Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.5.11

Bico de pena (32x25 cm)

27.5.11

Notório Saber


 

Vocês olham de lado, indiferentes, sentindo a vida simplesmente passar, como se nada estivesse acontecendo. No entanto, para este orador, tudo parece estranho, suspenso, pois hoje é um dia daqueles que dividem uma vida. Eu não imaginava o quanto significaria para mim ingressar nesta Universidade como professor convidado por Notório Saber. Sempre desprezei qualquer formação institucional, nunca suportei a disciplina escolar, e acho que paguei caro por isso. Quem me vê aqui colhendo os louros da glória pode achar que sou um paradigma dentre aqueles que se recusam a se submeter aos limites tacanhos do ensino convencional – mas não avaliam o preço de uma trajetória marcada pela solidão e a incerteza. Não aconselho meu caminho a ninguém. A bem da verdade, o que efetivamente ganhei percorrendo trilhas tão tortuosas e labirínticas? Até ontem, um dia comum, nada em mim ainda me distinguia de um vagabundo; e mesmo hoje, apesar do quanto esse título me enobrece, em absoluto me faz sentir especialmente mais graduado do que meus colegas (acho que assim já posso chamá-los) que perfizeram naturalmente a carreira oficial. Vejam: a consagração que ora recebo, nessa idade um tanto avançada, apenas me iguala à graduação de qualquer jovem professor que alcançou sua posição ano a ano, seguindo um desenvolvimento previsível e seguro. Eu não, tive de errar demais, errar no sentido de me enganar sistematicamente, e errar como quem atravessa tresloucado os campos vazios da existência. Para chegar aonde? A esse nível digno, mas singelo, de um professor universitário. Porém, como se diz, a experiência não terá sido em vão; quem sabe o peso do meu sacrifício tenha-me servido para que, após tirá-lo das costas, pudesse sentir essa leve sensação de contentamento que recobre hoje meu corpo de uma atmosfera fluida, livre e solta... Aos profissionais de carreira, imagino, tornar-se um professor universitário talvez não passe de uma decorrência lógica que se comemora com cerveja num bar. Para mim não; confesso a vocês que esse vento que ora suspende o que me resta de cabelo simboliza a libertação do meu eu mais profundo.

Vocês, jovens, desconhecem as tramas do tempo, suas reviravoltas, seus redemoinhos, não podem assimilar o que significa ser possuído por um valor cultivado lentamente toda a vida, e que, de uma hora para outra, ao soar um telefone, desaba como o muro de Berlim, para então, logo em seguida, sem dor alguma, saltitarem no ar os primeiros vestígios do novo, germinar uma semente que queria nascer, mas que fora sempre impedida pelo rigor ideológico. Sei que estou falando de forma abstrata – às vezes me delongo demais nas introduções – mas gostaria que vocês entendessem o que num breve tempo sucedeu comigo. Eu nunca acreditei nesse tipo de vida acadêmica que taxava de careta, sempre me pontuei pela rebeldia e certo culto à marginalidade, mas bastou um telefonema – vejam bem, um telefonema – para eu perceber, uma vez dominado o sobressalto, que minha severa oposição não passava de mera defesa, certamente construída pelo medo de me expor e de ser avaliado como um homem qualquer. Por isso lhes digo: aqueles que se julgam diferentes dos outros – estejam certos disso – são os que se pretendem superiores, e temem um dia o desmascaramento de se descobrirem comuns. E, por conta disso, perdem as maiores oportunidades que lhes aparecem na vida, por considerá-las reles e tediosas – e o tempo vindouro cobrará em dobro para lhes abrir nova porta.

