Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


18.12.12


Natal
 
 
Ninguém no alto do morro
eu me ponho bobo a rezar:
meu Deus, me dê um sinal
meu Deus, fale comigo
eu estou tão perdido
nesta noite de Natal...
 
Como um milagre ao avesso
tudo brilha ainda mais real
na pele prata dos paralelepípedos,
enquanto nuvens em reboliço
anunciam uma tempestade
que lembra a pintura do Bruegel.
 
Dois pios: um pio e seu eco
— e uma gaivota na escuridão
rasa sobre mim. Nada não.
De repente um calafrio
— gaivota não voa à noite!
Era uma aparição.
 
A ave volta e para pênsil
e eu levito suavemente tenso;
ela sobe e eu desço
feito uma gangorra
ela vem e eu vou
feito um pêndulo.
 
Ou como se valsássemos em silêncio
sobre os telhados da cidade...
porém,  a velocidade da pomba guia
lança-me num vácuo imenso
como se o pêndulo rebentasse
no ponto extremo.
 
E sou chupado por um tufão
e tragado por suas entranhas
em turbulentas contrações;
esmagado, esticado, destruído
observando no último minuto
que acabo nas tripas do infinito.
 
(Não foi bem assim
a duração e o sentido.
Era a minha vida revista
em reviravolta no redemoinho;
toda ignorância, toda mesquinhez
toda arrogância do caminho.)
 
Quando desperto
tenho o corpo torto e virado
deslizando para um  flanco
onde a refrega é mais fraca
e por ali vou saindo e caindo
de cabeça numa praia.
 
Esfolado pelo tombo
sinto a brisa arder meu rosto
um ardor delicioso de sentir;
estou vivo, fui indultado!
mas sem passado ou futuro
pra onde ir?
 
Entro numa casa vazia
sento num degrau, cansado
e assisto aos atônitos veranistas
reparando estragos de uma tempestade
despropositada e desproporcional
que estragou a noite de Natal.
 
 
 
 
 

16.12.12

Bico de pena e pastel (20x24,5 cm)

15.12.12

Ilustração - carimbo e aquarela (11x11 cm)

10.12.12


Decameron  (de Pasolini)
 
 
No afresco que eu sonho
Nossa Senhora está viva
Tudo em volta se anima
É real a natureza simbólica.
 
No afresco que eu pinto
Maria é de cor e contorno
A alegoria só serve de adorno
Para uma parede católica.
 
 


Xilogravura (30x22 cm)

8.12.12


Minha Flor       (revisitada)

 

Um milagre vegetal
Que nada deve à ressurreição;
Uma flor, flor mesmo
Símbolo do efêmero
E da beleza fugas
Essa flor não morre, aliás
Morre, mas renasce sempre
Em qualquer época do ano
Num ciclo atemporal.
 
Achei o vaso no quintal
Com duas folhas velhas
E um brotinho de nada
Quando a levei pra sala.
Desde então floresce
E não morre, aliás
Morre e logo renasce
Mais branca, mais lilás
Essa flor paranormal.
 
Apesar da metáfora banal
Não posso deixar de relacionar
Minha flor com minha dor
Pois não me teria sido dada
À toa; eu também não morro
Aliás, morro, morro sempre
Mas renasço, e ao renascer
Alquebrado, lá está minha flor
Misteriosamente fatal. 
 
 
 
 

