Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


28.2.12

Parafina (alt. 30 cm)

20.2.12

Dois Pêssegos


Dois pêssegos se amavam desde que nasceram quase grudados num ramo setentrional noroeste de um pessegueiro do vigésimo oitavo corredor esquina B do pessegal da fazenda Dois Irmãos, no subúrbio de Santo Antonio do Pinhal. Nascer grudado a outro não garante o amor de nenhum pêssego, mas no caso dos dois aconteceu.

- Breve seremos colhidos...
- Prefiro isso a vê-lo sugado por morcegos ou consumido por larvas...
- Eu não. Iria com você até a podridão, assim nossas sementes jazeriam próximas na terra...
- Deus me livre, assistir à maciez de sua pele enrugando-se lentamente...

A separação se deu, como esperado, no dia da colheita; um pêssego rolou para a lateral do cesto da camponesa, o outro quedou no centro. E tiveram de suportar o peso e o fedor de muitos outros que se lhes sobrepuseram, além do mal-estar gerado pelo insólito movimento. O balanço da cesta acabou por reacomodá-los de tal forma que um ainda podia observar, através de réstias de luz, uma mísera tangente do outro. Contudo, sem melodrama, eram pêssegos maduros e preparados para enfrentar o inevitável fim.
Foram despejados numa esteira barulhenta para a seleção. Doeu a pancada no metal, mas ao menos livraram-se da pressão e brutalidade dos sacolejos. Porém, logo uma mão apressada recolheu um deles, vestiu-o num falso papel de seda e o ajeitou na ponta esquerda do alto de uma caixa de papelão para nove unidades. Em outro seguimento da esteira, o segundo pêssego vivia a mesma experiência, apenas com posição trocada, no meio da base do quadrado.
Desagradável, previsível e tedioso continuar a descrever a via sacra dos dois pêssegos desde a fazenda até o mercado Sacolão, o confinamento no escuro das caixas, aquele sufoco de bodum de pêssegos, o ataque de ruídos inauditos, trancos e quedas vertiginosos, além da angustiosa viagem de caminhão. Vale apontar apenas a primeira dentre as seguidas coincidências: ambos embarcaram no mesmo lote que chegou ao Ceasa, o mesmo adquirido pelo mercado – mas, é claro, não faziam disso a menor ideia.
Quando um funcionário abriu as tampas, estavam expostos numa gôndola comprida e eram sucessivamente apertados por um bando de mulheres grosseiras; diante da aproximação de uma mão gigante, só lhes restava rezar para não serem os escolhidos. Entre um exame e outro, os pêssegos passavam olhando a fria paisagem do enorme pé-direito do imóvel. Uma freguesa então pôs no carrinho a caixa de um dos pêssegos. Já se distanciava quando hesitou um instante, considerando a provável disputa entre os cinco filhos; voltou e catou mais uma, a que estava mais à mão e que continha justamente o outro pêssego. Portanto, sem conhecimento um do outro, foram parar na mesma casa.
A dona da casa nem se deu ao trabalho de tirar os pêssegos das embalagens que simplesmente foram abertas e dispostas na bancada da cozinha. O menino passava, pegava um; a menina, outro, o pai, a empregada, enfim, aleatoriamente os pêssegos iam sendo consumidos. Nessa roleta-russa, sobreviveram os dois pêssegos, dentre mais alguns. À noite, ao arrumar a cozinha do jantar, a mãe colocou os pêssegos que restavam de uma caixa nos espaços vazios da outra, de modo a descartar uma delas. Nesse processo comezinho, dispôs por acaso o pêssego ao lado do outro pêssego, que no ato despertaram de suas letargias para viveram a maior alegria de suas vidas.

- Como você está corado...!
- E você, então? Vermelho! Amadurecemos tanto nesses dias...
- Seu perfume...
- Nunca havia te visto por esse lado... Você tem uma bela covinha...
- E como está? Perdão, eu sei, essa pergunta não cabe...
- Não vamos perder nosso tempo com lamúrias...

