A Escola
Planície.1959.
(De onde eu venho?). Estou perdido, cansado, viajando por descampados sem fim. Os raros nativos que encontro nada esclarecem, ao contrário, conduzem-me ainda mais para esse ermo. Um garoto me assegura de que me aproximo de um povoado, mas não sabe o que é gasolina. O carro sofre com a estrada pedregosa e entrecortada por leitos secos. Daqui ele não passa – uma espécie de ponte feita de caixotes encaixados aos pares, sob a qual curiosamente não há vestígio de nenhum curso d’água que a justifique. Com certo desalento, desço do carro e ultrapasso a precária travessia para então concluir que se trata de uma ponte-porteira, pois uma sensação de aconchego ou uma frescura me dá a impressão de entrar em outro lugar... Mera impressão, a estrada segue idêntica, tão árida e esburacada quanto antes, porém... pareço divisar logo adiante, e me aproximo, um morro perfeitamente camuflado na paisagem, que se ergue interceptando o caminho. Não é alto, eleva-se como um enorme degrau em noventa graus, e sei que devo escalá-lo pelo simples fato da forma da estrada em perspectiva continuar no morro, incrustada, como se naturalmente o rumo prosseguisse na vertical sem que a altura impusesse obstáculo algum. Por este motivo não era percebido à distância – digo comigo. Com dificuldade alcanço o topo e sou recebido pelo vento e o verde brilhante de uma campina de folhas alongadas e finas, estendendo-se num vale a se perder de vista. Isso não é um arado, é um jardim! O sentido de ordem dessa natureza se confirma quando distingo uma insólita construção, num ponto que centraliza tudo à volta, para onde me dirijo.
Dou voltas e mais voltas em torno da excelência dessa arquitetura inconcebível, inconcebível sobretudo nesse fim de mundo. As pessoas do lugarejo não se importam comigo, apenas sorriem entre si como se compreendessem meu espanto. Sou eu, com meu jeito urbano, moderno e bem trajado, que deveria ser o alvo das atenções, mas não, aqui pareço um roceiro deslumbrado que caiu no centro de uma metrópole. Certa inibição me impede de entrar no prédio, ou antes, a premência da sede me desvia, ao pedir água para um rapaz sentado na porta de sua casa. O mulato chama e sua mulher aparece do escuro da sala com uma jarra e cumbuca. Depois das perguntas iniciais e trocas de gentilezas, ele me conta a história desse lugar.
"Dizem (e existe na Escola uma cratera destinada a isso) que seu Carmo partiu daqui ainda jovem, quando essa aldeia perdida estava prestes a perder-se até mesmo de si. Nunca fomos coisa alguma que merecesse um nome (mesmo hoje não o temos, mas por opção), os primeiros que aqui chegaram estavam à procura de diamantes no rio – e, pelo visto, nada acharam. Esboçou-se então uma aldeia longe de tudo, nesse vale esquecido por fazendeiros e autoridades – o planiço desértico que nos circunda ao mesmo tempo nos separa e protege do mundo. Graças a esse pequeno oásis de terra fértil e clima temperado, pudemos viver longos anos de lavouras e criações. Não, esse rio não dá peixe, só água; a nascente é aqui perto, mas não sei pra onde segue. Com a morte do primeiro e único padre, o povoado ficou à espera de um novo missionário que nunca apareceu. Sem outra opção, alguém se fazia padre e conduzia um ritual cada vez mais distante dos preceitos cristãos, uma vez que a memória dos cânones primitivos perdia-se pelas gerações. No fim do século dezenove, por influência notadamente indígena, um novo rito tomou curso, devotado ao chá de cogumelo. Esse sincretismo religioso que paradoxalmente unia restos de dogmas católicos com as características alucinógenas do chá acabou por engendrar um sistema moral supersticioso e fantasmagórico, responsável por uma crescente perda das referências básicas do tempo e consequente derrocada da pobre economia de subsistência. Calculo que isso se deu na década de vinte. Não posso afirmar se por resquícios do antigo mito do padre substituto ou, o que é mais provável, pela ansiedade coletiva que tomava conta de uma tribo caótica, o fato é que se disseminou a fé de que alguém um dia chegaria – um líder. E, quando maior era a miséria e a decadência – o povoado, então, reduzido a umas dezenas de moradores – um desconhecido – o velho Carmo – retornou para implantar o seu projeto que, apesar de intrinsecamente revolucionário, preservava alguns traços da singularidade da nossa cultura. Você verá.
