Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


27.1.11

O Orgulho


Se a própria palavra já é cheia
de sílabas que fazem barulho
inda mais o sentido do orgulho
como Narciso no espelho:
oh ego, qual a minha verdade?
E o espelho: você não sabe
que não sabe que não sabe...

Mas o orgulho tem o seu valor
como enzima de reações humanas
pois como sempre é derrotado
cada queda serve de exemplo
para um aprendizado lento
cujo fruto não se colhe hoje
– somente no fim dos tempos.



Escultor Escultura


Naqueles anos do velho primário, algumas vezes as crianças recebiam nacos de argila, eu sempre me aplicava na criação da mesma figura de cabeça redonda com braços e pernas estirados. Recordo-me do quanto me incomodava a fragilidade do barro que invariavelmente rachava e se desmilinguia ao secar. Pois então, pensava comigo, com minha cabecinha infantil: pra que fazer olhos, boca, nariz e orelhas num boneco que vai acabar?

Aos dezesseis anos, trabalhei como contínuo na fábrica de vidros em que meu pai era operário. De lá, trouxe um dia para casa um pedaço de argila e modelei um menino maciço, com uns trinta centímetros de altura, cuja expressividade chamou a atenção do meu pai – que veio a falecer pouco depois, minha mãe no ano seguinte. Assim, aos dezoito, estava órfão. A turma da fábrica me ajudou, ensinaram-me o bê-á-bá do vidro e me colocaram para fazer as bolas para sopro. Eu era jeitoso e gostava de brincar com a cana no forno, e lembro de ter moldado no vidro uma pequena figura de homem cabisbaixo bastante elogiada pelos colegas, com a qual presenteei um namorado. Porém, desde lá, meu negócio não era o vidro mas o barro. Sempre que podia, levava mais um naco de terra pra casa, que sobrepunha àquela mesma imagem primeira do menino, de forma que, obviamente, a escultura crescia e engordava com o tempo.

Jamais pude saber se minha figura racharia caso secasse – o que seria provável –, justamente porque por toda a vida a mantive coberta por plásticos, conservando assim a umidade para as devidas alterações e adventos de novas camadas. Talvez essa forma lenta e contínua de construí-la tenha sido responsável por estruturar firmemente o volume em pé, uma vez que o barro interno envelhecido, mesmo retendo certo padrão de umidade, era mais rígido. Eu tinha vinte e dois anos quando a escultura atingiu seu tamanho definitivo, um metro e setenta e três – exatamente a minha altura.

Trabalhava todos os dias após o jantar, mesmo que o cansaço me permitisse apenas um retoque numa sobrancelha ou unha do pé. Mas em geral, ao contrário, dedicava-me muitas horas à obra, num esforço exaustivo, algumas vezes dedicado a uma região somente do corpo, outras reformulando inteira a figura à procura de uma expressão específica. Nessa primeira fase da vida mudava demasiado a peça, imprimia nela movimentos desnecessários, próprios da juventude; ora ela andava a passo largo, ora voltava-se pra trás, ora exibia-se altiva, ora contorcia-se angustiada. Nem a sexualidade se definia; podia descambar num curto tempo de um feminino lânguido para uma masculinidade atlética; o olhar era cada dia um, do introspectivo ao pernóstico ao ingênuo ao contemplativo... enquanto a boca dizia outra coisa: tensão, sensualidade, suplício... Os braços e, principalmente, as mãos: quantos gestos, quantas dúvidas? Enfim, descrevo aqui poucos exemplos para que se pesem as inúmeras possibilidades e combinações por que passei na busca obsessiva de uma imagem desconhecida, sentindo a todo instante e durante toda a vida a iminência de encontrá-la. E reparem: restringi-me aos aspectos gestuais do meu homem, nenhuma palavra até aqui quanto ao estilo – esta luta, sim, meu labirinto infernal.