Vejam só como a verdade submersa se manifesta no fundo de um coração oprimido, quando este desperta. Não tinha consciência do quanto namorava a Universidade, desde sempre. Para quem não sabe, dela inclusive já havia feito parte como aluno da Faculdade de Física, durante dois anos, nos idos da década de setenta. Mas aquilo era pouco para mim, e demonstrei meu desdém abandonando o curso que julgava atrapalhar meus estudos particulares; para que a instituição para quem sabe ler um livro? Quanto mais me alertavam para a insensatez da atitude, mais me persuadia de minha decisão. Inicialmente, vivi meus dias livres com entusiasmo, mas não demorou para as dificuldades se avolumarem – senti na pele as conseqüências dos descomunais sacrifícios a que me impunha para provar a todos que eu estava certo. As asas da liberdade, meus caros, pesam mais que os grilhões do prisioneiro. Para minimizar a prepotência da minha opção, continuei freqüentando a Universidade, agora por conta própria, visitando periodicamente a biblioteca da Faculdade de Arquitetura, e costumo dizer ainda hoje, com orgulho, que poucos como eu deixaram tantas vezes seu nome inscrito no caderno de controle. Aqui também acredito que tentava mostrar (pra quem?) que poderia me formar sozinho, independente dos vínculos oficiais.

Mesmo quando deixei a biblioteca, uma nova fase, que eu chamaria de motora, tomou lugar na minha estreita relação com a Universidade. Tudo começou quando fui despejado do meu antigo apartamento (num processo mal esclarecido), e vim morar, coincidência ou não, aqui, logo atrás, nos fundos do campus, no mesmo bairro onde... não, não vamos nos desviar. Passei então, sob pretexto de me exercitar, a vagar diariamente por todo lado, caminhadas essas que hoje interpreto como uma declaração de amor, sobretudo pelo modo obsessivo com que visitava prédio por prédio, reparando toda e qualquer transformação que despontasse aqui ou ali, desde implantações de guaritas, pontos de ônibus, lombadas, até pequenos detalhes pertinentes às intervenções de alunos, como cartazes políticos, pichações eróticas nos banheiros, restos de festas espalhados nas gramas... Posso afirmar, com segurança, que não existe reitor nem ninguém que conheça mais esse lugar como um todo do que eu. Na verdade, desde minha infância, já que o destino me fez nascer atrás desse campus universitário... Vejam, por exemplo, no que concerne a vegetação; vocês não calculam (mesmo porque ninguém aqui havia nascido) como isso tudo em volta já foi árido e desolador, um descampado sem fim por onde pipocavam as novas faculdades e os prédios administrativos. Naquela época não se dava valor ao verde como em nossos dias, e por isso só tardiamente tomou-se a iniciativa de plantar as primeiras mudas de árvores, ainda magrinhas, cercadas por taquaras, que se perdiam na vastidão avermelhada, onde meu pai me trazia para andar de bicicleta...
– Professor, e a aula?
E a aula, e a aula! (quem me pergunta? mostre a cara!) O que vocês querem ouvir? Eu estava distraído na minha casa, um telefonema foi o gatilho; pego de surpresa, vim o mais rápido que pude, a pé (e aqui é aquele perto que é longe...), o que querem mais? Contar um pouco da minha experiência não vale nada? Aliás, apesar de que espero não iniciar o meu magistério com polêmicas, não posso concordar com a resolução do Conselho de marcar minha primeira aula nesse anfiteatro ao ar livre, desvinculado de uma faculdade específica, num local reconhecidamente destinado a shows ou eventos similares. Além do risco iminente de chuva (estou sentindo já umas gotinhas impertinentes), esse espaço me obriga a falar muito alto em meio a esse zunzunzum, e mais essa gente que sobe e desce, normal para uma praça como essa, mas inadmissível num ambiente de aula. Não há quem se concentre num lugar assim! E esse não é o único problema; também não me explicaram meu Notório Saber – saber... no quê? Com a minha idade, já estudei tantas coisas – pela qual fui escolhido? Penso na minha estimada devoção à arte egípcia, mas não me convidariam por isso, não sou nenhum egiptólogo profissional, embaralho-me com aquelas dinastias, seria mesmo incapaz de acertar de pronto o milênio da pirâmide de Tibet; gosto apenas do estilo em si, daquelas pinturas sem perspectiva, de seus hieróglifos misteriosos, da fineza dos baixos-relevos coloridos... Eu poderia discorrer perfeitamente sobre as agradáveis impressões com que essa arte me toca, mas certamente não fui contratado para esse fim – beleza não é matéria de Universidade que trabalha estritamente com o intelecto que, por sua vez, pertence à realidade objetiva, e não haveria de ser de outra forma; como imaginar uma sociedade que investisse seu dinheiro para uma elite se dedicar a conteúdos subjetivos? Algo assim como substituir a polarização exatas/humanas pela dualidade de sentimentos produtivos/destrutivos... De um lado, faculdades fantásticas voltadas à pesquisa do amor, solidariedade, confiança, generosidade etc.; de outro, sombrias, estariam as faculdades da inveja, ódio, ciúme, traição, etc. Fosse assim, ali no alto, erguer-se-ia formosa uma imensa torre absolutamente transparente, como um pedestal, para a faculdade da beleza, cuja questão fundamental estaria já estampada na própria arquitetura de seu prédio: eu existo ou não existo? Ah, desta eu quereria ser professor... Posso imaginar os vários grupos xiitas digladiando-se para fazer valer suas posições diante do dilema da beleza, as tantas controvérsias...