3.12.12

 
As Três Latinhas
 
 
Eu era casado com alguém que não recordo, sei que a Didi era bebê. Levava cinco cruzeiros para compra do lanche do jantar. Quase em frente ao falido mercado Cooperativa de Cotia, no Largo das Batatas, estanquei-me pela enésima vez para assistir à antiga arte de roubar dinheiro dos pobres, o jogo das três latinhas. O prestidigitador embaralha três latinhas sobre uma mesa improvisada de caixotes, forrada por uma folha de jornal, mantendo uma bolinha de feltro na ponta do indicador e o médio; de repente a esconde e aposta com os transeuntes onde está. Canta um estranho mantra hipnótico, que é interrompido no momento em que lança o valor da aposta. Paga o dobro, e de quando em quando propõem rodadas de fogo. Sempre tive pena ver aquele povo perdendo todo o dinheiro com pegadinhas banais (eles apareciam especialmente em dias de pagamento). Digo banal porque, para aumentar a confiança do apostador, o crupiê chegava ao cinismo de levantar a latinha com o bolinha; enquanto o coitado distraia-se um segundo tirando o dinheiro do bolso, ele simplesmente trocava a posição de uma das duas latinhas vazias, de modo que a bolinha que ocupava a latinha do centro, por exemplo, passava para a esquerda ou direita. Este mero reposicionamento era o suficiente para o opostador, com toda a segurança, levantar a latinha central e se espantar pela bolinha ter desaparecido. Um dos muitos truques tolos. Era frequente o inclusive o consentimento de que se pusesse o dedo sobre a latinha para evitar qualquer alteração, ou mesmo, quem desejasse, que conferisse se a bolinha marota continuava no lugar -  sempre que sentia que a pequena aglomeração em torno havia se inibido de apostar. Acontecia também de o cara deixar de fato que vários ganhassem, pois sabia que o dinheiro retornaria nas rodadas subsequentes. Outro recurso era fazer um cúmplice ganhar muita grana – servia de chamariz. O bando era formado por esse cúmplice vencedor e por outros dois a meia-distância, em pontos estratégicos, que assobiavam com a aproximação da polícia e serviam de segurança contra apostadores desesperados que perdessem o controle. A tentação de me arriscar crescia a cada dia dentro de mim. Ia embora com o coração batendo.
Sentia que não era bem vindo na roda, um tipo como eu, branco, estudado, com cara de esperto. Não seria páreo pra mim aqueles truques dirigidos para quem nunca armou um puzzle, nunca procurou o Wolly, nunca resolveu problemas de palitos do Tesouro da Juventude, nem sabe o que é tan-gran, nem onde fica o Japão e, muito menos, fosse da faculdade de Física. Naquele dia, cinco cruzeiros era muito pouco. Com cinco faria dez - e teria sabedoria de parar por aí. Poderia levar umas surpresinhas para a casa. Quem sabe não fizesse disso um costume, um milagre da multiplicação das notas (ainda não sabia que o milagre, que de fato existe, exige inocência); todos os dias trocar cinco por dez e jantar melhor com minha família. Quanto valeria aqueles cinco da época? Imagino 200g de presunto, 200g de queijo, pãezinhos, leite, um pacote de macarrão, meio quilo de carne moída, talvez ainda um sabão em pó pra mulher e uma papinha pra a filha. Achava pouco. Dobrar significava, para além disso, duas garrafas de cerveja, um bom tablete de chocolate, uma lata de goiabada, queijo branco ou, no lugar destes dois últimos, um pedaço de provolone. Meu coração batia como nunca. Estudava rodada por rodada e, em todas elas, ganharia facilmente. Precisava vencer o medo; amassei o dinheiro na palma da mão para não desviar o olho, não era bobo. Me preparei para o bote. O plano era pôr o dedo sobre a latinha como garantia, pagar a aposta pedida (o mínimo era os tais cinco) receber a grana e sair de fininha (ninguém era obrigado a continuar no jogo, eu é que tinha pudor). Minha excitação fazia o lusco-fusco do fim de tarde parecer mais lusco e fusco que nunca ou a bolinha suja se camuflava na folha cinza do jornal... Besteira. Vinha do tremor e da zoeira. Contudo, assim não seria certo arriscar, resolvi ir embora, voltar mais tarde, refeito. No exato instante que partiria, um cúmplice que não parecia cúmplice à minha frente pôs o dedo na latinha e conclamou todos os presentes; era uma rodada de fogo e a banca apostava cinquenta! Isso significava juntar de cinco a dez de cada um, e no final repartir o lucro. Ele quase berrava, e encanou especialmente comigo, põe, põe, olha aqui (levantava a latinha), está aqui, é só casar, porra, vamos lá, ele mesmo já dera vinte, outro ali, outro acolá, tive tempo só de reparam no banqueiro impassível e meu cinco amassado e suado saiu da minha mão sem que eu percebesse. E depois, olhar o cúmplice abrir a latinha vazia e fingir uma cara de oh!
Voltar pra casa sem nada, encontrar uma desculpa para a mulher e sobretudo controlar a química descontrolada do meu corpo, o sufoco... Um mês depois, atravessava o viaduto do Chá e me deparei com outro jogador. Este era o diabo em agilidade. Cantava o mesmo mantra enquanto embaralhava as latinhas, de repente a bicha sumia dentro de uma delas, e raramente eu sacava o destino. Cheguei a achar que ele a escondia na mão, mas o povo, depois de perder, conferia e ela estava lá, na latinha mais improvável. Enfim: a banca estava rodeada de tipos refinados, advogados, estudantes, comerciantes e tal. Então entendi o que havia acontecido comigo: os malandros dançavam conforme a música. Ele não era melhor que o meu do Largo da Batatas: unicamente jogavam de acordo com a natureza dos estúpidos que apostavam. Ali, ante os refinados, mostravam toda a habilidade; lá, no meu bairro, jogavam pro gasto com gente batata.
 