O estilo. Ainda quero preparar melhor a questão. Contar antes sobre um momento crucial no meu desenvolvimento como escultor, momento este que nunca cheguei a avaliar se me trouxe o bem ou mal, mas que certamente causou um considerável atraso da obra. Sou pobre, com formação pobre, passaria muito bem sem nenhum contato com conteúdos históricos-culturais. Fiz bem? Foi pura curiosidade. E perdi a inocência. Ouvi propagandas de uma tal megaexposição num tal MASP de um tal Rodin e fui, quis ver, visitei-a por não sei quantos domingos, e decerto abriu minha cabeça como também travou meu coração. Pior: desde esse dia, nos finais de semana, acostumei a frequentar museus, igrejas, praças, galerias, onde quer que soubesse haver esculturas de bons ou maus artistas (nunca pude diferenciá-los satisfatoriamente). A cada experiência, retornava a meu quarto tomado por estranhos impulsos e remodelava minha imagem que se perdia cada vez mais. Era um caminho sem volta; passei a frequentar bibliotecas municipais e a devorar livros de artes, a comprar fascículos do gênero em bancas de revistas. Ganhei um livro de Michelângelo de um namorado que trabalhava numa livraria. Justo Michelângelo... razão de estragos profundos no meu frágil ser de barro.

Quantos anos perdi nessas divagações? Dez, vinte? O que ganhei? Dúvidas. Meu homem passou a receber uma pele lisa, músculos protuberantes, um cone feito cabeça, um cilindro feito corpo, ou pior – o meu extremo –, um ano reduzido a uma massa disforme, um colosso de barro sem pé nem cabeça, a coisa em si, erguida, ao natural. Se é verdade que na vida nunca me senti seguro da minha arte, entre os trinta e quarenta anos estive completamente perdido. Saí dessa obscuridade de forma inesperada e banal: um estudante de enfermagem, numa madrugada, ao lhe mostrar a obra e relatar as angústias cotidianas, disse-me algo simplório como esqueça esses artistas, siga a tua intuição. O rapaz não atinou o bem que me fez.

Nesse meio tempo havia definido ao menos a postura que viria a se manter inalterada até o final, exceto pela curvatura dos ombros adquirida com o passar dos tempos: um homem em pé, com o peso dividido entre as duas pernas (antes ele vivia a pender de um lado para o outro), com os braços naturalmente soltos – mas não largados – e a cabeça inclinada para baixo, como olhasse o chão, mas não rente aos pés.

Pois agora, o estilo.

A expressão pode existir numa arte realista, estilizada ou abstrata – a questão não é essa; o problema do artista é encontrar o ponto entre o acúmulo e a escassez. No limiar prolixo, quando atingia uma fiel exatidão de realizações anatômicas – músculos, veias, rugas, cabelos, etc. –, em devida harmonia com o conteúdo evidente da obra (que não trata de um homem genérico, ideal, grego, mas de um homem, um único, comum, confuso, solitário, perdido, tímido – e esse homem é óbvio que sou eu, eu, eu!), bem, no momento em que alcançava essa perfeição figurativa, via a obra então empalidecer, morrer, virar estátua de cemitério. E a tentativa desesperada de lhe resgatar a alma através do acabamento sempre foi absolutamente vã; corrigir detalhes é o mesmo que maquiar cadáver – a obra morre assim que toma o caminho errado, para grande decepção do artista. (Apesar de ter passado a vida construindo e destruindo a escultura, cada vez foi doloroso, exaustivo, e pagava com a saúde). Como reação à frustração, a tendência era partir para o contrário, a síntese: uma figura lisa, desprovida de artesanatos, de adornos, simplesmente essência, ainda que mantidas as relações e proporção. E novo abismo diante da frieza do resultado. Entre os extremos, o que colocar, o que retirar? Meu Deus, passei o melhor da minha vida em busca da medida, sempre pecando para menos e mais.

Entendi na maturidade que o próprio princípio estava incompleto, ou mesmo equivocado; a verdade da obra exige uma deformação e uma desproporção. A questão – e já então eu me aproximava – é também quantitativa: quanto? Alongo em dois centímetros os braços? Diminuo a cabeça? Elimino os olhos? A conquista certamente é fruto de acertos e erros, eu sei, sabia, experimentei muito. Mas chegaria a um fim? Ao tentar explicar aqui o sacrifício que a obra me exigiu, acabo distinguindo didaticamente as forças envolvidas, descrevendo o desenvolvimento consciente, compreendido anos mais tarde, em detrimento dos impulsos e acasos, os maiores responsáveis pelas descobertas; pôr, retirar, alongar, definir, é claro que tudo vinha simultaneamente na criação. Ali no quarto. Minha vida num triângulo formado pela escultura, o espelho e o artista nu.