– Professor, e a aula ?
Estou tentando, não veem? Já disse, eu estava muito bem no aconchego de casa, não precisava passar por essa humilhação. É um absurdo que nenhum representante oficial tenha vindo me recepcionar e apresentar-me a vocês, e sobretudo definir a minha área. Notório saber em quê, meu Deus? Originalmente, a palavra saber significa ter gosto pelas coisas, e eu gosto de tudo, não sei por onde começar. Minha mãe dizia que eu era um bom intérprete da alma humana, e levaria jeito como terapeuta se houvesse me dedicado a esse fim com afinco. Talvez tivesse razão... é verdade, eu sempre observei... mas as pessoas confundem o psicólogo simplesmente com alguém que sabe ouvir. Ouvir, de fato, é uma rara qualidade, e reconheço que possuo esse dom. Mas não posso ensinar ninguém a escutar, começar uma aula dizendo assim: sou todo ouvidos, digam alguma coisa pra mim e observem como eu faço... É claro que para um psicólogo não basta apenas a audição, em algum momento o cara precisa falar e, para isso, ter estudado o suficiente até escolher um modelo satisfatório para a análise dos casos – do que minha mãe não fazia a menor idéia. Para ela, meu jeito tranqüilo (tendendo ao lento), além de uma certa pompa no jeito de comentar aspectos íntimos da natureza humana, fariam de mim um bom profissional ou, pelo menos – e esta era evidentemente a sua intenção – conseguir encontrar um rumo na vida.

Alguém aí tem alguma dúvida? querem se abrir comigo? será que trouxeram alguma coisa? Também vocês não ajudam, se me apresentassem algo de concreto eu identificaria uma área de atuação. Meu ex-cunhado me elogiava, em tempos de outrora, como um bom crítico de seus projetos – ele que se tornou um arquiteto de renome. Mas não pensem que porque freqüentei anos a fio a biblioteca da Faculdade de Arquitetura eu tenha me tornado um autodidata na matéria, não! jamais abri ali um só livro de arquitetura! Interessava-me somente pela seção de arte, o que também não me fez um crítico ou historiador, até por nunca ter entendido uma palavra em inglês ou francês, línguas que dominam a maior parte dos livros, e ademais, mesmo quando passava os olhos por aqueles enfadonhos parágrafos dos poucos exemplares traduzidos, logo me escapava o conteúdo, pois, como falei, sempre fui um incapaz com as datas, nomes ou fatos históricos, ainda mais aquelas bagatelas como nascimento de pintores, características dos estilos, contextos sócio-econômicos... Dedicava-me somente às figuras, às variedades das representações de cada civilização, à profusão das formas alcançadas pelos grandes mestres, com os quais, confesso, me identificava e imitava de tal modo que cri poder estar a caminho de ser um deles, quando da minha frustrada tentativa de ser pintor. Agora vocês compreendem minha fascinação pela arte...