"A fase inicial foi dividida em três etapas, que descrevo em ordem cronológica: primeiro construiu uma olaria, o que propiciou a reformulação da estrutura das casas, que passou a ser de alvenaria. Essa aquisição não tinha em si maior importância, destinava-se principalmente a gerar trabalho aos homens e a levantar a autoestima da comunidade que, sem perspectiva ante coisa alguma, viu seus casebres crescerem e tornarem-se sólidos, belos e duráveis – era um voto de confiança o que ele buscava. A segunda medida foi montar um engenho para a destilação da batata, cujo resultado foi amplamente aprovado numa festa de confraternização. Consolidada a adesão à nova bebida, alcoólica mas não alucinógena, proibiu o chá de cogumelo. A terceira e última etapa (na verdade, a razão de ser de tudo) foi dar início à obra da Escola, para a qual contou também com o ingresso de moradores vizinhos, convencidos por ele a mudarem-se para a nossa região.
"Você já viu a Escola por fora, com suas paredes de tijolos, exceção feita aos dois quartinhos de sapé – deve ter reparado. A forma é um dodecaedro perfeito. Em cada face há uma porta, portanto são doze entradas, um número cabalístico dos possíveis caminhos de uma vida. (Por ora, esqueça os quartos de sapé.) Dia chega que a gente sente nitidamente vontade de conhecer a Escola (raramente na infância, via de regra quando os jovens se cansam das brincadeiras da aldeia). O pretendente deve então correr em volta do prédio até a exaustão completa, e sob esse estado cambaleante dar ainda uma última volta, dessa vez olhando a direção das setas penduradas no alto dos batentes, que, sensíveis ao vento, apenas uma apontará perpendicularmente para o centro de uma porta: justamente aquela que será a sua entrada na Escola. É a porta do seu destino; por ela, e somente por ela, você penetrará todas as vezes. Desejar explorar seu interior por outra via de acesso é perder-se num emaranhado de caminhos estranhos e sem nexo. Esse ritual é de grande importância, por isso acompanhado de perto pelos mais velhos.
"Logo após ingressar no prédio, o caminho se bifurcará sucessivamente (mas não infinitamente), e o iniciante deverá conhecer intuitivamente as inúmeras opções, sem outra intenção que não seja a de travar um primeiro contato com o lugar. O uso da Escola nesse começo é sempre alegre e superficial, você ingressa por sua porta sem saber pra onde ir (a estrutura labiríntica não é feita para se perder, mas para se achar, portanto as indicações de saída são claras), segue uma ou outra ramificação que o levará casualmente a muitas crateras abertas do térreo e em especial ao coração da Escola – um grande salão central. Como? Crateras são salas de concentração, cada qual dedicada a um conteúdo específico. Chama-se cratera em razão de sua forma ovalada; você não imagina, o que se vê daqui de fora não é nada comparado à verdadeira dimensão que se oculta nos subterrâneos, onde a Escola se espalha numa rede de túneis orgânicos – daí a semelhança das crateras com órgãos do corpo humano. Muito bem – eu estava dizendo –, nessas primeiras crateras e nas galerias de interligações, e mesmo ainda nos corredores mais estreitos, o iniciante encontra muita gente que o auxilia, acompanha; trata-se aqui de uma etapa básica e comum a todos, em que predomina um espírito jovial, mas nada vulgar. É por isso que essas crateras são abertas, de livre acesso, não sendo necessário o uso de senhas, pois seus temas referem-se a princípios elementares e estruturais da vida, como relações de respeito e hierarquia, direitos e deveres sociais, significação do trabalho, do amor etc.; como também nos prepara para tudo o que concerne à vida prática, como arar a terra ou construir casas, poços, moinhos, artefatos domésticos; e apresenta as primeiras lições sobre a desarmonia, em particular na manifestação em doenças, crises do espírito, desejos, egocentrismo etc. Nesse período, os mais velhos aconselham a sair (entrar, nunca!) por todas as doze portas, a fim de que nos familiarizemos, mesmo que inversamente, com a trajetória dos outros, e assim desenvolver, desde logo, uma razoável compreensão dos tipos humanos. Essa fase tem importância relativa para cada indivíduo; há aqueles que dela quase prescindem, há os que nela permanecem por anos.