Nunca galguei posição mais alta na fábrica por não ter me empenhado a contento. Também não fui mandado embora, primeiro por cumprir as obrigações com disciplina e lealdade, segundo pela generosidade do jovem patrão, filho do falecido patrão, que me colocou, depois de vinte anos na empresa, na função de almoxarife. Esse deslocamento foi consequência de uma debilidade, já que meus olhos, em contínuo contato com a luz do forno, perdera a capacidade de distinguir nuanças no acabamento dos vidros. Essa vista castigada pelo fogo propiciou de algum modo a aproximação definitiva com meu estilo, uma vez que a modelagem passou a se guiar mais pelo tátil que pela visão.

Já dei a obra por encerrada inúmeras vezes desde a minha juventude, mas naquele momento, chegando aos sessenta, quase nada podia acrescentar ou retirar. Preciso admitir que tinha ficado bom – quando a gente envelhece tolera com facilidade os limites do ser. Dali a obra não passava. Estava bonito meu homem nu, soturno, melancólico, cansado e digno. Digno de uma vida, foi a minha conclusão. Meu temor passou a ser vê-lo secar, perder volume com a desidratação, modificar linhas bastante sutis, além da terrível mudança da cor do barro – não podia concebê-lo num bege desbotado. E a possibilidade de advirem rachaduras? Se alguém pensa que o melhor seria queimá-lo de vez num forno de cerâmica, ou transformá-lo num bronze ou algo semelhante, repito que não suportaria nenhuma alteração e, além disso, dinheiro não teria sequer para o transporte da peça para uma oficina especializada – eu não passava de um operário aposentado. Mantinha-o dentro do velho plástico.

Se nasci para criar, não sabia o que fazer com minha criação depois de pronta. Pensava seriamente em morrer. Mas também não queria isso, apenas deixar de sofrer pela iminente deterioração da obra. Era esse o vivo dilema daqueles dias, quando levei num domingo um rapaz pra casa. Sempre tive satisfação em mostrar aos garotos o meu verdadeiro homem, foram eles o meu público. Bebi muito naquela noite, perdi a noção dos acontecimentos, não sei se o magoei, não entendi o motivo: o rapaz me passou uma navalhada, acordei amordaçado e sangrando, preso ao pé da minha obra. Acorrentado. A corrente atava minhas mãos às costas e dava voltas entre as pernas da figura – mais me mexesse, mais a machucava. Por quê? Deve ter roubado ninharias, imaginei. Se eu tentasse sair dali, quebrava a escultura. E não se tratava de destruir as pernas, mas de desmilingui-la inteira. Derrubar o homem – podia? Como o rapaz pode conceber tal estratagema? Minha barriga estava aberta, nem sei se teria força para arrebentar o barro.

Sonhava com o forno da fábrica, somente sonhava com o fogo, a luz e o calor do forno. Doía lento, queimava. Sempre o mesmo sonho: o fogo e a luz ofuscante dentro do forno.

Ainda estava vivo quando os bombeiros me retiraram, pude sentir que me arrancaram sem o menor cuidado com o outro.



Pastel seco (23,5x30,5 cm)


Poemão


Não!
Chuva não!
A noite foi boa
a conversa à toa
o sonho terrível
eu ando sensível
mas chuva, impossível!

Chove, e eu dizia:
use o verbo chover
use os tempos da chuva
o substantivo chuva
o plural, chuvas
o som, ch’...
o alívio, ...’uva.

Nascer é fácil
quero ver renascer
sem pai sem mãe sem cabeça;
perder o cabaço
no poço do cagaço
e tudo começar de novo.
Um ovo, uma ova!

Quis tocar com as mãos
uma só vez, não
não sabe: a coisa.
Escrever não consigo
– sertão maligno.
Você não entende, não entendo
o que eu digo.

Pomba preta no telhado.
Antena.
Pó rendado.
Pura expressão
o que seria
(para mim)
o que seria?

Olho bruto.
Olho culto.
Olho hindu.
Olho urutu.
Olho guru.
Olho cru.
Olho nu.

Sobre a ponte um camelô anuncia:
lá vem o chinês com um cetro em cima.
Era o chinês com o cetro em cima.
É o chinês com o cetro em cima.
Fecho os olhos: é o chinês.
Abro os olhos: já era.
Fecho os olhos.

A pobreza do encanto
a ilusão do que reluz;
nada resplandece
nada é translúcido
e basta de prefixos;
só o canto, a luz
e o lúcido.

