Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


25.5.12


Fruta-pão


Escrever. De repente
rompe-se a solidão.
Quem vem?
Quem me acompanha?
Fique aqui comigo
você que manda e se manda...

Um galo cantou no escuro
um eco tecendo
o balão da madrugada.
Eu também canto e costuro
palavras entretecendo
noves fora nada.

Hoje.
Eu não passo daqui.
Memórias.
Mariposas.
Murmúrios.
Hoje.

Sonhei que dormia
um sono profundo
um sonho sem som
sem luz sem eu.
Era a sensação de uma morte companheira
ou era uma vez uma vida inteira.

Saturo de sonhos
sentidos
mitos
interpretações, miragens, milagres, acasos
ilusões
labirintos.

Quero a coisa que tem nome
como o céu é azul
e superficial.
Pode amanhecer, pode escurecer
podem brilhar as luzes do sol
o céu é azul: só.

Quero a poesia concreta
— não aquela.
A poesia
poesia
poesia
poesia.

Deus é o limite.
— Fale, Deus, fala!
Mas Deus não são eus
e não escuta poesia
só quer saber se eu
estou com tudo em dia.

Oh Deus salve o oratório e a oratória
Deus salve a glória e a gloríola
e a corruptela da palavra vazia
que é dela o reino dessa terra
por onde perambula esse rêi
com acento circunflexo.

De repente Deus responde:
" Que queres tu, Zezinho
que queres que eu te conte?
Que tu viajas num barquinho
sobre a linha do horizonte
equilibrando-se ali sozinho

sem ter porquê nem por onde
com medo de um redemoinho
que está fora do meu controle?
Ora! Tu perfazes o caminho
entre o nascimento e a morte
colhendo rosas e espinhos

conforme a natureza da sorte
­—que novidade há nisso, menino?
Invocas um avalista do meu porte
pra recordar-te que o destino
rege a instância dos homens?
Não perscrutes o divino...

Agora me ouve
chega aqui pertinho:
tua luta não me ilude
tu queres é carinho
e buscas na fria plenitude
o que tens de sobra no teu ninho."

Tudo em inho, tudo em e.
É fácil escrever
como vaga o vaga-lume
como louva o louva-a-deus
dá na mesma...
– dá nada!

Danada é minha filha
que me disse uma vez:
nem tudo vai ser
quando eu crescer
então não fica dizendo
o que vai acontecer...

Filha pequena
isso é um poema
fruta-pão
que eu te dou
de todo o
coração.




23.5.12

Colagem com papel de seda pintado (24x33 cm)

20.5.12


Cor-de-burro-quando-foge


A mistura indistinta de cores
resulta num tom cinzento
que recebe o sugestivo nome
cor-de-burro-quando-foge.

Uma mistura arbitrária
de matéria orgânica e inorgânica
exala aquele fedor típico
dos caminhões de lixo.

Poderíamos chamar esse cheiro
de aroma-de-burro-fugidio
como os ruídos dos carros nas ruas
de som-de-burro-que-flutua.

Qualquer mistura aleatória
perde o caráter dos elementos
e não cria nada novo;
é sempre o mesmo burro de novo.

Cansa na arte contemporânea
a cor burra do pó, asfalto
borracha, ferrugem, nódoa
graxa, mofo, breu e sola de cão.

Mas o burro também foge do falso
azul amarelo e vermelho e preto
da copiosa escala Pantone
nessa industrial alegria dos tempos.

A natureza infinita e a Pintura
distinguem a cor da cor da cor, por exemplo
o marrom do burro quando pasta
do marrom do burro quando foge.



Pastel (18,5x28 cm)






17.5.12

Escolha


Você pode obter um pouco de muito
Ou extrair muito de pouco.

Mas não pode escolher os dois.



Parafina

14.5.12


Poema d’água


Sinhá dorme no meu colo
Lucinha me chama de alegria
eu ando tão perturbado
que não reparo a garoa
companheira tão antiga.

Dói em mim o óbvio limite
de que não posso escrever à toa
que não basta a idéia solta
um poema precisa de ordem
o verso é avesso à desordem.

Dói em mim a consciência
de que a poesia não passa
de uma taça cheia de água
que só serve pra servir
à sede dos deuses.

Uma esfinge mesquinha
resguarda a bendita água
no poço de um oásis
onde tantos mergulham
de cabeça na areia.

A água que eu retiro
parece aquela que jorra
nos sonhos: a gente bebe
bebe, bebe e desperta aflito
morrendo de sede.

  

11.5.12

Aquarela (21x31 cm)

9.5.12

Bico de pena, pastel e guache (19,5x24 cm)

3.5.12


Parafina (alt.: 40 cm)