Os dois deixaram as palavras de lado e mergulharam numa profunda contemplação mútua. Quando a lâmpada foi apagada, passaram a madrugada emanando ondas de amor e prazer que somente o olfato dos dois podia entender e traduzir. Ao amanhecer, tiveram juntos esta visão: no galho do pessegueiro, embalados ao deus do vento...
Após o café da manhã, o gordinho arrancou um deles da caixa e o devorou em frente da televisão. A fruta estava tão doce que ele voltou à bancada e catou o outro. Na boca babada desse garoto, no último momento, eles ainda experimentaram o sabor um do outro.


Pastel (21x26 cm) 1977

16.2.12

Lápis e aquarela (23x31,5 cm)

13.2.12

Nanquim (11,5x28 cm)
Nanquim (18x32 cm)

6.2.12

A Casa dos Espelhos



O tanque de areia tomado pelo mato
escorregador enferrujado, gangorra
sem prancha, e um balanço
absolutamente imóvel penso no ar.
Encontro o velho parque abandonado como eu
que não sei por onde ando
e cheguei aqui sem pensar.

Ali está a casa, embutida no barranco
com seus dois arcos de entrada e saída.
Inda se lê na chapa corroída
o solene nome Casa dos Espelhos
com seu fatal subtítulo conheça-te a ti mesmo
- curioso brinquedo infantil de medo
de algum perverso arquiteto.

Penetro nesse antro de mofo pisando num tapete fofo de folhas úmidas
teias que rebento com um cajado
a mesma misteriosa luz escura iluminando
o cilíndrico espaço
o mesmo silêncio daquele dia comum de sol, sorvete, piscina
e terror
quando entrei aqui por acaso.

Ainda sinto receio, talvez
pelo abandono lúgubre, o eco
ou o suave dos passos nas folhas moles
ou a recordação do que se deu aqui
ou por esse pensamento ligeiro
de que os decrépitos espelhos pudessem refletir de fato
não a lúdica verdade
mas uma verdade de súbito.

A toca encolheu com o tempo
ou virei um brutamontes antiquado
profanando um templo infantil
- os espelhos parecem quadros pendurados.
O primeiro é oval, tapado de pó
e tão desusado que mal acusa uma sombra.
Cada espelho tinha nome, lembro
no metal da moldura; passo o dedo e leio,
num pobre art nouveau, Espelho do Tempo.
Volto a fitar a sombra fosca e discreta
não vislumbro tempo algum que não o dele
até que de repente transfigura-se em 3D
aquele menino que aqui esteve
perdido (desde lá perdido)
como se me esperasse nesse entretempo.
Contenta-se e me reverencia
(sua liberdade se aproxima)
oferecendo-me numa cumbuca
um recém-nascido que soluça contido
pra não quebrar o silêncio, fecho os olhos
aperto os olhos, abro os olhos e a coisa muda
sou eu no reflexo mas um outro, estranho
simétrico, alguém que eu poderia ter sido
mais leve, mais alegre, mais vívido
que sorri como não rio... mas agora se entristece
entristece-se ao se reconhecer avesso aqui fora
e sua tristeza o envelhece e o seca
e ele se entrega lívido às mutações da idade
bate o sino, é hora de morrer
sei disso pelo seu olhar fixo no ar
está fraco, murcho, tenta apagar uma vela
trêmula, eu tremo junto e rujo um A
rouco e fundo, e a imagem desaparece.

O que aconteceu, o que está acontecendo?
Sonho, alucinação, magia ou deboche
com sentimento alheio, o dono da casa
vem sofisticando o engenhoso brinquedo
mas não vou fugir do jogo, não outra vez.
O próximo é quadrado
pulo o pó com o dedo e leio: Espelho do Espírito.
Numa metade a poeira clara é fosca
refletindo meia cara orgulhosa
e um olho que despreza
e meio sorriso cínico
e um penteado vaidoso;
na outra metade a poeira escura brilha
meia cara de um tímido medroso
que esconde uma doce loucura
e um olho solitário abatido e generoso.
Sacudo a cabeça, as duas se fundem.
Juntas, quero matar, quero explodir
a imagem avança sobre mim e eu recuo
obrigando-a a recuar, então se revolta
sente-se prisioneira como uma fera na jaula
eu a repreendo severo calma!
Como um balão que se esvazia
ela cabisbaixa se rende à melancolia
e se funde no fundo escuro
adianto a face para resgatá-la
forçada ao close seu rosto cora
talvez por conta de ter cara de nada
o que eu de fora prefiro;
o nada dela ao menos se controla.
Então a imagem se apoia na moldura
como num parapeito de janela
e alheada olha aqui fora, nem nota o seu ser real.
Esperando o quê, contemplando o quê?
Esta saleta deserta, imunda e sombria?