Falei como Fernando Pessoa
falamos dele na conversa.
A conversa foi boa
à toa, descomplexa
mesmo aquela do círculo
cujo raio era o cúmulo
de pi infinito.

Se isso fosse poesia
eu diria:
também pudera
o tempo da arara
o mais-que-perfeito;
a dor, a flora, o amado
a rima, o ritmo, o contratempo.

E a ira, a gana, a tara
como fica?
Uma criança grita, cristalizará.
Ninguém escuta a hora, haverá.
De repente ecoa, carcará.
Jou, já, jará
agouro, agora, gorará.

Quando então toca a campainha:
é a Morte
o vexame a galope.
Digo a ela: podes me levar
mas me trarás de volta
pois acertaste o endereço
mas erraste a hora.

("Aquele valente medieval...
por instantes sei do poeta...
sou poeta nessa noite tolda
sou quem-anda pelas florestas..."
Foi o que escrevi
debaixo daquela lua
lá na bruxa que pariu...)

"Dez horas da noite
na rua deserta
a preta mercando
parece um lamento...
Ô acarajé ecoô
ora iê-iê-ô
vem benzê, ehn...?"

O que lamenta a preta
o que deserta a rua?
Que noite canta essa canção
que todos ouvem certos
que todos testemunham
e que distingue essa noite das noites
numa preta escura?

Teta pura
carne dura polida
de preta é mais bonita
no silêncio desse canto
num canto de rua...
“Parece um lamento
unm, unm, unm...”

Lembrança não é bananeira
mãe nação: parteira
pai patrão: porteira
meu sertão: veredas.
Toda dor é passageira
desde a partida
até a derradeira.

O que é isso, José?
Você eu mesmo, José!
Eu você precisamos dormir.
A chuva acabou, o poema acabou
o que mais, José?
Nunca tinha escrito meu nome
como agora.

José sou eu
José aflito
José-josé bendito
não como esses Josés de poemas e canções
estereótipos de homem comum.
Josés assim são incomuns.
Eu sou o único comum.

Filha, vem cá.
Você está bonita.
Quantos anos você tem?
Você conhece seu pai?
Eu também.
Agora deixe o papai trabalhar
e feche a porta.

Deu medo.
Deu muito.
Deus medos.
Olhei pra lua, era um poeta.
A lua desceu, era o demo.
Foi no ano de setenta e sete
não me perguntem como.

Escrevia o ingênuo:
"Não sou poeta nessa noite tolda
sou só um ratinho escrivão
desta toda imensidão
sou só um cambaleante
navegante desses espaços
muito maior que eu possa..."

Depois disso não deu.
Depois disso:
morreu. Depois
durou.
Duro depois.
Depois não era.
Depois, foi engano.

Por isso, cuidado ao olhar a lua
com esse olhar de poeta, olhar nu.
Nu e nu, é cru
cru é cru, é cruel
quem crê crê, é fiel
e a fé é o fio, desafio
que eu fiz, fiei, fio e confio.

Ei mãe, minha massa
what's happenning with your children?
Estranho stranger
"Strange Fruit".
Corpo de ferrugem ruge
sangue que não corre, ruge
mas um dia todo o dia o sol ressurge.

Quem é a dona destes pares? São teus.
De quem são estes trapos? Teus.
E estes troços, estes troncos, estes braços?
Teus.
E estes olhos, boca, e a porra destas palavras?
Tuas.
Então leva.

Tem mais um detalhe:
não adianta raça no futebol
nem emoção na poesia
nem paixão no amor
nem jogar tinta na tela
nem soltar a voz no microfone
nem a franga no palco.

Chorar sim
mas chorar sem
chorar sal
chorar como vem
vão.
Chorar como chuva
num chorão.

Poemão:
essa língua não é minha
anda solta, à-toa
a procura de ecos perdidos
no templo da boca;
voz vazia de matéria
ou vasilha da coisa oca.

Diz agora baixinho:
que beleza a natureza
como vem esse verão
como dói essa vida
ou melhor, como castiga
esse ano que passa...
psiu...

Como o vento desenha
a ordem na areia
como a areia aceita
as patas do animal
como a onda apaga
a ordem e as pegadas:
a vida é superficial.