"Pois então, passado o fogo da curiosidade e a água da inocência, com a maturidade sobrevém o desejo de penetrar realmente nos meandros da Escola, o que significa se entregar para receber seu conhecimento físico e metafísico, sua sabedoria racional e transcendente. Assim sendo, o aluno deve, desde um ponto arbitrário da aldeia (que é pequena, delimitada pelo barranco de onde você apareceu e o rio que a circunscreve como uma ferradura), o aluno deve então contar exatamente o número de passos com que percorre o trajeto em direção ao centro da grande salão, onde se eleva a pilastra incrustada com milhares de senhas, uma para cada número de passos possível desde o extremo da divisa. Já lhe explico. Nesse marco de trinta e nove palmos – chamado pelos eruditos de axis mundi, e pelos meninos de cacetão (por ser orgânico e lembrar um falo) –, todo ele ornamentado por longas listas de senhas, a pessoa encontra a correspondência entre o número de seus passos com um código específico – justamente a senha. De posse desta, seu caminho pela Escola jamais será aleatório; o explorador deverá obedecer aos sinais numéricos e alfabéticos de sua senha e, através deles, seguir à direita, à esquerda, acima, abaixo, conforme as demarcações afixadas nas bifurcações, cujo fim será conduzi-lo a crateras específicas, onde poderá permanecer o tempo que lhe concernir, conforme a sua empatia com conteúdo oferecido. Esgotada a experiência, repete-se quantas vezes desejar o procedimento para aquisição de nova senha; muitas vezes no mesmo dia ou uma vez ao ano, isso varia demais. Andar nos subterrâneos sem ela, como já foi feito por uns abilolados, principalmente em épocas passadas, é se expor a um perigo quase fatal; existem centenas de túneis enlameados que desembocam em fossos suficientemente profundos para serem escalados, e garanto que ali não se enxerga nada – as passagens de luz e ventilação restringem-se às crateras e às demarcações de direção. Portanto, sem a ajuda de um transeunte esporádico que passe casualmente por perto e ouça seu pedido de socorro, o aventureiro não sai daquele fundo.
"Há quem acredite que a Escola seja infinita; não é, evidentemente, apesar de ser impossível conhecer sua totalidade. Veja: para isso seria preciso que se obtivessem as senhas de todas as crateras, o que exigiria que se falseasse o número de passos, algo inconcebível para nós e, de qualquer maneira, não haveria tempo o bastante numa vida para usufruir tal benefício (qualquer cratera, por menor que seja, possui um universo próprio). Nossa Escola vem sendo construída por muitas gerações, segundo os projetos deixados por seu Carmo. Ele foi, sem dúvida, o grande mentor de tudo, mas não daria cabo da empreitada sem a ajuda do filho Marco, o nosso Marquinho, que aqui chegou quando a obra estava bem avançada e seu pai já bastante debilitado – faleceu dias após sua aparição. Jeitão de moleque, simples, quieto, logo ganhou a estima de todos e o mesmo respeito e liderança antes dedicados ao pai. Tudo fora previsto pelos dois: o pai se adiantaria para iniciar e consolidar o projeto, enquanto o filho se dedicava, longe das atribulações da obra, ao estudo e definição exata dos conteúdos. Trouxe consigo, em não sei quantas carroças e carros de boi, enorme carga de objetos. (Faria ainda muitas viagens para completar o material da Escola.) Ninguém sabe onde os dois se formaram, nem quem financiou o projeto (eles não revelaram nada a respeito, diziam que isso não tinha relevância), por isso alguns estudiosos defendem a ideia de que os dois criaram tudo sozinhos, de suas cabeças ou, no máximo, com auxílio de livros comuns a qualquer biblioteca. Outros dão como certo que, além da genialidade inata, ambos teriam viajado o mundo em busca de experiência – a cratera do oceano, por exemplo, revela a intimidade de um