 
 
 
Xilogravura (15,5x11,5)
 

2.12.12

Bico de pena (13x20,5 cm)

28.11.12


Ou
 
 
Ou não me conheço
Ou estou com febre
Ou me aproximo
Ou não tem sentido.
 
 
 
 
 

22.11.12


Resposta         (segunda versão)
 
 
Quero sentir o sabor da pinga
que um cara me serviu em Caratinga
"é pura, de cabeça, envelhecida etc."
de fato, nunca bebi uma dessa.
Trouxe um litro pra São Paulo
mas aqui a pinga tinha gosto de álcool
o que me deixou surpreso, ou quase
pois logo entendi a metamorfose:
este sabor é de dia paulista
este sabor é de rotina
o gosto mudou porque a pinga
sente a falta de Minas
porque até a pinga é viva
e chegar numa cidade cheia de conhaque
whisky, vodca e vinho importados
não é fácil para um pobre destilado.
 
Isso posto, doravante
não quero saber de nada que fuja à ordem da natureza
daquilo que nela é fugaz ou permanente
que no ser fugaz me ensina a seguir
e no ser permanente, o essencial.
Digo isso de um modo geral para que se entenda
porque não quero nada com o novo
a ideia do novo me aborrece demais.
O que escrevo é e sempre será
banal, comum, reconhecível
porque me esforço por me aproximar
por me assemelhar
por amar as coisas à minha volta
e com elas me distrair e por elas me entregar
a um movimento casual e religioso
- como encanar com uma folha de quaresmeira
que hoje encontrei junto ao telefone da delegacia
e que se parecia com outra folha
que fotografei ali mesmo outro dia.
Perguntei: meu Deus
aquela era verde com manchas vermelhas
esta, vermelha com manchas verdes;
será que o tempo transformou a primeira
ou terá caído uma outra no mesmo lugar?
Me importa esta diferença
mas a verdade mesma, o que importa?
 
Preciso ver as marcas do tempo nas coisas
(não seria isso a beleza simplesmente?)
então eu saio nas ruas e fico contente
quando observo o paradoxo das transformações
e as confusões do homem em nomear a matéria alterada;
quando a casa é ruína?
quando a folha é sujeira?
quando a menina é mulher?
(Minha mulher não tem idade definida
e me encanto com sua ambiguidade
de beleza de jovem madura
de inocência de velha menina.)
(Isso me faz pensar em mim mesmo:
onde estou? a que ponto do fim?
a que distância do começo?)
 
Escrever vale mais que o escrito
eu gosto de usar muitas palavras
porque não sei definir aquele homem-menino
esperando o caminhão vir buscar sua barraca de laranja.
Olhe, antes, é preciso que eu diga:
não gosto de poesia
nunca tive paciência com abstrações poéticas
nem com arte refinada de espécie alguma;
para mim, a poesia simplesmente vaga
como alma penada em busca de um corpo
e naquele dia encarnou naquele garoto.
Não que ele fosse puro, belo, sábio
-- na verdade, nem vi sua cara
se era japonês, se estava feliz...
Era poesia e só
e na hora não notei
– na hora eu parecia um aloprado caçador de formas poéticas
procurando o melhor ângulo para fotografar
uma uva solta no asfalto –
(mas agora vejo tão bem)
aquele menino-homem
sozinho, domingo, três da tarde, rua deserta
sentado na sarjeta esperando o caminhão
com o corpo inclinado tocando o chão com os dedos
como se tivesse encontrado algo ainda menor que a minha uva...
e nem precisasse fotografar...
 