Concerto de John Cage para mim


 
O concerto começa com o músico fazendo a mímica de um solo de bateria, sentado diante de um caixote de ripas. O silêncio rítmico da cena é quebrado seguidamente pela batida estridente da baqueta no caixote, toda vez que o músico-mímico toca a caixa de sua bateria imaginária. Este timbre agressivo destoa completamente da imagem sonora que se pressente através da precisão de seus gestos, motivo pelo qual lhe ofereço, sentado a seu lado, o meu banquinho de madeira maciça. O baterista aceita a troca e reinicia o solo, sugerindo agora um ritmo de batucada.

Quando então se escuta o som de um chiado que talvez venha do fundo do palco. Agora vejo bem: são vários músicos tocando chocalhos de areia em tubos cilíndricos, mas cada qual segue um ritmo próprio. Na verdade, esse chiado é quase um sussurro, de tão baixo. Aos poucos, porém, o ouvido se acostuma, e passa a distinguir o som sutil da areia escorrendo pelo tubo muito fino e comprido que um deles maneja como uma vara de malabarista. Enquanto isso, do outro lado do palco – para onde todos agora se voltam –, uma estranha engrenagem de ferros retorcidos, semelhante a um fogão antigo, enche e esvazia uma bexiga de gás presa no bico da tubulação, mantendo uma pulsação que varia entre o semicheio ao semivazio.

(O efeito desse momento me recorda uma outra peça do mesmo autor, que assisti há muito tempo no teatro de uma faculdade. Naquela ocasião, um músico jogava bolinhas de gude num balde metálico, enquanto um despertador contracenava fazendo tique-taque. Mas, ao contrário da previsível expectativa, que naquele concerto era a própria razão de ser, de aguardar a iminência do despertador despertar, desta vez estamos seguros de que a bexiga não vai estourar.)

A música permanece um longo período nesse andamento um tanto monótono, em que a única variação que se observa me parece um disparate: aqueles instrumentistas que cuidadosamente executam pianíssimo os chocalhos de súbito jogam seus instrumentos num canto da coxia, sem se importarem com o ruído da queda.

(Um segundo disparate se evidencia num músico bastante concentrado, quase rente à saída do palco, tocando uma bucha comprida como se fosse um berimbau, sem emitir, obviamente, som algum. Mas é provável que eu não esteja entendendo o rigor do concerto. E agora também ele joga a bucha no chão...)

Algo me chama a atenção à esquerda do palco, onde se ergue um cenário com grandes paralelepípedos dispostos lado a lado em prateleiras, como se estivessem esperando a vez de serem tocados. São diferentes entre si (observa-me um músico), e, dentre eles, um se destaca inteiramente dourado. Me aproximo curioso, querendo examinar sua matéria. Reparo que o dourado não é próprio da pedra, mas de uma folha fina e artificial – talvez de ouro – que a recobre inteiramente, e que vem se desprendendo pouco a pouco, soltando mínimos estalos e criando inúmeras casquinhas. Digo a todos que se reúnem à minha volta: "deixem isso aí".

O concerto se desenvolve numa cadência que permite, ou mesmo induz, que possa ser esquecido por músicos e público. Aproveito para notar como o teatro é pequeno e também que mais da metade dos lugares estão vazios. Passeio pelos bastidores, e encontro meu pai sentado numa confortável poltrona, dizendo às pessoas ao derredor: "John Cage é um gênio!". Minha irmã, agachada, brinca com um gatinho. Ouço palmas que vêm da platéia. Retorno ao palco e me encosto numa coluna. O público está entusiasmado com a ação de três roqueiros que levantam-se de suas cadeiras e sobem ao palco, onde tomam lugar em torno de um microfone colocado à frente das prateleiras. O ingresso desses jovens musculosos e tatuados contrasta com os demais músicos, também jovens, mas um pouco raquíticos e tímidos. Apesar disso, a jovialidade do grupo como um todo acentua ainda mais o caráter romântico da experiência, inevitável nos concertos contemporâneos.

