A juventude é romântica, e Ele viveu um ano inteiro dedicado à sua paixão. Ela, ambígua, dava bola, sorria, lançava olhares, mas depois se recolhia. Enfim, Ele a convidou para passear, queria dar um desenlace a sua desconfortável condição de personagem iludido. Sentados num banco de shopping, Ele, inocente, declarou-se e Ela lhe respondeu, com delicadeza:
– Eu gosto muito de você, de verdade, mas como amiga. Estou apaixonada por fulano...
E, de fato, logo se casou, ainda jovem, com o tal fulano, Ele partiu para outra, alguns anos depois também se casou, e assim o tempo passou com encontros esporádicos entre os dois em festas, espetáculos etc., quando então se comportavam com aquela exagerada formalidade que costuma sonegar antigas atrações. Mas isso era natural, eles não percebiam.
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Ela tinha se separado havia tempo, Ele acabara de fazê-lo, estava alegre, livre, à cata de aventuras, e nesse clima depararam-se numa festa de amigos, uma noite inteira passando a vida a limpo, reconstituindo (no mínimo) a velha amizade que os casamentos desfizeram. Mas notava-se ali um desequilíbrio: Ele buscava diversão e libertinagem, Ela lançava sinais de flertes esperançosos, sentia nele o homem que poderia ter tido no lugar do seu ex-enrosco que somente infelicidade lhe causara. Ele não, ria e tecia comentários com aquele ar de maturidade conquistado nas experiências dramáticas do seu ex-matrimônio. Ambos então com uns trinta e poucos anos, portanto com muito futuro pela frente.
Almoço aqui, chope ali – a amizade plenamente restaurada –, necessário agora era administrar a antiga atração que deixava a conversa e os gestos um tanto retraídos. Um dia, Ela partiu para um ataque indireto, levando consigo uma bela caneta tinteiro (que o outro colecionava) como objeto de sedução. Apareceu de surpresa em seu apartamento, com tudo (higiene, roupa íntima, camisinha) em cima. Seu amigo encabulado convidou-a para entrar arrumando a camisa dentro da calça. Ofereceu-lhe isso e aquilo, agradeceu muito o presente (Ela estava cismada), quando então uma mocinha bonitinha saiu do quarto para cumprimentá-la. Mal-estar geral: não pegava bem virar as costas e sair, mas a mocinha também não tirava seu time de campo, e, para Ele, restava fazer o meio-de-campo. O constrangimento durou meia hora, o suficiente para uma nova separação.
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– Aquele dia terrível eu te perdi outra vez, mas você sempre esteve comigo. De verdade. Não sei por que as coisas são complicadas entre nós. Mas agora não me escapa, jamais – foi o que Ele disse, bêbado, três anos depois, num reencontro fortuito, novamente na casa de um amigo em comum.
–É a nossa sina. Estou grávida de um menino e muito feliz com beltrano. Conhece? Ele está chegando...
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Dessa vez a distância foi longa, uma década e tanto, porém sem que perdessem o contato por completo. Ela, inclusive, chegou a visitá-lo na maternidade, por ocasião do nascimento do seu segundo filho. Estiveram juntos em algumas reuniões e casualmente em congresso, junta eleitoral, livraria, espetáculo musical, quando então trocavam palavras de consideração. Seus cônjuges não eram indiferentes à ligação de ambos e trabalhavam para mantê-los afastados. Certa feita, chegou aos ouvidos dela a informação, logo confirmada por conhecidos, que o casamento dele era um tormento. Aquilo serviu como um gatilho para a agora cinquentona passar a criar fantasias de libertação, o que contribuiu para ruir inda mais seu próprio casamento. Porque – é preciso observar – Ela lutava para não se sentir careta, dizia a si mesmo que havia muita energia em suas veias, e a usaria ainda se Deus quisesse. Devaneando assim, conseguiu o celular do seu nunca amado amante e ligou furtivamente, sem medir consequências.
– Estou ligando pra saber como você está...
– Pois era com você mesmo que eu queria falar. Caiu do céu. Só poderia ser com você.
– Eu também estou precisando...
Marcaram no café de uma livraria distante, onde não pudessem ser reconhecidos. Ele desandou a contar os podres de sua mulher, estava de saco cheio, mas havia os filhos, contudo, nada o impediria, estava decidido, iria separar-se novamente, somente não o fizera por conta de uma inesperada doença da esposa, que inclusive fazia exames médicos naquele momento etc. Ele falava tão bonito que o desejo dela era agarrar sua mão, puxá-lo pra si, beijá-lo – como era possível nunca haverem se beijado? Longas pausas, olhares e sorrisos. Então o destino trouxe a conta: o celular que tocava insistente era a sua mulher ansiosa pelo diagnóstico: câncer terminal. Como podia, catso, naquela hora? – Ela pensou. Ele, em choque, se despediu.
Ela ligou no fim de semana pra saber das coisas, Ele contou, consternado, que uma força havia feito ele se unir, do fundo do coração, com a esposa moribunda. Restou a Ela esperar pela notícia do funeral, mas a tal doença terminal não terminava nunca, a ponto de esfriar toda a esperança e dissolver qualquer fantasia – para enfrentar de volta a sua realidade de maridão e trabalho. Recebeu com desdém a notícia do falecimento da dita cuja somente dois anos mais tarde. No enterro, abraçaram-se consternados, mas nem a dor verdadeira da perda o impediu de sentir pela primeira vez em seus braços o corpo daquela que poderia ter sido a mulher de sua vida. Não que o contato tivesse sido demasiado longo, o abraço foi terno e contido, o bastante, porém, para o viúvo preservar na memória ao menos a fragrância daquele ente imaginário.
