte, agora me recolhia ao calor de um cômodo confortável. Calor? Protegia-me do clima? A transição ocorreu sem que eu percebesse, não tenho absolutamente consciência dessa passagem. Sentindo fome e preguiça de retornar, me peguei tendo impulso de me servir de um saboroso assado de peixe que uma senhora preparava ao meu lado, contendo, assustado, minha mão já a meio caminho; parecia que eu poderia realmente tocar naquela porção. Estava enlouquecendo. Isso já vinha de antes; ria de piadas em roda de homens e replicava com frases que saíam naturalmente da minha boca. Lembro-me também de ter pedido informação sobre a partida de um junco...

Quando vi, me escutavam, mas nem eu nem eles considerávamos nada sobrenatural. Me recordo – achei que sonhava, hoje sei que não – de me sentir tomado de tesão por uma mulher que se banhava num tanque, quando então incontrolavelmente toquei em suas costas, seus flancos... – e ela se entregava! Alucinei? E também – não sei se antes ou depois do episódio do banho – eu assistia a uma divertida colheita de arroz sentado num barranco, hipnotizado pelos tambores, quando uma criança correndo caiu na minha frente; no ato, a levantei, sua mãe, que vinha atrás, agradeceu-me, e ainda brinquei com ela dizendo que aquele menino seria um atleta. A mulher não entendeu o significado de “atleta”, mas sorriu e me ofereceu uma ameixa. Eu estava lá, em carne e osso, travestido com roupas chinesas e fazendo a pantomima de seus costumes! E as cores ficaram cristalinas, e eu sentia frio, aroma...

Por conta de um milagre, descobri que o símbolo do Tao foi criado por um senhor gorducho e risonho de nome Qian Kun, nas cercanias de Tai Tieh, às margens do rio Ming Yu, na quinta lua do ano, sétimo dia, 19 de abril de 1280 a.C. pelo nosso calendário, às 8:47h de uma manhã nebulosa de primavera.

Agora que já contei, preciso retomar o fio da meada e descrever os últimos eventos. Se eu podia perguntar, uma informação levava a outra rapidamente, conheci as pessoas certas que me aconselharam a procurar um feudo a quarenta milhas para o interior, onde fui bem recebido e ganhei, curiosamente, o apelido de Xan-Lu Wo – algo como “forasteiro aluado”. Eu era um chinês: as palavras fluíam da minha boca naturalmente, comportava-me como um migrante e a maior parte do tempo vivia esquecido do meu passado-futuro – mas jamais da minha missão. O jovem senhor feudal me emprestou um cavalo para seguir às margens do rio Ming Yu até um riachinho sem nome, de onde partia a trilha para o povoado do tal Qian Kun. (Escrever Qian Kun, como se fosse um qualquer...) O homem morava num sítio ainda mais adiante, que alcancei no crepúsculo de um dia qualquer do ano de 1264 a.C. Em contraste com o isolamento da terra aconchegada ao pé de uma montanha de pedras enormes, vivia com uma família numerosa e barulhenta. Foi o primeiro chinês que conheci com aquela cara típica de monge zen-budista. Mas era um santo de aura prateada. Saía de um cercado de bambu com dois ovos de pato nas mãos.

– Quem é você?
– Venho atrás da origem do símbolo Tao.
– Tao ou Ti?
– No futuro se chamará Tao. Eu venho do futuro.
– De onde você vem, acredita-se em um futuro?
– Existem vários futuros, dentre eles, os vários passados.

Convidou-me para sentar à sombra do bambuzal. Entregou os ovos para um garoto e pediu uma moringa d’água. Então me disse:

– Acho que sei quem você é. Sim, eu sei. Mas não esperava que tivesse forma.
– E quem eu sou?
– Não sabe? Sem você não haveria o símbolo.
– O senhor se engana.
– O verdadeiro criador. Eu não passei de um instrumento.
– Tenho informações de que o senhor o criou, ou ao menos conhece quem o fez.
– Se sou eu o criador, sei que foi você quem o criou.

O garoto serviu a água em duas cumbucas. Tomamos. Ele retomou:

– Você tem a cor do sol. Estou muito feliz em conhecê-lo. Foram os céus que te mandaram.
– Confesso que não entendo o senhor, apesar de me sentir tão bem em sua presença.
– Eu sei o que aconteceu, mas não vou interferir na sua busca que foi minha. Em breve, compreenderá tudo. Está atrasado em relação a mim e adiantado em relação a você. Vá. Vá pra não sei onde e volte a me encontrar em...

