Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


30.11.10

Areia



Na praia é a mulher do mar.
No deserto é o homem do homem.
No sertão é o yang da terra.
No chão é o pó do dia.
No tempo é o átomo da pedra.
No espaço é o brilho do astro.
No olho é o cisco da visão.

No ser é a sua dimensão.
No crer é o castelo da razão.
No ter é o que escorre das mãos.

29.11.10

Bico de pena (29,5x21 cm)
O Guardião do Fogo

Toda a tribo dizimada por lobos estúpidos. De que serve vida? Custa nascer, custa criar, para no fim virar comida de lobo. O que foi, meu fogo, o que aconteceu? Preciso pensar. A vida é uma pedra parecida, os dias, a gente se acostuma, aí de repente caos. Quando os deuses abandonam, eu sei. Não tem volta, ninguém corrige o dia. Meu vigia dormiu, cansado de nada, não viu, não farejou, entraram, a alcatéia, de tocaia. Era a hora mesma, ontem: o meio da noite. Besta! E aquela zoeira sem obediência. Antes da aurora, eu mesmo acabei com os feridos. Não gosto de ui, de ai, de lamúrias. Moribundo não serve pra nada. Gostava dela, isso sim. Se estivesse dormindo a meu lado, estava viva. Apaziguaria meu corpo esta noite, ao menos esta. Os lobos me levaram o sono. Chego a doer. Bosta! Mataram tudo que prestava, sobrou a tralha. Três moleques, eu e a velha. Não conto as três crianças. Pra nem ver o inverno acabar... De que adianta o fogo agora, se a Deusa está com os lobos...? Adormeceu meu vigia... A canalhada veio de mansinho, pata pé pata, pra morder de vez, o máximo, os melhores – só não se atreveram comigo. Se eu lutasse, eles apagavam o fogo – não a brasa da fogueira, mas meu fogo, o fogo do oco da pedra. Futuro nenhum. Disseram que vão voltar. Agora é fácil. E com a Deusa do lado... Merda! Gosto de viver. Aprecio meu posto. Todos me respeitam, até lobos. Viram? Vieram de vingança, que se fosse por fome catariam os primeiros, os três: o vigia e a mulher com filho que dormiam lá fora. Estaria bem, seria bom. Vingança por ter pintado praga na parede contra eles. Eu avisei. Mandei apagar. Apagaram, era tarde; Deusa já tinha voado avisar. Nunca vi tantos. Reuniram todos. A planície inteira. Foda! Somente a velha. Onde vou meter? Se não forem os lobos, quaisquer uns aí virão, quando souberem da desgraça, acabar com resto da gente. E já foram avisar, os ventos... Homens piores que lobos, que matam por matar. Matar precisa de razão, todo mundo gosta de viver, beber água, trepar. Bichos matam pra comer, homem mata pra matar ou morrer. Lobo veio por vingança, dessa vez. Também, os meus queriam acabar com eles todos. Burros! Como se pudessem enfrentar a natureza. Lobo não se elimina, tem deus pra tudo. Agora, qualquer leão caduco acaba com a gente – qualquer leopardinho. Os três moleques precisam de força, crescer, o que vão comer? Só sabem caçar ratos, catar coco, e eu não caço, nem na miséria eu caço, tenho mais o que fazer. Viver. Eu gosto de viver. Saio pouco, aprecio o nascer do sol. Com a pedra da brasa na mão. Meto muito, vários filhos eram meus, os outros metem e quase não fecundam, eu, e a mulher embucha! Eles me respeitavam. Gravidar a velha, arre! Cátiço! E a velha é nojenta. Nunca fui com a cara. Com ela tive aquele mongol. Dei pros lobos. Depois, não quis mais. Bons tempos, oferecia-se criança ou velho de vez em quando, e os lobos deixavam a gente em paz. Mas veio a modernidade, e chega de sacrifícios, é guerra, a tribo garante – deu nisso. Essa rapaziada não conhece o tempo, pra eles nada existiu, nada existirá. A graça é que acertaram, nada haverá, mesmo, ao menos pra eles: viraram carne. Pensam que fogo só acende fogueira e que deuses só existem pra nós. Cansei de falar. Ouviam-me com atenção, mas não entendiam. Brincaram, zombaram. Fazer