É por isso que eu digo:
se a ideia do transitório está na moda, foda-se
porque com ela aprendi tudo o que sei
sobre seu fio ilusório é que procuro equilibrar-me,
entre um crepúsculo subindo do oco da terra
e uma alvorada, sempre à frente, caindo do céu.
Por isso o passarinho continua lindo
e a morte, desfilando ao leu como dama da noite
e a vida, como a puta do dia
e Deus em cima da pinta me dizendo:
ora você pensa que de você Eu quero muito
ora que quero pouco
mas a medida é menos que seu muito
e mais que seu pouco.
(Estas palavras não me enganam
estão cheias de orgulho e vaidade.
Como quando ouço dizer
que o homem é um grão de areia
dito com a arrogância do mármore.)
 
Poeira. Canta o passarinho já.
Pegue seu caso: você escolheu sua mulher
porque diferente das outras
mas quando a conheceu de perto era igual.
Se passou desse ponto e mergulhou mais fundo
encontrou de novo a diferença e tocou o essencial.
Se penetrar ainda mais em seu espírito
poderá se deparar com nova semelhança
num lugar e tempo
que são todos os lugares e todos o tempos
iguais.
Verá que a eternidade está a seu lado
na sua mulher, nas coisas, em tudo.
Quem sou eu pra dizer isso?
De que serve saber? E o que me importa?
Só me importo com isso
e esta é a minha resposta.
 
 
 
 
 

20.11.12

12.11.12


Minha Avó
 
 
Quero minha avó Nharinha
Eu chegava em Itapetininga
Ela está fazendo rosquinhas.
 
Saudade da rosquinha quente
Com café claro, no banco da cozinha
Conversando sobre as galinhas.
 
Conta que a próxima é aquela
Sabe como quebrar a goela
Ninguém fazia melhor ensopado.
 
Pena que ficará cega
Trocou a TV pelo rádio
Sempre atenta ao noticiário.
 
Se sabe que o tempo evapora
O carrilhão batendo as horas
Nós dois fomos embora.
 
 
 
Parafina
 

 

11.11.12

Guache (29,5x21 cm)

10.11.12

Guache (22x16 cm)

9.11.12

Guache (22x16 cm)

8.11.12

Guache (22x16 cm)

7.11.12

Guache (22x16 cm)

6.11.12

Guache (22x16 cm)

5.11.12

Guache (16x22 cm)

27.10.12


Poema d’água
 
 
 
Sinhá dorme no meu colo
Lucinha me chama de alegria
eu ando tão perturbado
que não reparo a garoa
companheira tão antiga.
 
Dói em mim o óbvio limite
de que não posso escrever à toa
que não basta a idéia solta
um poema precisa de ordem
o verso é avesso à desordem.

Dói em mim a consciência
de que a poesia não passa
de uma taça cheia de água
que só serve pra servir
à sede dos deuses.
 
Uma esfinge mesquinha
resguarda a bendita água
no poço de um oásis
onde tantos mergulham
de cabeça na areia.
 
A água que eu retiro
parece aquela que jorra
nos sonhos: a gente bebe
bebe, bebe e desperta aflito
morrendo de sede.
  
 
 

23.10.12

Bico de pena e lápis de cor (35x25 cm)

19.10.12


O Guardião do Fogo
 
 
 