Passou-me o lugar e a hora exatos, fechou os olhos e, diante de mim, restou apenas seu corpo sentado. Parti imediatamente, sentindo que deixava uma entidade pra trás. Eu estava tão abstraído, que demorei para recuperar a consciência e atinar sobre a necessidade de regressar e ajustar o foco. Após a minha encarnação, não trazia comigo mais o controle do inself; retornar agora era uma decisão mental.

Já em casa, mal olhei de lado para não me dispersar – notei apenas, pelo abandono e sujeira do laboratório, que me ausentara por um longo período. Pouco tempo depois estava de volta a China, nove milhas acima do Ming Yo, na pequena localidade de Tai Tieh. O sol acabara de nascer, uma senhora me serviu um chá. Perguntei pelo paradeiro do senhor Qian Kun, respondeu-me que devia estar caminhando com seus discípulos pela beira do rio, adiante do arado. Não tinha pressa, estava adiantado uma hora. Comentei à toa que a presença de discípulos me surpreendia. Contou-me que Qian Kun recebia um grande número de peregrinos – como eu, por exemplo – que queriam ouvir seus ensinamentos; que ele seguia a tradição religiosa da família, numa linhagem que se iniciara com o seu eminente avô, para quem a concepção de inúmeros entes divinos era falsa, existiria somente a força misteriosa da natureza; que seu pai, de fundamental, afirmava ser irrelevante um ou inúmeros deuses, conquanto que estes correspondessem à diversidade dos elementos naturais e que, sendo assim, o próprio homem seria divino. Porém, Qian Kun teria ido adiante, muito adiante: para ele (ela falava pausadamente, para não errar) de nada valeria procurar Deus ou deuses em si, pois que o uno é inconcebível, mas entender a sua manifestação, através de sua divisão em duas forças opostas que, combinadas, impregnariam tudo o que existe. Ela mesma refletia muito sobre o alcance dessas ideias, mas notava que o próprio Qian Kun não via ainda as coisas com clareza. Minha boca falou ele está chegando ao yin e yang, mas a senhora nada entendeu. Antes de sair, elogiei sua cultura, tão distinta das mulheres que conhecera durante meu périplo. Ela me retribuiu com uma demorada reverência, presenteou-me com um casco de tartaruga e quase sussurrou: eu sou a mãe dele, a mulher do seu pai, a filha do seu avô.

Eu agora levitava; parti daquela casa voando, com o meu casco debaixo do braço... Não sei quando aterrissei, porque já andava no momento em que encontrei Qian Kun na beira do rio, desenhando com uma vara um grande círculo na areia; dividiu-o no meio e preencheu de riscos um dos lados para diferenciá-lo do outro, vazio. Em volta daquele homem mais jovem, porém mais introvertido do que quando o conheci três horas atrás, uma dúzia de discípulos o ouvia com atenção. Versava sobre dualidades óbvias como céu e terra, dia e noite, ação e inação, quando de repente se ateve, trêmulo, como um bicho desconfiado; pressentia minha presença enquanto eu o cumprimentava, mas a voz não era ouvida. Meu ser atônito, diante de tudo o que buscara na vida e, simultaneamente, tomando consciência da minha própria e repentina desmaterialização. A vida não cabia em si, eu estava ali, sem memória de mim. Não era ninguém. Ouvia cada batida do seu coração, que se contrapunha à batida do meu. Seus discípulos, perplexos. Ele olhava para os céus, parece que rezava ou balbuciava consigo mesmo. Fazia menção de retomar as explicações, mas novamente parava, olhava ao redor, depois para o círculo, quando então comentou que lhe desculpassem, sentia naquele instante uma imensa comoção. O céu o invadia. O céu era eu. Nossos corações agora batiam juntos, um tambor grave. Eu havia mecanicamente me aproximado do círculo. O mestre bramiu: sim! Ele tremia a vara, eu tremia meu dedo na areia, ambos corrigíamos a linha reta que dividia o círculo, sobrepondo a ela uma maleável – para seu espanto – e acrescentando dois pontos, o preto na metade branca e o branco na metade negra. Pronto; o yin e o yang agora se intercambiavam.