Estou vendo que a chuva engrossa, mas ainda não terminei esta aula bastante informal, e não há nada pior do que ter o pensamento interrompido! Como ia dizendo, mergulhei na pintura, sim, cheguei até a me aproximar de um certo estilo, mas minha autocrítica foi por demais impiedosa, não dava paz um minuto. Acabei por desistir da carreira. De que serve uma atividade que só gera angústias, e na qual não se vislumbra nenhuma perspectiva? É evidente que essa é minha verdadeira área, e me sobrou o suficiente para ensiná-la a leigos, mas nunca num lugar como este, aberto, sem nenhuma infraestrutura, e além do mais, se tivesse sido convidado como professor de artes, vocês estariam carregando consigo cadernos e papéis. Vejo que não. À vera, os poucos que avisto parecem estar nem aí... Aquele casalzinho lá, embaixo do guarda-chuva, não está interessado em nada... Alguns passam apressados, cabisbaixos... E reparo, que não sou trouxa, certos olhares desconfiados, irônicos..., por quê? Esse mesmo senhor uniformizado já cruzou aqui, de um lado para o outro, duas, três vezes, ignorando-me categoricamente, sem um mínimo respeito...

É claro, estamos em greve! Agora entendo perfeitamente: marcaram minha aula em dia de greve! E eu aqui fazendo papel de fura-greve, logo eu, desde sempre um radical contestador – não devia ter vindo. Podiam ao menos ter me avisado, quiçá contassem que eu soubesse...; o telefone é da minha vizinha, e ela esquece com freqüência de me dar recados. E certamente é por isso também que ninguém da congregação veio me recepcionar.

Gostaria de aderir à greve, como posso justificar ao movimento que trabalhei por engano? ainda mais agora, quando a aula está na iminência de ser concluída? Também já fui jovem, sei que para a juventude é importante a solidariedade dos docentes. Mas é muito azar, logo no meu primeiro dia, com toda a importância que este momento representa para mim... Essa situação me faz recordar um caso que aconteceu comigo quando completei dezoito anos – escutem essa! Desconfiava de que meus amigos me fariam uma festa surpresa, havia entre eles uma movimentação evidente neste sentido, e tudo se confirmou quando escalaram uma colega gordinha e sem graça pra me levar à noite ao cinema – evidentemente, queriam tempo de preparar as coisas. Fiz minha parte na encenação, dizendo a todos que não iria comemorar, que não gostava de aniversários, e sobretudo aceitando sair com a tal menina mala, como vocês dizem hoje em dia. Durante a sessão, ela habilmente insinuou-se a meu lado obrigando-me a redobrar a cautela, e, ao final, manifestou o desejo de ir pra minha casa. Eu, no meu papel, endossei o convite. No trajeto do ônibus, sentia-me altivo e deveras maduro no modo vago e educado de responder a seus estímulos sedutores – desculpem-me senhoras, não quero baixar o nível, mas homens ficam assim quando não estão atraídos. Então chegamos e, como era de se esperar, as luzes estavam todas apagadas. Adentramos o corredor lentamente (não tinha pressa, queria curtir tudo devagarinho). Abri a porta simulando naturalidade, acendi a luz da sala e tive realmente uma surpresa impactante: estava tudo no lugar, não havia festa alguma.

Não sei por que me voltou este caso tão antigo, peço que me perdoem por esse lapso emotivo. Está escurecendo, a chuva aperta – é hora de irmos. Aliás, agora vejo, exceto esta boa negra que me aguarda atenciosa debaixo do seu guardachuva, não há mais ninguém aqui. Não é feia, ao contrário, pela idade, está até em forma – percebo que não é pouco o que esconde debaixo do uniforme. Se soubessem o bem que faz ao professor um aluno que se interessa pela aula e que eleva seu mestre com cuidados e elogios, confundindo algumas vezes esta admiração até mesmo com uma atração libidinosa que se anuncia através de um olhar furtivo, de um sorriso maroto, um toque casual de mãos, tudo disfarçado em pequenos gestos de ajuda, cujas reminiscências vêm à noite alimentar os sonhos... Já que o professor, no alto do seu pedestal, não deixa também de ser um homem comum, humano, carente, que necessita dessa simbiose com os alunos para completar sua natureza imperfeita...

– O senhor está bem?

Claro que estou, só um pouco molhado, mas não me incomodo. Escureceu e eu nem notei. Na próxima aula virei mais preparado, é inegável que hoje estive um pouco confuso. A negra me oferece carona em seu guardachuva, gostaria de poder acompanhá-la, pena, vou pra lá, pro outro lado.