navegante. Eu acho que não. Estou com a maioria que pensa que pai e filho cursaram escolas da Europa e Oriente – incluindo Índia, Japão e China –, estudaram em grandes bibliotecas, tiveram contato com místicos de toda sorte a fim de desenvolverem uma síntese particular que desse sentido à vida humana em sociedade. E o segredo por eles descoberto, ao menos seu vetor principal, não foi outro senão abolir do conhecimento todos os nomes próprios e o tempo histórico. Eliminaram com isso de uma só vez a competição, a vaidade e a ideia de evolução; qualquer conceito, razão, poesia, fé, conhecimento, música ou imagem têm ou não têm valor em si, e deverão ser apreendidos segundo a experiência pessoal direta. Conheço a fundo tudo isso porque na aldeia sou um dos poucos familiarizados justamente com os nomes e as datas, pois a mim foi dado encontrar a cratera das datas e nomes, e, como resultado, ter acesso à visão histórica tradicional – é de própria constituição a Escola dispor ao menos de uma cratera para conteúdos contrários à sua ideologia. Por essa razão, para mim não resta dúvida de que eles tenham absorvido muito do ensino clássico dos povos – com o objetivo de abdicá-lo. Sonhavam com um mecanismo pleno e autônomo que nos enraizasse na aldeia, levando às últimas consequências a noção de que um lugar contém todos os lugares e um tempo, todos os tempos. Mas é natural que os jovens, entre os quais já me incluí, sejam possuídos pelo desejo irracional, espero que você me entenda, de desconhecer o mundo – talvez o único conteúdo que escape à Escola. Por conta disso, sempre houve casos de desastrosas incursões aos arredores – com o tremendo choque cultural, raros sobrevivem ao terceiro dia. São tantas as razões, destaco apenas este detalhe: nunca manuseamos o dinheiro. (Deve haver uma cratera sobre trocas financeiras, mas ninguém a tirou.) Curiosamente, aqueles que retornam são tomados por várias doenças e confusões mentais, e passam um longo período de recuperação. Outros desaparecem por aí. Essas experiências nunca nos legaram nada de positivo exceto talvez, como contraponto, para reverenciarmos ainda mais os nossos patriarcas, pela habilidade com que nos esconderam e nos livraram de um mundo onde a experiência de viver é reduzida.
"Sim, eu ia lhe contar sobre a construção da Escola e me desviei. Já disse que as crateras abertas ficam no térreo e que as verdadeiras riquezas residem no subterrâneo, onde a Escola se estende até os limites da aldeia. A obra está no fim, duas equipes que ainda cavam irão se encontrar qualquer dia, fechando o derradeiro círculo. Grande parte da lentidão se deveu às regras impostas pela própria Escola; toda etapa de trabalho dependia de alguém, através de sua senha, se deparar inesperadamente, num beco sem saída, com uma intimação para continuar a escavação – um velho documento com diretrizes específicas. O escolhido assumia então o cargo de mestre-de-obras, e convocava uma turma de empregados especializados para ajudá-lo. Cumpria a sua tarefa até o dia em que simplesmente desistia, por exaustão ou desinteresse, deixando então aquele segmento à espera de outro mestre – e sua equipe era desfeita. Mas saiba que sempre foi uma glória para nosso povo cavar a Escola, mesmo que depois do camarada estruturar corredores e crateras, limpar, iluminar e deixar tudo pronto para receber o conteúdo que ele próprio, como último gesto, depositava cuidadosamente (sempre de acordo com as indicações do documento e sob a supervisão dos nossos dirigentes), enfim, depois de tanta presteza, sobreviesse a frustração de ter de abandonar o local sem esperança de um dia retornar – requereria a sorte de uma repetição de senha, o que é raro. Por isso, na verdade, trata-se de um trabalho feito para o outro, o que de resto faz parte do próprio espírito da Escola.