Tombou de lado, por cima de mim. Ninguém ali compreendia, é claro, mas Qian Kun decifrara de pronto todo o sentido que buscava – o círculo se fechava na contínua transformação de todas as coisas. O mestre chorava, eu mais ainda. Ele porque criara o símbolo perfeito da vida e da morte de tudo, eu por entender também o sentido da minha viagem. Recuei exausto e me sentei numa pedra. Ouvi Qian Kum pedindo licença a seus pupilos, que precisava se recolher, que os ensinamentos seriam revistos...

Depois que eles se foram acho que desmaiei ou dormi ou somente paralisei, pois ainda vi o vento varrendo vagarosamente as rebarbas do desenho ancestral.

Não voltei pra casa, vaguei pela China por mais dezesseis anos, viajando pelos arredores do sítio de Qian Kun, novamente reencarnado e absolutamente distante da vida futura. Subindo e descendo o grande rio e os afluentes, envelhecia como um andarilho, mas não como vagabundo; ajudava as famílias nas colheitas, construção de casas, transporte de cargas etc. Não passava doze luas sem que me aproximasse discretamente do meu mestre, curioso por conhecer seu destino e a difusão de sua sabedoria. Num entardecer fastioso, no porto, brinquei de jogar varetas de um oráculo recém-criado, a fim de especular sobre o meu futuro – quem o interpretava era um dos discípulos presentes naquela manhã primeva. A experiência o deixou atormentado, o pobre não conseguia fechar as contas mais singelas, os números baralhavam-se toda vez que tentava recomeçar. Nunca fui tão maligno quanto nesse episódio. (A bem da verdade, eu o procurei inocentemente, como um chinês, pois vivia solitário, obnubilado — mesmo assim fui maldoso, pois nunca perdi completamente a identidade e consciência da minha origem.)

Qian Kun era alegre, atendia um contingente cada vez maior de forasteiros, incluindo senhores feudais e sacerdotes exóticos. Para a maioria dos interessados, ensinava apenas o elementar. Belo dia, imiscuí-me num grupo que ouvia sua palestra. Quebrei o protocolo e perguntei-lhe por que não registrava por escrito o seu conhecimento. Respondeu-me que os diagramas mentiam e que o símbolo falava por si. Abusando de sua paciência, aludi sobre a possibilidade do símbolo se extraviar, por exemplo, numa guerra, ou simplesmente ser esquecido. Retorquiu-me que alguém inevitavelmente o recriaria de forma idêntica, acrescentando ainda que nem fora ele o criador, mas o espírito das coisas. Pensei comigo: claro, o Tao é eterno...

Estive na China antiga até o dia e a hora em que fui visitá-lo a primeira vez. Encontrei-o catando os mesmos ovos de pato, o vento balançava as folhas e as crianças corriam e os cachorros latiam exatamente iguais. Mas dessa vez ele me pareceu distraído e distante. Saudou-me cordialmente, como faria a qualquer estranho. Eu lhe disse mestre, não me reconhece...? e ele, já te vi vadiando pra lá pra cá... Espantado, soltei a única frase que cabia no momento: vim me despedir... e ele, pra que tanta pressa? Ri daquele desvario, dei as costas e saí contente, inquirindo a mim mesmo sobre o que ainda fazia fora do meu tempo...

Mais uma parada, bastante breve, no ano 1233 a.C., apenas para me certificar do que já sabia: na soleira daquela porta, o homem esculpia o símbolo correto, com sua linha maleável e seus pontos de cores contrárias.

Encontrei meu laboratório do mesmo jeito que o deixara antes de reencarnar na antiga China: arrumado, com todos os aparelhos ligados, o chá ainda morno na xícara e o gato dormindo em cima de um aparelho. Mas o milagre havia se dado com toda a certeza; eu trazia comigo o casco da tartaruga.





Nanquim (29x22 cm)

9.12.11


Parafina

Grafite (33x23 cm)

6.12.11

Desencanto



O homem nasceu
a mulher já havia
concebido.

Meu lago é frio
meu umbigo blue
meu destino comum.

A vida satura
o tao é utopia
o corpo sabe.

A dor é d’menos
a fórmula singela:
perdoa-te.

Perdoa-te.
Atura-te.
Retira-te.

Adeus para quem parte
todo filho é triste
e o tigre solitário.

Três tristes tigres
pai, filho e espírito santo
no meu desencanto.

Não há nada lá fora
nunca houve diferença
sempre assim por diante.








3.12.11

Círculos Concêntricos



Beleza pura:
seios no buraco
da fechadura.



Bico de pena e grafite (15,5x25 cm)

Guache (22,5x20 cm)