Deixo o espectro pra trás e sigo ao terceiro
(deveria ir embora, sete passos me separam
do arco luminoso da porta)
chamado Espelho da Hereditariedade
em que me enxergo por inteiro.
Mal penso em meus pais e a imagem se desintegra
como se caísse uma chuva de caquinhos minúsculos
mas restassem alguns que, com o acúmulo de pó e fungo,
estruturam um híbrido do meu pai em mim
contudo, menos o físico, mais a postura.
Meu arquear inato funde-se ao dele
meço o meu no seu tenso, reparo
sua testa franzida na minha, o desengonçado
meu no dele e a idêntica austeridade...
Desaba então nova chuva de caquinhos
enquanto os caídos sobem e se fixam
desenhando minha mãe no meu corpo
e a nossa agonia e a perna esquerda de ambos tremendo
e a minha desesperança e tristeza nela
e no meu ar distante a sua indiferença.
Grande ventania lá dentro
caquinhos em redemoinhos formam quebra-cabeças
instantâneos: sou meu pai, meu avô, minha avó, minha mãe
e o pai dela e sua mãe e muitos anciães
e jovens desbotados de antigas fotografias
e senhoras em preto e branco, desconhecidos
que usam fragmentos de meus gestos
a mão cerrada, o ombro retesado, a ironia
meu sexo aflito, pudor, choro, formalidade típicos
meu jeito de desviar o olho de uma mulher
um bronco estúpido como eu com meu filho...
e eu sou todos e ninguém
- e chega!

Perco a paciência com essa abstrusa casa
absurda, rogo que esse périplo de provas acabe logo
logo! pois então que venha o próximo
um comprido, convexo até o umbigo
e côncavo pra baixo
apagado onde se leria Espelho
e corroído onde decifro da Sexualidade.
Fico deformado, repuxado, monstruoso
do fio do cabelo à ponta do pé
e nu, não sei porque nu, e o eu de lá,
masculino e feminino, rindo do meu desconforto;
eu não rio, quero sair daqui e é já
mas seus braços como longos tentáculos
me agarram e me enrolam, sua boca nojenta toca a minha
puxo o pescoço, contudo, quanto mais
fujo ou me esforço, mais o outro gruda
com sua onipresente malícia.
Faço o contrário, aconchego a bunda no seu côncavo
e assim minha bunda se distancia
lanço-me ao hermafrodita gosmento
e ele se afasta, toco seu pinto, entro no buraco
e sua mão deixa os meus em paz.
- Onde está minha roupa, onde está minha roupa? - ordeno
e o mundo volta ao lugar.
Então, a figura plácida de um alfaiate
ora esguia, ora gorda, mas sempre com classe
veste-me a calça, sapatos e camisa
e me oferece o casaco... Obrigado.
Estou agora bem trajado e recomposto
quando ele me entrega o cajado.

Acho que este é o quinto (quantos mais?)
tão desbotado que penso em pulá-lo
mas um dedo lá lentamente escreve no pó:
EM-EPMIL . E me ponho a lustrar
ora com as mãos, ora com as mangas do casaco
eu e ele, cada um do seu lado
e o que era baço passa a brilhar
e tanto, de arder as retinas.
Fecho os olhos – de que adianta se o outro abre?
Espelho da Verdade é o nome desse.
Verdade, tudo aqui é de verdade
como se outra verdade existisse...
Vamos, diga aí espelho meu! estou farto...
Mas nada, nada... do nada
um garoto transparece lá do meu lado
lindo, ora azul, ora rosa, ora dourado
um anjo de algum eldorado que me dá a mão
e me leva para o céu e me solta no azul, azul, azul...
Uma ave parelha comigo
eu a sigo, pousamos num poste elétrico
da minha cidade, com olhos de rapina
entro pela janela de um apartamento
onde uma cintilante rapariga de alguma Atlântida
escova seus longos cabelos no espelho...
No espelho!
Daí meu desespero: onde está a minha imagem?
Anjo diabólico! rouba-me de mim... Dê-me-a, demo!
O anjo franze a testa, balança a cabeça
dissesse não, não, bobagem... eu porém
resoluto: devolva a minha imagem!
De volta, frente a frente eu e eu igual
ou quase igual, porque o outro está imóvel
endurecendo, petrificando-se
eu me mexo e ele é uma estátua vazia me encarando
tão vazia que vira uma casca
tão frágil que quebra e desmorona.