"No fim de um dia extenuante de trabalho ou estudo, quando sobre nós recai um cansaço gostoso, costumamos nos reunir ao pé das casas (como agora, com você) para relatar nossas descobertas. Esse orgulho passa de geração a geração, e todos aqui possuem um sentimento de deferência diante da grandeza da obra. Mas esta deferência, por parte de alguns, tem se esvaído num mero respeito formal. Isso porque, nos dias de hoje, pairam incertezas no ar, veja só: talvez pela eminente proximidade de sua conclusão, ou por qualquer mudança imperceptível nos costumes, vem crescendo uma impaciência entre os jovens que se arriscam cada vez mais em viagens desnecessárias, mesmo que a maioria retorne posteriormente. Como já falei, são aventuras de curta duração e repletas de confusões, porém, afora a preocupação individual, há sempre o perigo da exposição de nossa aldeia a curiosos, homens de poder e dinheiro, degradadores, gentes do mundo, afinal, que poriam tudo a perder em pouco tempo – nossa duração depende de ignorarem-nos. E também já existem casos de rapazes que recolhem raparigas nas redondezas, certamente inebriados pela beleza, o que fomenta um inevitável conflito com as nossas mulheres. E sabemos que os filhos dessas moças jamais serão criados de forma pura, segundo nossos valores, no que se anteveem futuras discriminações. Além dessas imigrantes, por sua vez, atraírem seus familiares... Tudo isso nos preocupa demais e nada podemos fazer, pois sabemos – a própria Escola nos ensina – ser inútil restringir o arbítrio das coisas, pois estas se darão de um jeito ou de outro. Forasteiros como você não nos incomodam; chegam aqui perdidos e sabemos fazê-los saírem ainda mais atônitos."
– Hora da bebida.
É a jovem esposa oferecendo um destilado numa bandeja, onde equilibra com graça uma moringa e três cumbucas. Estão acendendo os lampiões na aldeia. Não posso deixar de reparar na beleza dessa mulher, mulata forte, de pele brilhante, com um sorriso permanente e contido, quase malicioso, coberta apenas por um vestido largo – pano outrora branco, agora desbotado. Tenho certeza de que não veste nada por baixo, e nela fico absorto, distraído, enquanto o rapaz me serve uma dose. A bebida é mesmo especial, leve e seca; parece se dar gole em nada.
– Queria conhecer a Escola – falo por falar, o outro nada responde. – Afinal, o que há dentro das crateras?
"Nenhuma se repete, nem mesmo as vazias (que nos convidam, evidentemente, à meditação ou simples repouso). Raramente ocorre de se topar com alguém dentro delas – se acontece, é a relação que deve ser observada, em si ou em função do tema ali proposto. Em sua maioria, as crateras se caracterizam por ensinamentos específicos ou meras curiosidades aparentemente sem propósito: podem conter somente uma flauta, um livro ou uma estante cheia de livros (sempre manuscritos, sem autores nem datas); o mapa de um país anônimo, com detalhes, por exemplo, de sua rede de metrô; uma mesa com lápis e caderno; um professor de gramática (alguém que abdica de continuar a exploração da Escola e se atém à sua última senha – e nessa cratera simplesmente espera a chegada de um aluno); receitas culinárias, fórmulas para o tingimento do algodão; pequenas armas de guerra com manual de instrução etc. Eu venho me dedicando, nessa fase – e a sorte parece que me acompanha – a um gênero de crateras um tanto depreciado por meus amigos, em razão de sua insólita natureza: numa, um colchão o convida a deitar e a contemplar o céu através de um cano com três palmos de diâmetro o qual vasa um pé-direito baixo, o que para mim (assim interpreto) quer configurar a noção de um instante; noutra, espalham-se peças de um quebra-cabeça cuja imagem final (que parece de um corpo humano bastante deformado) é muito maior que o espaço interno da cratera, de modo que montamos um pedaço de cada vez; noutra