Toda a tribo dizimada por lobos estúpidos. De que serve vida? Custa nascer, custa criar, para no fim virar comida de lobo. O que foi, meu fogo, o que aconteceu? Preciso pensar. A vida é uma pedra parecida, os dias, a gente se acostuma, aí de repente caos. Quando os deuses abandonam, eu sei. Não tem volta, ninguém corrige o dia. Meu vigia dormiu, cansado de nada, não viu, não farejou, entraram, a alcatéia, de tocaia. Era a hora mesma, ontem: o meio da noite. Besta! E aquela zoeira sem obediência. Antes da aurora, eu mesmo acabei com os feridos. Não gosto de ui, de ai, de lamúrias. Moribundo não serve pra nada. Gostava dela, isso sim. Se estivesse dormindo a meu lado, estava viva. Apaziguaria meu corpo esta noite, ao menos esta. Os lobos me levaram o sono. Chego a doer. Bosta! Mataram tudo que prestava, sobrou a tralha. Três moleques, eu e a velha. Não conto as três crianças. Pra nem ver o inverno acabar... De que adianta o fogo agora, se a Deusa está com os lobos...? Adormeceu meu vigia... A canalhada veio de mansinho, pata pé pata, pra morder de vez, o máximo, os melhores – só não se atreveram comigo. Se eu lutasse, eles apagavam o fogo – não a brasa da fogueira, mas meu fogo, o fogo do oco da pedra. Futuro nenhum. Disseram que vão voltar. Agora é fácil. E com a Deusa do lado... Merda! Gosto de viver. Aprecio meu posto. Todos me respeitam, até lobos. Viram? Vieram de vingança, que se fosse por fome catariam os primeiros, os três: o vigia e a mulher com filho que dormiam lá fora. Estaria bem, seria bom. Vingança por ter pintado praga na parede contra eles. Eu avisei. Mandei apagar. Apagaram, era tarde; Deusa já tinha voado avisar. Nunca vi tantos. Reuniram todos. A planície inteira. Foda! Somente a velha. Onde vou meter? Se não forem os lobos, quaisquer uns aí virão, quando souberem da desgraça, acabar com resto da gente. E já foram avisar, os ventos... Homens piores que lobos, que matam por matar. Matar precisa de razão, todo mundo gosta de viver, beber água, trepar. Bichos matam pra comer, homem mata pra matar ou morrer. Lobo veio por vingança, dessa vez. Também, os meus queriam acabar com eles todos. Burros! Como se pudessem enfrentar a natureza. Lobo não se elimina, tem deus pra tudo. Agora, qualquer leão caduco acaba com a gente – qualquer leopardinho. Os três moleques precisam de força, crescer, o que vão comer? Só sabem caçar ratos, catar coco, e eu não caço, nem na miséria eu caço, tenho mais o que fazer. Viver. Eu gosto de viver. Saio pouco, aprecio o nascer do sol. Com a pedra da brasa na mão.  Meto muito, vários filhos eram meus, os outros metem e quase não fecundam, eu, e a mulher embucha! Eles me respeitavam. Gravidar a velha, arre! Cátiço! E a velha é nojenta. Nunca fui com a cara. Com ela tive aquele mongol. Dei pros lobos. Depois, não quis mais. Bons tempos, oferecia-se criança ou velho de vez em quando, e os lobos deixavam a gente em paz. Mas veio a modernidade, e chega de sacrifícios, é guerra, a tribo garante – deu nisso. Essa rapaziada não conhece o tempo, pra eles nada existiu, nada existirá. A graça é que acertaram, nada haverá, mesmo, ao menos pra eles: viraram carne. Pensam que fogo só acende fogueira e que deuses só existem pra nós. Cansei de falar. Ouviam-me com atenção, mas não entendiam. Brincaram, zombaram. Fazer aquela pixação... Pensavam que o mundo é a planície... Eu tive avô. Ele me deu o fogo. Tanto trabalho... Quem vai saber o que eu sei? O que sei morre, e meu fogo morre junto? Não sei. Meter em quem? Na velha – prefiro cu dos meninos. A velha comeu a carne da bunda da filha! Hoje ainda. Disse que estava com fome. Quando os lobos voltarem, entrego a velha. Duro mais uns dias. Gosto de viver. O dia é bonito. A noite é muito longa. Já pedi pra Deusa acabar com a noite. Pra quê? Respondeu que os lobos e leões lhe pediram pra acabar com o dia. Então acho que faz a média. Sair, ir embora, voltar a vagar como os antigos – a gente não resiste mais. O primeiro bicho, e mais um já era. Perdi meus guerreiros, perdi meus filhos, perdi minha tribo, invenção antiga do