Eu também no chão, alquebrado
engatinhando pra não ver mais nada
mas o inesperado me espera justamente no piso
camuflado por ciscos que mecanicamente afasto.
Redondo, pequeno, do tamanho do meu rosto
escrito no topo: Espelho do Medo.
Uma gota de suor cai sobre a outra face
e ondas fazem um círculo concêntrico
é de água esse espelho, ponho o dedo
o dedo fura, afunda e repuxa o braço
que carrega meu corpo pra dentro
de um poço, um túnel, um escorregador
veloz e escuro, a própria sintaxe do medo
com teias, ventos, gargalhadas e choro
de criança ao fundo, mas repentinamente um corte
me transpõe para um corredor obscuro de escola ou hospital.
Escuto passos que vem da penumbra;
surge um senhor de terno surrado
com orelhas de equídeo e focinho de felino
e me entrega um balão murcho, molenga, babento
que se amolda em meus braços
e escorre feito clara de ovo, um nojo
que amparo nas coxas agachado
mas tem uma coisa lá dentro se debatendo
mãozinhas, perninhas, um corpinho sufocado.
Novo corte: outro aproxima-se pelo mesmo caminho
quem chega é um urubu com uma carniça no bico
estou preso e nu, deitado num mármore gelado
sinto suas patas nas pernas, no pinto, umbigo, subindo
já no alto do meu peito arquejado
encara-me agora ora com um ora com outro olho.
- Quem é você? rosno com muito ódio
e ele, para responder, larga a carniça na minha boca.
- Ainda sou a vida - e voa -
quem vem aí é a morte - e some.
Ouvindo seus passos, acordo atônito diante do sétimo.

Um tal Espelho da... Senha, não, do Sonho
reflete meu estado medonho
coberto de gosmas e fungos e humos
que vou retirando trépido e nauseado.
- Pronto, dos Sonhos, qual é a tua?
- Eu que te pergunto: qual o teu sonho?
- Tenho nenhum, exceto sair daqui e esquecer de tudo.
- Depois do que você viu, depois do que passou
não haverá volta, não encontrará mais a realidade.
Através do espelho me assisto saindo da casa feito louco
vagando pelo parquinho antes abandonado
agora de um abandono oco
como ocos o caminho, as pessoas, a cidade
cenários de uma falsa engrenagem
o horror de uma vida sem alma.
- Sua única via é sonhar
e, para isso, precisa me contar: qual o teu sonho?
Ele tem razão. Confessar-lhe meu antigo desejo
de ser alguém comum com mulher, filho e emprego
não ressoa mais em mim
não condiz com tudo o que vi
e fico mudo. Reparo em minha imagem exausta
quem está lá se preocupa comigo
e leva a mão querendo dar carinho, dizendo baixinho:
- Fale, deixe de pudor, pelo menos entre nós.
Você sabe e sente, seu sonho é possível porque é comum
sonhando se tornará um igual. Agora fale.
As lágrimas que escorrem aqui escorrem lá, então o outro também chora
contraio-me, viro o rosto, mas ele me põe de volta.
Encaro-me, e a imagem apenas me reflete:
- Desejo ser poeta.
- Que assim seja.





2.2.12

Princípios Estéticos


Nº 8

Qualquer mata tem seu valor
Qualquer ponto de vista tem seu valor
Qualquer fotografia tem seu valor

Contudo, dois ou mais quaisquer juntos
Não têm valor algum.