ainda, cujo sentido nunca pude decifrar (e lá me deixei ficar bastante tempo), a sala é forrada com um tapete de veludo vermelho, as paredes se erguem como um cilindro, brancas, altas, até uma cúpula também branca, de onde desce imponente um lustre de cristal como fossem gotas sobre uma mesa redonda cujo tampo é um espelho convexo. A luz parece irradiar do espelho e não do lustre, e, não sei por qual efeito, os cristais refletidos projetam uma torre sem fim, e, o que mais me intriga, ao darmos uma volta em torno da mesa, em ponto algum do espaço o espelho nos reflete. Fico calculando o enorme esforço de Marquinhos para trazer esses objetos, não se sabe desde onde, e me pergunto: por quê? É fácil concluir que não haja sentido algum, mas não penso assim – certa vez, por exemplo, estive numa cratera onde dois manequins de plástico mal engendrados moviam-se pendurados obliquamente no ar, e do alto abria-se uma fenda estreita, por onde penetrava uma réstia de luz. Na minha derradeira incursão, quando já havia decidido não mais voltar, o foco da luz de um determinado dia e hora incidiu de tal forma nos bonecos que suas sombras cambiantes sobre a parede irregular perfaziam um espetáculo de posições sexuais para mim de todo inusitadas, além de incrivelmente sensuais.
"Há relatos de crateras imensas, com biblioteca completa, laboratório químico, fábrica de brinquedos, ateliês de pintura, observatório astronômico, e até de teatro para concertos ou peças, que não imagino quando seria inaugurado, tamanho o número de senhas coincidentes necessárias. Todas as crateras são nobres, mas é evidente que aquela onde se concentram os estudos e documentos da família Carmo, bem como o mapa completo da Escola com a relação e distribuição dos conteúdos, e onde, além do mais, jazem o pai e filho – bem, esse lugar se destaca, senão em importância, ao menos hierarquicamente. Aquele que é levado a descobri-la (sempre alguém de idade, não sei por quê – parece haver aí algum segredo) traz consigo o estandarte de nossa aldeia e será então aclamado como o novo dirigente, em substituição ao anterior que, nesse momento, passa a auxiliá-lo. Curioso observar que esses dirigentes, após conhecerem a fundo tal cratera, justo quando se lhes revela todo o segredo e, desse modo, sabedoria para andar livremente pela Escola sem a obrigação de senhas, sucede-lhes que raramente voltam a ela ou, quando muito, retornam apenas para resolver problemas de conservação e limpeza. E quando lhes indagam a respeito, respondem o mesmo bordão dos antecessores: que a Escola está em tudo e que tudo é Escola – como se ela somente espelhasse os caminhos e conhecimentos da vida, que se vertem em qualquer canto, a todo instante. Às vezes consigo me aproximar dessa ideia, como agora, aqui, falando com você, nesse pé de escada. Longe de mim comparar-me a esses dirigentes, mas sinto qualquer coisa especial entre nós, de uma intimidade que só se vivencia nos encontros casuais nas crateras...”
– Bebida?
É a mulher, cada vez mais graciosa, me servindo. Sinto-me inebriado com o relato, e o álcool eleva ainda mais o estado de êxtase e alegria. Não consigo desviar meu olhar do movimento saltitante do seu corpo, e o rapaz parece não se importar com isso. Agora ele tira a camisa que passa a servir de apoio, no degrau, para a sua cabeça passiva que contempla a noite. A moça entrou num quarto escuro e, por um momento, penso no absurdo de que possa estar me convidando a segui-la. Mas logo retorna trazendo um estojo de pele transparente, cheio de cosméticos coloridos, que despeja no chão ao lado do outro – e agora, senta-se junto a nós, abaixo de mim. O marido como que desperta, esperando já pela minha pergunta:
– O que é isso? – digo, reparando nos estranhos petrechos de cabinhos de bambu, cujas pontas parecem batons, de cores muito vivas mas gelatinosas.
