Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


21.2.11


Aquarela (32x21 cm)


16.2.11

Meu Eclesiastes

                                                         
                                                          (Versão livre e irresponsável, baseada na
                                                          belíssima tradução de
                                                          Luís Stadelmann.)

De que serve todo o trabalho
do homem debaixo do sol?
Outra geração passa
e o barro continua o mesmo.
O sol se levanta, se deita
o vento sopra ao sul, ao norte
os rios seguem os leitos
e o mar nunca transborda.
Tudo é penoso
o homem não sabe explicar
a vista cansa de ver
o ouvido cansa de ouvir
e a cabeça a se perder.O que foi, será
não há nada de novo debaixo do sol.
Alguém diz “é novo”
mas aconteceu muito antes de nós
e não há memória
e não haverá lembrança
depois de nós.

Deus impôs tarefa ingrata
de compreender o que existe debaixo do céu,
e debaixo do sol só existe
ilusão e frustração.

O torto não pode desentortar
a falta não será preenchida.

A sabedoria reflete
sobre a insensatez e a cegueira,
conclusão: a sabedoria é ilusão
quanto maior a sabedoria maior o desgosto
quanto maior a ciência maior o sofrimento.

A alegria: qual é o fruto?
Deliciar o corpo com vinho
dar-se às frivolidades
dedicar-se aos prazeres
como construir uma grande casa
com jardins e pomares
flores frutas vacas ovelhas cavalos
e empregados para tudo cuidar
e empregadas para cuidar de tudo
e cantores e cantoras para cantarem
e principalmente mulheres
mulher e mulheres.
Mas essa obra
e a fadiga que deita ao coração
é ilusão e frustração
porque nada é proveitoso
debaixo do sol.

Toca a todos a mesma sorte:
ser sábio ou estúpido?
ambos cairão no esquecimento...
É mau tudo o que está debaixo do sol
ilusão, frustração e só.

Eis o mal de tudo o que existe:
o ódio e o amor Deus oferece
ao sábio e ao estúpido
ao justo e ao injusto,
ao puro e ao impuro,
ao íntegro e ao desvairado
ao trabalhador e ao vagabundo.
Já vi gente honrada fracassar
e o ruim progredir, por isso
não se mostre demasiado justo
nem exagere sua ruindade –
Deus não gosta dos extremos.

No sol a fatigar-se
para deixar a herança ao filho...
Será ele sábio ou estúpido?
para herdar tanto esforço
conhecimento e perícia
de tantos dias debaixo do sol.
Quem ama dinheiro aumenta o dinheiro
e alimenta o ladrão.
Riqueza estocada, desgraça do dono
e o filho ficará de mãos vazias.
A uns Deus dá sabedoria e alegria
a outros a habilidade de guardar e acumular
para tudo acabar nas mãos de estranhos.
Ilusão e frustração.

Quem viva cem anos
possua todos os bens
tenha o desejo ao alcance
mas não desfruta a felicidade
– um estranho irá desfrutar;
isso é ilusão e cruel sofrimento.
Sem experimentar a felicidade
melhor ter sido abortado.

Quem não tem não perde
e pode comer e beber
mas quem tem perde o sono.
Não há felicidade ao homem
para além de comer, beber
e um certo bem-estar
fruto do seu trabalho.

O trabalho do homem é pra sua boca
contudo seu apetite não sacia.
Há uma vantagem no sábio
sobre o estúpido? – enfrentar a vida,
viver com o que os olhos olham
e as mãos seguram
não àquilo que se cobiça.
Apesar de que é também
ilusão e frustração.

A preguiça desaba tetos
a inércia dá goteiras.
Fica observando o vento
e o tempo passará.
O trabalho serve para ocupar o homem.
De manhã semeia a tua semente
de tarde não deixes as mãos ociosas
pois não sabes se isso ou aquilo vingará
ou se ambos igualmente terão êxito.

Tudo vem ou não vem com o tempo
e o tempo está abaixo do céu;
tempo de nascer tempo de morrer
tempo de matar de destruir
tempo de chorar de construir
tempo de dançar de gozar
de calar de odiar de esperar
tempo de atirar pedras
tempo de catar pedras.