Pastel (28x19 cm)


18.5.11

Modigliani


Nu, de bruços, deitado nas almofadas.
A pele rosada contrasta sobre tons marrons.
Uma beleza que não esquece nenhum vão.
Numa posição da mais nobre indecência.
Sabe-se que é homem, mas a imagem desmente.
Quando um homem chega ao limite da mulher.
Mas isso não interessa.
Meus olhos em sua bunda e eu penso: por quê?
O que retém a bunda, uma bunda, mas esta bunda?
Que me encara como se fosse olhos.
Seus próprios olhos agora me chamam, mas em vão.
Um mundo separa seu sim e meu não.
De onde estou, posso imaginar:
Que era madrugada.
Havia silêncio.
E não era caso de amor.
Apenas aquela questão diabólica da beleza.
Quando se entrega a vida na obcecação.
E o outro cara era pintor.



Grafite (19x28 cm)

10.5.11

Fábulas de La Tatite



Contam que lá pelos idos dos anos 2000, numa zona rural do interior do Brasil, havia um moleque nojento e pamonha, que era mantido na fazenda somente por ser filho de caseiros bastante estimados pelo patrão. Mas se via que, desde cedo, o garoto não prestava, fazendo seus pais perderem a cabeça sem conseguir endireitá-lo nem um tico.
O moleque inicialmente era dado a comer as galinhas – comer no sentido de foder –, depois passou a molestar os cães, progrediu com grande prazer para ovelhas até se apaixonar por uma mula com a qual deveria ter parado sua evolução.
Acontece que o desejo nunca tem fim, e naqueles dias ele refletia consigo – se é que um energúmeno daqueles refletisse algo: se as cadelas eram melhores que as galinhas, as ovelhas que as cadelas, e minha querida mula melhor do que tudo, como seria catar logo a filha do patrão, aquela potranca gostosa...
Zapt-zupt, na primeira oportunidade, lá foi ele estuprar a filha do patrão, moça de dezenove anos que, de fato, era muito bela e apetitosa. Empunhando um enorme facão, surpreendeu a dita cuja dentro da própria casa. O garoto, sempre com aquele sorriso débil na boca sem dentes, ordenou-lhe que tirasse a roupa. Em seguida, completou: queria ver se uma fêmea é realmente melhor que sua mula. A menina não era boba, sabia que o crápula não tinha o menor juízo e mantinha a calma enquanto buscava uma solução.
Então ela falou: “Geginaldo, tudo isso é muito triste pra mim, mas não posso fazer nada. Já que vou ser estuprada, o melhor é relaxar e dar a você o que você quer, e tentar também tirar algum proveito disso. Você é um rapaz bonito, por isso quero fazer com você aquilo que eu faço com meus namorados”. “E o que é, dona Rosita?”. “Vou passar um creminho da hora na xoxota pra você me chupar todinha.” “E é bom, Dona Rosita?” “É o que há de melhor. Você não entende de mulher, eu vou ensiná-lo.”
Tirando a roupa, pegou o tal creminho e deitou na cama com as pernas escancaradas. O jegue nunca havia tido uma visão mais maravilhosa na vida, mas ainda assim se conteve para acabar de ouvir a instrução da sua professora. “Olhe, Geginaldo, eu vou passar o creminho gosmento e geladinho, mas você tem de lamber tudo e engolir fundo no ato, senão jamais sentirá o verdadeiro gosto do prazer”.
E assim fez, tão logo viu o moleque ajoelhado em suas pernas, pronto para atacar. Acontece que o creminho era uma cola conhecida na época como Super-Bonder, dessas que tudo cola instantaneamente. Ela despejou todo o tubo ali, no tufo de pelos, e mal sentia a goma escorrer já o linguarudo mamou aquilo de vez. E engoliu. Só teve tempo de ponderar: “não gostei, dona Rosita”.
E tudo nele grudou: lábios, língua, goela, o danado ficou num desespero tal que nem podia agir contra a menina que já havia pulado da cama e corrido, pedindo socorro. Quando os primeiros lá chegaram, encontraram o corpo do moleque bronco mortinho da silva.

Assim é a vida, meus filhos, é preciso ter limites. Quem não tem cão casa com gato ou galinha, mas não com animal mais distinto.



Bico de pena, guache e pastel (20x24,5 cm)

8.5.11

Bico de pena (29,5x21 cm)