meu avô. Pau que ele tinha – igual ao meu. Não ligo de virar carne de abutre, porém, e o que sei? E o que meu avô sabia, pra onde vai? O fogo vai apagar. E eu ainda não entendi morrer. Perguntei pra Deusa o que é, me disse morra pra ver. Mas eu gosto de viver. Comer cordeirinho assado. Tinha um filho hábil pra caçar cordeiro. Trazia pra mim o primeiro pedaço. O primeiro, não, o depois da oferta. Gostava de escolher uma fêmea quando eu enchia a barriga, fornicar e dormir olhando meu fogo. No meu nicho. Trabalhar, não, nunca; caçar é humilhante pra minha classe. Eu penso. Eu sei. Eu rezo. Eu explico. Esse é o meu trabalho. Sei tudo, menos de morrer. O que aconteceu e o que acontecerá. O fogo diz tudo, quase tudo. Às vezes eu erro, digo que será esta noite (acho que eles estão voltando) e é depois, dias depois, dois ou três. Erro por pouco. Vejo: o que eu não sei não morre, porque não está em mim. Não tem problema. Mas, e o que sei? De que adianta saber que se parar de cheirar o vazio a gente se afoga, como dentro d’água? Explicar tudo pra uma das crianças, pra quê? Não sobrará ninguém. Sei quando a chuva vem, se dilata o inverno, pro que serve cada ser, pra aquilo que ele nasceu, se presta ou não. As plantas. Tem estúpido que come qualquer coisa que encontra e morre da barriga. Meus filhos me traziam a folha, o fruto: esse pode, esse não. Sei o segredo de fazer filhos. E curar. Curar o curável, é claro – rezar certo. E conheço os deuses, cada um, seus poderes, seus castigos – mas só amo a Deusa. Agora não, escolheu os lobos. E também ela não serve pra nada mais, estou no fim. Antes, não, não é bom brigar com deuses. Fazer a coisa fora da hora e do jeito. Por isso nunca matei a velha. Deusa me disse para não matar. Obedeço. Obedecia. Morrer apaga os olhos, isso eu sei. Então como ela quer que eu veja a morte? Morrer é dormir – mas em que corpo? O corpo apodrece, fede e derrete. Mas quando penso eu não tenho corpo. Onde está meu pensamento? Eu conheço o futuro. Mas só sei o futuro da vida, vivo, não sei o futuro da morte. Não gosto de morrer. Uma vez eu dormia com uma que já tinha morrido, na sombra escura eu não percebia. Falava com ela, não respondia. Diacho. Dia seguinte, que vi, não sei nem se tinha metido nela morta ou viva. Arre! Acordei abraçado com defunto. Orra, de repente a mulher não está ali no corpo dela, não obedece. Bem, ela não pensava, eu penso. Eu não morro. Senão o fogo apaga. Só se a morte levar o fogo. Bobagem. Mas se a carne vira osso, por que o pensamento não vira fogo? Bobagem. Um filho bom que eu tinha sabia pensar, eu sei, porque ele me contava. Poderia ter ensinado tudo pra ele. Virou o quê? Meu fogo que não, que não aumentou. Viro deus? Isso é o que pode ser. Pra meter na Deusa. Não entendo, entendo tudo, isso não entendo. E não quero morrer sem entender. Quando eu canto, minha voz vai pra onde? Porque ela se apaga no ar. Voa até ali adiante e some. Pedi pra uma mocinha sentada cantar sem parar e fui andando, andando, a voz dela foi sumindo, sumindo, pra onde? Morreu? Mas fui voltando, a voz baixinho, aumentando, até reaparecer igual. Então ela some, então ela volta. Fogo! Ninguém entende. Andei pra longe da fogueira. É a mesma coisa; a luz foi diminuindo até desaparecer na escuridão. Você vai longe, vê a fogueira pequenina, mas ela não ilumina. Quando volta, ela continua iluminando. Pensava que fosse por respeito a mim. Não; acontece com qualquer um, eu vi.  Pra onde foi a luz? Some no vazio. O cheiro é igual. De longe não se sente. O vazio chupa tudo. Tudo vira azul. O som, o cheiro, a luz: azuis. E o pensamento, e eu? Azul. Não sei. Não consigo dormir. Tenho pouco tempo pra entender. Eles estão vindo, hoje ou amanhã. Eu sei. Os rapazes têm medo de ficar na vigia. Pus a velha. Pelo menos serve pra isso. Berrará, antes. Porque os lobos vêm vestidos de noite. Não dá pra ver sem lua. Quando eles derem o bote na velha, a gente acorda. Pra quê? Só pra acabar com alguns antes de morrer. É bom. Eu não, não perco tempo, nenhum eu mato, não sou de guerra, meu posto é