As coisas são boas no tempo oportuno
por isso Deus julga o justo e o injusto
na adequação de cada ação.
Quem há de dizer
o que é conveniente para o homem
que passa pelos dias como uma sombra?
Certos estão o justo e o injusto
e o justo e o injusto pagarão
porque há um momento oportuno
para cada coisa
e um lugar para cada ação.
Mas há quem se anime a praticar o mal
porque o julgamento demora.

Mais valem dois juntos que um só
dois podem dormir juntos e se aquecerem
pobre daquele que está só
se cai, ninguém o levanta
e pra quem e pra que
seus olhos se fartam de riqueza?
Isso é ironia ingrata e ilusão.

Quem vai endireitar
o que Deus entortou?
Em tempo de felicidade, sê feliz
em tempo de infelicidade, pondera:
Deus fez uma coisa como a outra
e ninguém pode pedir demissão da guerra.

Mais trágica que a morte é a mulher
– mulher é armadilha;
suas pernas, um laço
seu coração, uma rede
seus braços, cadeia.
Entre mil homens, sobra um
mulher, entre todas, nenhuma.
Tudo isso é ilusão e frustração.

O que tens a fazer é comer pão com alegria
e beber contente teu vinho
que Deus gosta de você.
O que tens a fazer é transar tua amada esposa
todos os dias da vida fugaz
da vida fugaz debaixo do sol.
Pois esta é tua parte na vida
então viva-a com vigor
pois não há valor nem ciência
nem sabedoria para onde vais.

A corrida não aproxima
a batalha não traz valentia
o saber não ganha pão
a riqueza não tem alegria
porque para tudo existe
tempo e acaso
e o relógio certo não tem ponteiro.
Como os peixes caem na rede
como os pássaros em armadilha
os homens se prendem na teia do tempo nefasto.

Entre o vivo e o morto
mais feliz é o morto
o vivo há de ainda levar a vida;
mais feliz que ambos
quem não nasceu e nunca viu
a maldade que se comete debaixo do sol.
Mais vale o dia da morte
que o do nascimento
visitar a casa do defunto
que a casa em festa
porque a morte de um homem
lapida a mente de quem fica.

Mosca morta fermenta um jarro de perfume
mesmo pequena, a tolice causa estragos.
Preferem os gritos histéricos do poderoso
às palavras calmas do sábio
preferem ouvir o que se sabe
do que aquilo que não se sabe.
Aos estúpidos dão-se cargos
aos homens dotados tarefas menores.

Palavras na boca do estúpido:
o preâmbulo é uma tolice
a conclusão um absurdo.
Quem gosta de fossa cai nela
se a serpente não se encanta
e pica, o encantador vai pras picas.
A boca do sábio diz a palavra
mas a dissolvem num terrível absurdo
os lábios dos estúpidos.
Sabedoria vale mais que a força
mas sabedoria do pobre é desprezada
sabedoria do modesto não é ouvida
sabedoria do inocente é ridicularizada
e santo de casa não faz milagre.

Sábio é quem não pergunta:
“por que os dias passados
eram melhores que os de hoje?”
Sabedoria é ver o sol...
Não seja demasiado sábio
que o sol não brilha à noite
e o erro é verdade e caminho.
Depois de tanto esforço
a sabedoria ainda estará longe
longe... de tudo o que já aconteceu.

A felicidade única, portanto perfeita
é comer, beber e gozar
após a fadiga suportada
debaixo do sol
durante os poucos dias de vida
antes do pó.

Come pão com alegria
bebe teu vinho contente
toma banho com perfume
e sai de roupa branca;
debaixo do sol da vida fugaz
ama uma esposa
que isso é recompensa ao trabalho.

Rechaça as penas do coração
afugenta as dores do corpo
são muitos os anos sombrios
e tudo é ilusão
tudo é vaidade das vaidades
diz o Eclesiastes:
tudo é frustração e ilusão!

Último aviso:
Escrever livros e mais livros não tem limite
e muito estudo desgasta o corpo.



Aquarela e nanquim (14,5x20,5 cm)