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Um perfume é muito pouco, mas nesse caso acendeu a brasa abafada ao longo dos anos, que logo se transformou numa fogueira. O perfume e o toque das mãos nas costas atazanavam sua cabeça cansada de luta e de luto. Não tinha mais idade para hesitações: ligar já. Seguidas tentativas, mas ninguém atendia. Tinha receio de procurá-la em seu apartamento e dar de cara com o marido, e vergonha, viúvo recente que era, de sondar seus movimentos com os amigos. Mas o destino, dessa vez, deu uma mãozinha mesmo que marota: topou casualmente com o primogênito da mulher, que lhe informou que os pais estavam em “lua-de-mel” na Europa. Sentiu (e disfarçou) um desânimo profundo, blasfemou a sua sorte e jurou nunca mais pensar nessa estúpida e histórica encrenca. Pelos lados dela, o filho inocentemente comentou com a mãe o encontro com o viúvo, semanas após o retorno de sua frustrada viagem. Ela imediatamente ligou:
– Tentamos reatar, mas Paris nenhum preenche nosso tédio. Não dá mais.
– Vocês se separaram?
– Ele já saiu de casa. Foi duro, mas está tudo bem.
– É duro...
– Você encontrou meu filho...
– Sim, na saída do cinema...
O papo seguia sem fluir, ela sacando, por vasta experiência, que a porta se fechava mais uma vez. Recuou. De fato, Ele vivia a verdadeira lua-minguante-de-mel com uma jovem que lhe resgatou a auto-estima e a felicidade perdidas. Ela o soube por terceiros e caiu na fossa. E da fossa para o fundo do poço, com o advento de delicadas cirurgias ginecológicas.
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Porém, por ironia, a gravidade de sua internação voltou a uni-los. Assim que se inteirou do caso, Ele passou a se dedicar a Ela, esteve de corpo e alma a seu lado portando-se como um grande companheiro. (Companheiro?) Os dois nem se preocupavam em manter as aparências, ignoravam até os filhos e Ela pediu diretamente para o ex-marido se afastar. Viviam um idílio.
– Acabou completamente. Foi dessas paixões de homem mais velho, carente...
– Bobão...
Todos os dias a visitava no hospital. Queria paz, queria segurança, e Ela significava essa bonança que na vida havia lhe escapado. Agora o caminho estava desobstruído. A seus olhos, Ela se tornara uma senhora bonita, sensual; as vezes que deixava escapar um fragmento de cocha entre as abas do avental, era o bastante para Ele imaginar o resto.
– Doutora, e então?
No hospital o tratavam como se fosse o marido. Trazia flores, conforto, alegria. Brincava com a paciente:
– Parece que meu destino é acompanhar mulheres no hospital... A doutora me disse que você está indo muito bem, mas a alta é imprevisível.
Ela pedia para as enfermeiras que a mantivessem o mais ajeitada possível, sentia-se envergonhada pela languidez da convalescença. O ciclo estava no fim, era uma maré cheia de felicidade, por estranhas vias haviam enfim se unido. Aguardava diariamente, excitada como uma menina, o beijinho na testa que recebia na chegada e na saída. Acontece que a sombra voltou a pairar com a ausência do parceiro por três dias.
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– Estive ocupado, mudando de casa. Onde está a doutora?
– Segunda é sua folga.
– Ah é... Sabe, talvez não possa vir amanhã...
Ele estava mudado. O que mais Ela conhecia naquele homem era a sua dissimulação. Nisto era íntima. A tristeza voltou, pois seu novo nunca amante não apareceu no dia seguinte, nem nos subsequentes. Telefonou duas vezes, uma das quais para informar que a doutora lhe daria alta no domingo e que Ele lá estaria, sem falta, para acompanhá-la para a casa. Então não a abandonara! Seria Ele um esquisitão, seria esse seu jeito de amar... aquele tipo de homem que precisa se recolher de tempos em tempos...? Sim, no fundo Ele era melancólico... De qualquer forma, a sua verdadeira natureza era justamente o que Ela desconhecia.
– Hora de ir pra casa...
Ele entrou no quarto e lhe deu um beijinho na testa. Ela estava linda – Ele a enalteceu com sinceridade. Nunca havia se declarado dessa maneira, era o primeiro elogio que recebia. Ela, num só tempo, alegrou-se e pôs a pulga atrás da orelha: a naturalidade do colóquio também poderia sinalizar distância fraternal... Deixou a cisma de lado. A simpática doutora acompanhava o casal até a rua. Ele abriu a porta do carro, e deu-se um repentino impasse: ambas menearam os corpos para entrar no veículo. Como assim – Ela pensou – ela vai? E a doutora pensava, olhando o namorado: Ela, na frente? Ele não pensava nada, inerte, com os olhos voltados para o nono ou décimo andar do hospital...
– Vocês dois...!? – Ela disse, apontando a doutora e Ele.
E a doutora:
– Por quê? Vocês dois...? – apontando Ela e Ele. Ele balbuciou à doutora:
– Não, nada...
A nossa mulher cambaleou dois passos, virou-se, pegou um taxi e se foi.
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Agora tangenciavam os setenta anos, quando numa ocasião Ele apareceu com cara de piedade em sua porta...
– Saia. Suma!
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Dali a três anos, no velório, Ela se debruçou no caixão chorando piamente, agarrou o rosto do defunto e lhe aplicou um beijo na boca, que não aplacou em nada a sua angústia.