Então as luzes apagam-se e a vista acostuma-se com a penumbra. Um deles abaixa um tom na afinação de sua guitarra. Os ritmos dos chocalhos, novamente acionados, parecem querer entrar num acordo. Essa nova ordem rítmica, bem como um progressivo aumento do volume sonoro, impõe uma concentração geral. O roqueiro líder reúne todos os músicos no fundo do palco. Estamos sendo conduzidos para o grande final. Com passos ritmados, eles se aproximam de um enorme maciço deitado no centro do palco, coberto por uma capa preta. O tal que comanda cria uma intensa expectativa antes de retirar a capa – como um gorila, segura com a mão esquerda uma das pontas do plástico, enquanto a outra levanta um pedaço de pau em tom ameaçador. Um foco de luz sobre ele ajuda a dramaticidade da cena. Quando arranca a capa de vez, aparece uma pilha de madeiras aparelhadas e entrelaçadas, cercada por pequenos tocos chamuscados soltos pelo chão. O ritmo hipnótico dos chocalhos confere ao público um tenso ilusionismo de que o jovem líder, com aquele pau – que em meio à catarse alucinante mais parece uma tocha acesa –, ponha fogo no monte de madeiras e, consequentemente, no teatro. E o pânico aumenta com o movimento uniforme dos músicos que se inclinam pra frente quando ele ameaça tocar fogo, e voltam-se pra trás, quando este recua. Eu também me sinto aterrorizado neste momento, sem saber se o espetáculo perdera o limite. Mas de alguma forma tenho pé do ridículo do meu temor.

De repente o grupo se dispersa e desaparece do palco, que fica simplesmente vazio. Então eu vejo um fio de fumaça que não vem das madeiras, mas da ponta de um pino ou de um parafuso qualquer, aqui, bem do meu lado – o que me preocupa é que a chama, ainda pequena, venha a se alastrar. Os músicos definitivamente foram embora deixando pra nós a responsabilidade sobre o fogo. O público permanece paralisado um breve momento, hesitante. Logo tomo a iniciativa e, com a ajuda de alguém que sobe da plateia, precipitamos estabanados a cuspir na chama, até que o fogo se apaga e o concerto termina.



Xilogravura (20x11 cm)


Cafezinho


Bobagem, já superei. Acabou bem. Ainda assim continuo me perguntando, o que aprendi com o episódio? A não hesitar? A não ser ansioso? E desde quando se aprende a não ser ansioso, a não hesitar? Que culpa tive eu? Enfim, perdi o casamento da minha afilhada, apenas isso. Conto como aconteceu:

A caminho, resolvi fazer uma boquinha na padaria, que casamento de igreja costuma enrolar. Cafezinho com espuma de leite e pão com manteiga na canoa. Simples, nada mais. Hora de pagar. Padaria cheia, mas por sorte as três caixas quase vazias; a primeira e segunda ficam frente a frente, a terceira, deslocada, sai para a outra rua. Minha velha ansiedade com filas; avaliei rapidamente a situação e me posicionei na caixa um, atrás de uma senhora com apenas três pacotes, que preferi a dois, pois ali a funcionária estava absorvida em alguma contabilidade. Meu grande erro, responsável por toda a epopeia porvir, se daria neste instante: parti intempestivo em direção à três – deixando pra trás a minha caixa com as compras daquela senhora quase concluídas –, meramente por avistar que a moça de lá já passava o cartão de um rapaz e, portanto, logo estaria livre. Acontece que encontrei a moça e o jovem em meio a uma paquera, pelo que pude depreender da troca de cochichos e sorrisos entre ambos. Não ficaria segurando vela, o cartão deu errado, claro, eles fizeram dar errado – não nasci ontem. Voltei de imediato, todavia as condições haviam mudado: a caixa dois atendia alguém (portanto a tal contabilidade era passageira) e, naquele lugar de onde eu nunca deveria ter saído, outro freguês se colocara. Escolhi a dois, de onde desapontado observei o rapaz da três partindo; a paquera era superficial e a vaga estava aberta. Uma tentação. Resolvi apostar, fui – a meio caminho, um casalzinho alegre antecipou-se e me fez retornar envergonhado, observando ao redor se alguém reparara e ria da minha hesitação. Não, ninguém. Mas claro que o ridículo não deixaria por menos, e já um outro ocupava meu lugar na dois. Ato contínuo, verifiquei a situação da caixa um, justo quando a funcionária, depois do último atendimento, levantava-se para dar a fatídica voltinha. Ainda me adiantei para perguntar se podia ainda atender, mas minha voz saiu fraca, presa, razão pela qual, imagino, não obtive resposta. Voltei à dois, atrás daquele alguém que começava a ser atendido e, dou graças, à frente de uma mulher feia que se aproximava manquitolando. Dou uma espiada na três, satisfeito por constatar que aquele casal tardava. Era melhor ficar quieto, é óbvio, parar numa fila de vez (nem faz muito tempo, pagávamos para o próprio balconista que levava o dinheiro em confiança para a máquina do patrão... Mas eram outras padarias!). Eu me distraí: de repente, a tal feia e certamente mal-educada avançou para a caixa um que deveria estar vazia caso a funcionariazinha não tivesse retornado. É por isso que sou partidário da fila única; se eu estava na frente, como alguém que chega depois se acha no direito de passar primeiro? E a mocinha da caixa bem que viu a maroteira, pois olhou de soslaio pra mim – porém, pareceu preferir a cara indignada de um homem que qualquer conflito com mulher feia. Fiquei na minha. Mas então, o que acontecia? Pelo visto, resolvi me fixar atrás do único cliente realmente emperrado; cartão sem crédito, ou aquele tal de sistema fora do ar. Tudo certo, era só acalmar. Pois bem, a feia espertinha saiu saltitante, pulei para a um, vaziazinha da silva. Era a minha vez. O quê? Nova voltinha daquela mocinha? Ela resolveu dar outra voltinha? Agora entoei a voz nitidamente, comprava briga: porra! na minha hora você fecha? Na minha cara? Você não para quieta? Conforme avançava em sua direção, a simplória, assustada, gaguejando algo sobre seu turno, dirigia-se para perto do segurança que, juntando-se ao gerente, vieram pôr ordem na casa; o primeiro somente cruzando os braços, o segundo exigindo-me calma, que eu me dirigisse às outras caixas, apontando-me à terceira que inclusive estava vazia, enquanto ponderava que a funcionária tinha razão, seu turno etc. Ele próprio gentilmente se ofereceu para passar minha comanda, mas dei as costas, debochado (meu segundo erro crasso), e parti para a três que, era evidente, num piscar de olhos havia se enchido. Chega. Porém, não daria o braço a torcer, jamais aceitaria ajuda de um gerente fabricado em relações públicas. Só queria sair. Estava preso, preso! Calorão no corpo, a pressão baixou, ou aumentou, nunca soube a diferença. Calma. A ansiedade é um problema que me acompanha desde sempre, deve ser enfrentada, podia ver, o erro era todo meu. Se tivesse ficado quieto... Calma. Mas havia o casamento, estava me atrasando... Foda-se a missa. O mais importante é se libertar. Falava pra mim: a liberdade é interna. Eu não estou preso! Vamos começar de novo. Melhor pedir outro café.

E saborear – isso sim, muito bem. O nervoso não sai, eu sabia, mas é preciso ter autocontrole. É claro que reparava que a padaria enchia ainda mais, as filas cresciam e as três caixas atuavam freneticamente. Mas calma: acabar o café. Acabei. Agora é só escolher uma fila e ficar. E não olhar pro lado. Pronto. E tem mais (porque preciso aprender): iria escolher a mais cheia. Ótimo. Caixa três. Quantos na frente? não interessava. Veja, meu caro, como uma fila pode ser boa. Era só abstrair. Mas, cacete, irrompia uma cólica! Sempre tenho dor de barriga quando fico nervoso. Não ia dar, banheiro já – justo quando a coisa andava bem. Tinha que ir. Fui. (Nem conto o que aconteceu.) Voltei com a decisão tomada: a mesma fila, fosse como fosse – e continuava intensa. Mesmo assim, fiquei. Contudo, ironicamente, de fato essa caixa empacou – não tratava-se de loucura minha; parece ter dado problema com todos os cartões, com a máquina, com a falta de troco, com tudo o que pudesse fazer uma fila não andar. Mas eu não levantava a cabeça. Não, não e não. Cabeça baixa, sem aflições, sem pensar em casamento, em nada. Em nada, nem que eu estava preso, nada. Somente o estômago a arder, pudera, com aquela quantidade de café. Vamos lá, devagarinho chegava a minha vez, vamos indo... E não é que chegou? Ou quase, o cara apenas arrumava as moedas no moedeiro, e eu já tinha nas mãos o dinheiro trocado! Mas qual! Uma idosa! Uma estúpida idosa! Não! Obrigada senhor... na minha idade tem gente que não aguenta... mas eu luto! Dou minhas caminhadinhas... Faço questão de vir aqui todos os dias pra comprar o pãozinho quentinho. Minha filha diz que etc. Eu moro ali na etc. Mocinha, hoje eu estou sem nenhum trocado...