outro. Observarei parado, do alto de minha pedra. Eles me respeitam, deixarão pro fim. Se eu quisesse, matava meia dúzia ou mais, de que adianta? Mata um vem dez, mata dez vem cem. A história está escrita, é fim. A tribo do meu avô. Antes dele, ele me contou, a tribo era pequena e vagava. Igual a muitas por aí – tudo comida ambulante de bicho. Ele encontrou esse buraco de pedra, com água abundante na frente e disse: ninguém viaja mais. Sábio: a tribo cresceu. Sempre que tinha visita de homens, a gente deixava entrar, na surdina, cercava e descia o pau. Resguardava as moças e crianças. Feneceram aqui dentro várias tribos que sequer sabiam falar. Não dava pra entender o que rosnavam. Mas mulher é bom no mundo todo – e sobrevinha a temporada de farra. Umas anunciavam uns costumes... Uns bons tempos. Meu avô me explicou que o mundo é distante e tem tipos diversos de gentes e bichos. Me contou o que é mãe. Disse que eu tinha tido uma. O velho sabia tudo, ia me ensinando devagarinho: que o filho sai do pinto do homem na fornicação. Que eu observasse que menina só ganha barriga depois que uns enfiam. Isso era segredo antigo; o filho sai na horinha do choque. Penso muito nisso; o que sai do pinto é a gosma doce, filho nenhum. Que sai pequenininho eu sei, porque depois cresce na barriga, nove ou dez luas. Mas não vejo nenhum menininho. Só se fosse antes, na horinha do choque, não na gosma mesma. No choque... parece que sai uma coisa forte de dentro, que depois sobrasse a gosma... Tem muita coisa na vida que a gente não vê como acaba nem começa. Exemplo, como o primeiro homem que nasceu, exemplo, como o fim do mundo depois do deserto. Eu não entendo por que não vejo o corpo de Deusa. O sol eu vejo, a lua, o raio, a chuva, a terra e o céu. Deusa fala comigo no pensamento ou quando eu durmo. Às vezes já vi, voando cabeluda com um bundão enorme. Meu avô dizia que ela tem rabo, mas não reparei. Não gosto do que não se vê, por isso não gosto da noite escura, como esta. Tudo escondido. Pensava que as coisas também sumiam no vazio, até a aurora. Invocado, saí com a brasa mínima para não clarear, na escuridão, queria descobrir o esconderijo. Os galhos viram galhas pra assustar, as árvores ficam gentes, tão pretas que iluminam sua volta. Vi que continua árvore, fui lá tocar, era, e as pedras também eram, e nada tinha desaparecido; eu tinha deixado antes um pau de propósito ali, e o pau continuava lá. Então esconderijo nenhum, somente um brilho de carvão nas coisas, no vazio. Só lobo cego pra preferir o avesso. Mas isso é modo de dizer, não tem carvão nenhum, não entendo; se o Sol dorme e não ilumina, a verdadeira coisa real some? Fogo meu. Tenho pouco tempo, por isso de tudo vou pensando hoje. Morrer sabendo seria alguma coisa. É o caso da sombra. Sou eu? Me mexo, ela também. Está grudada. Mas se dou uma cacetada na cabeça dela que é a minha, não sinto nada. Sombra é uma parte da gente que não se pega. Como o vento. Mas vento é vento e a sombra é uma coisa da coisa. Sol faz a sombra, reparei, o fogo também. Caralho, que o problema é o mesmo: pra onde vai a sombra no escuro? Vou morrer jovem... Então uma parte minha some no escuro. Morre um pouco? E quando eu durmo, morro um pouquinho? Muitas vezes eu viajo dormindo. Visito lugares que já fui ou não fui. Vôo, sei voar. Sei correr sem pôr os pés no chão. Mas sempre esqueço o fogo. Às vezes, roubaram meu fogo. Acordo suado, aflito, a boca colada de sede. E se eu não voltasse, se continuasse viajando, até o fim, depois dos mil invernos? É a morte. É isso. Mas quando eu durmo eu levo meu corpo, morto nenhum leva o seu. Chega! Não dá pra entender. Como se a sombra saísse, deixasse o corpo apodrecendo e viajasse por uma noite que nunca amanhece... Mas tem o dia, não adianta imaginar que não. Tudo sumir, apagar de vez, acabar a boa vida, será? e o meu pensamento, este mesmo que estou fazendo? Chega! Não consigo dormir. Meu pau está duro e não tem ninguém. Se eles não vierem hoje, de dia é que não. Quando me pegarem, rasgar tudo, quero estar bem vivo pra ver.
 
 
 
 

Parafina