E ele (será que fala baixo, ou sua voz está mais doce?): "esse material é rotineiro entre os jovens, e mesmo nós, casados, não deixamos de usá-los. Pra você entender, preciso lhe contar sobre os quartinhos de sapé. Diante deles abre-se uma clareira a céu aberto, onde se dispõem paralelamente, defronte de cada porta, dois bancos compridos. A tendência geral é de sentar meninos de um lado, meninas do outro – mas não há regra. Você deve ter em mente que essa edícula fica no quintal da Escola, a ela, pois, vinculada, mas em outra dimensão, sem senha, sem regra alguma; a qualquer momento, e com quem quiser, meninos e meninas sentam-se nos bancos. Com esse estojo, cada grupo decora os pintos e as vulvas dos interessados, antes da relação sexual. É determinante que o pinto se mantenha duro, para a plena definição do desenho – em geral, feito a lápis – e a vulva bem molhada, para que se dilua a tinta. Os desenhos masculinos tende ao geometrismo, ora recobrindo inteiro o membro, ora sua base, ora apenas a cabeça – cada estilo explicita um tipo de desejo. A decoração feminina costuma ser mais discreta: um dégradé nos lábios lembrando um arco-íris, e os pêlos tingidos com pigmentos variados. Depois de tudo pronto, o casal se recolhe num dos quartinhos recobertos de esteiras. O efeito é excitante; no momento da penetração as cores se fundem, gerando inicialmente um tom cinzento que, aos poucos, no vai e vem, adquire um matiz esbranquiçado, até atingir, junto ao gozo, uma transparência brilhante. Diz-se então, se não restarem vestígios de tinta, que tudo foi bem. Se o casal estiver unido já por uma intimidade particular, um prepara o outro nos bancos, e ninguém os incomoda. Mas, no cotidiano, nas bolinações despretensiosas, a praxe é meninos pintarem meninos e meninas pintarem meninas. E não é incomum que os meninos gozem ali mesmo, entre eles, no meio da brincadeira. Mas cuida-se de preservar a energia para a parceira escolhida no banco em frente, ou nas trocas de olhares pelas ruas da aldeia, ou nos encontros dentro das crateras (não se aconselha sexo no interior da Escola).”
– Você se excitou com a história, moço, estou só vendo! – a mulher ri maliciosa, enquanto prende o cabelo. O marido completa:
– Se quiser eu desenho no seu, me dê... – e se aproxima afável, sorrindo também – e eu não sei como permito essa liberdade. Ele começa a abrir os botões da braguilha do meu terno, a mulher se ajeita para melhor assistir à operação. Sinto-me solto, solto a ponto de pensar que a bebida tenha me possuído...
De repente me enrijeço, recuo, levanto, me aprumo, dizendo:
– Eu não sou daqui – ecoa no fundo da minha cabeça: de onde eu venho? –, não tenho esse costume.
Envergonhado – por deixar acontecer ou por impedir que acontecesse – não olho mais o rapaz. A moça troca sua vívida feição por outra de ligeira preocupação. Não estou em mim, meus gestos não têm consciência, eu e meu corpo somos dois e o segundo flutua de excitação e bebida.
Agarro a mão da mulher e a levo para um quarto escuro – disso ainda me recordo com exatidão. Mas não me lembro do quarto, muito pouco do sexo que fizemos, apenas que ela não oferecia resistência, e também de sua expressão condescendente, durante ou depois, como se me falasse que nada daquilo era necessário. Ao final, esgotado por tudo, deitado numa cama ou esteira, parece que vi seu corpo nu se erguendo, e talvez seu marido lhe dizendo na porta: "tudo bem?". Sei que dormi.
*
Só queria poder voltar mais uma vez àquele lugar e dizer ao rapaz, mas então carinhosamente, que de fato meu mundo é outro, que ali eu estava só de passagem, mas, se porventura lá vivesse, se eu fosse um deles, ele seria o meu escolhido, o meu namorado.