Acreditem ou não: a velha terminou seu ritual no instante em que acabava a luz da padaria. Não estava acontecendo isso comigo. Agora tinha certeza de que não seria possível. É claro, brincadeira de estúpidos, a tal pegadinha de televisão. Certeza. Onde estavam as câmeras? Avistei ao alto, ali uma delas. Fiz sinais, falei oi, oi, oi, podem parar, já pesquei! Um tipo advogado me olhava torto. Estou sendo filmado! – e dei uns passos desajeitados de samba. Virei-me para uma dona atônita: eu não sou trouxa. Dá um sorrisinho pra câmera, ali, ó, estamos sendo filmados! A atônita se afastou. Tocou o celular, alguém agoniado do outro lado da linha, eu não, estava até bem demais: não, não vou chegar não... Porque não dá! Estou sendo filmado... Depois você me vê na TV! O gerente passou por mim, encarou-me severo e seguiu para a caixa dois. Aqui, por favor, ele chama os clientes – atenderia manualmente. Fila indiana. Todo mundo foi, eu também. Consegui o nono lugar, ótima colocação para o dia de hoje – ao menos deixei três atrás de mim. Tremia. Suava. Uma dama de verdade, serena, bem vestida, que devia estar observando meus desvarios, aproximou-se atenciosa: o senhor não quer se sentar um pouco? Tome um café, uma água... A luz logo volta... Não. Sentar, não, enfrentar, sim. Enlouquecer, não, controlar-me, sim. Meia-luz de gerador. Um por um. Sujeito queria nota, tudo bem, é seu direito. Beltrano comentou o caos, ora bolas, estava mesmo um caos. Meu filho ligou-me preocupado: não consegui, nem conseguirei. Está tudo bem. Sem explicações: não posso. Olha aí, chegando a minha vez novamente. Meu coração batia forte, podia não resistir se... Porque obviamente iria acontecer alguma coisa, disto não havia dúvida. O destino estava traçado: nunca sairia desta padaria! O casamento já era; com sorte ainda pegava a festa. Chegar lá, explicaria o quê? Que não consegui sair de uma padaria? Coração na boca, esperando o inesperado. Iria acontecer. Minha vez. Aconteceu.

Assalto. Cinco mascarados com armas pesadas. Piada sem graça. Acho que desmaiei, pois me recobrei no momento em que era amparado por dois homens, em direção aos fundos. Os caras recolheram relógios, celulares e carteira de todos. Menos de mim; pularam-me, esqueceram-me – porém, ainda atordoado, nem notei. Os fatos se precipitaram a minha volta, não assimilei gravidade alguma. A polícia cercou, corre-corre, tiroteio e um cadáver na calçada. Encerrada a confusão, um capitão entrou no recinto com a frase mais evidente dessa história: ninguém sai da padaria! Eu não entendi por que minha boca articulou: pode me prender, eu estou por trás de tudo isso... anda... está esperando o quê? Era um delírio, é claro, mas hoje me parece que havia uma perspicácia por trás do repente; eu ali intuí que ser preso significaria escapar do lugar. Mas, na verdade, a minha reação tinha a inocência de um doido. Soube depois que um dos bandidos estaria imiscuído entre nós. O gerente nervoso (perdeu a pose de treinamento) comentou com o oficial que eu era de fato suspeito, que já vinha arrumando confusão, que zanzava havia tempo pra lá e pra cá, e escutara também uma estranha conversa no celular, em que eu dizia algo como tem câmeras, vai aparecer na televisão... Três ou quatro se exaltaram ao constatarem que eu fora o único preservado do roubo. Uma das mocinhas horrorosas das caixas também tinha ouvido de mim, em outra ligação, algo como não posso falar, agora não... Intercedi: pois então: me levem! O que estão esperando...?

Desses detalhes recordou mais tarde o delegado, ao se desculpar com meu filho pela detenção, depois do mal-entendido ter se esclarecido e eu recobrado a razão – se for adequada a palavra razão, tendo em vista os ataques de beijos e abraços que desferi em vários espantados investigadores que passavam à minha frente na delegacia, alvoroçado como estava com a minha libertação.




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