aquela pixação... Pensavam que o mundo é a planície... Eu tive avô. Ele me deu o fogo. Tanto trabalho... Quem vai saber o que eu sei? O que sei morre, e meu fogo morre junto? Não sei. Meter em quem? Na velha – prefiro cu dos meninos. A velha comeu a carne da bunda da filha! Hoje ainda. Disse que estava com fome. Quando os lobos voltarem, entrego a velha. Duro mais uns dias. Gosto de viver. O dia é bonito. A noite é muito longa. Já pedi pra Deusa acabar com a noite. Pra quê? Respondeu que os lobos e leões lhe pediram pra acabar com o dia. Então acho que faz a média. Sair, ir embora, voltar a vagar como os antigos – a gente não resiste mais. O primeiro bicho, e mais um já era. Perdi meus guerreiros, perdi meus filhos, perdi minha tribo, invenção antiga do meu avô. Pau que ele tinha – igual ao meu. Não ligo de virar carne de abutre, porém, e o que sei? E o que meu avô sabia, pra onde vai? O fogo vai apagar. E eu ainda não entendi morrer. Perguntei pra Deusa o que é, me disse morra pra ver. Mas eu gosto de viver. Comer cordeirinho assado. Tinha um filho hábil pra caçar cordeiro. Trazia pra mim o primeiro pedaço. O primeiro, não, o depois da oferta. Gostava de escolher uma fêmea quando eu enchia a barriga, fornicar e dormir olhando meu fogo. No meu nicho. Trabalhar, não, nunca; caçar é humilhante pra minha classe. Eu penso. Eu sei. Eu rezo. Eu explico. Esse é o meu trabalho. Sei tudo, menos de morrer. O que aconteceu e o que acontecerá. O fogo diz tudo, quase tudo. Às vezes eu erro, digo que será esta noite (acho que eles estão voltando) e é depois, dias depois, dois ou três. Erro por pouco. Vejo: o que eu não sei não morre, porque não está em mim. Não tem problema. Mas, e o que sei? De que adianta saber que se parar de cheirar o vazio a gente se afoga, como dentro d’água? Explicar tudo pra uma das crianças, pra quê? Não sobrará ninguém. Sei quando a chuva vem, se dilata o inverno, pro que serve cada ser, pra aquilo que ele nasceu, se presta ou não. As plantas. Tem estúpido que come qualquer coisa que encontra e morre da barriga. Meus filhos me traziam a folha, o fruto: esse pode, esse não. Sei o segredo de fazer filhos. E curar. Curar o curável, é claro – rezar certo. E conheço os deuses, cada um, seus poderes, seus castigos – mas só amo a Deusa. Agora não, escolheu os lobos. E também ela não serve pra nada mais, estou no fim. Antes, não, não é bom brigar com deuses. Fazer a coisa fora da hora e do jeito. Por isso nunca matei a velha. Deusa me disse para não matar. Obedeço. Obedecia. Morrer apaga os olhos, isso eu sei. Então como ela quer que eu veja a morte? Morrer é dormir – mas em que corpo? O corpo apodrece, fede e derrete. Mas quando penso eu não tenho corpo. Onde está meu pensamento? Eu conheço o futuro. Mas só sei o futuro da vida, vivo, não sei o futuro da morte. Não gosto de morrer. Uma vez eu dormia com uma que já tinha morrido, na sombra escura eu não percebia. Falava com ela, não respondia. Diacho. Dia seguinte, que vi, não sei nem se tinha metido nela morta ou viva. Arre! Acordei abraçado com defunto. Orra, de repente a mulher não está ali no corpo dela, não obedece. Bem, ela não pensava, eu penso. Eu não morro. Senão o fogo apaga. Só se a morte levar o fogo. Bobagem. Mas se a carne vira osso, por que o pensamento não vira fogo? Bobagem. Um filho bom que eu tinha sabia pensar, eu sei, porque ele me contava. Poderia ter ensinado tudo pra ele. Virou o quê? Meu fogo que não, que não aumentou. Viro deus? Isso é o que pode ser. Pra meter na Deusa. Não entendo, entendo tudo, isso não entendo. E não quero morrer sem entender. Quando eu canto, minha voz vai pra onde? Porque ela se apaga no ar. Voa até ali adiante e some. Pedi pra uma mocinha sentada cantar sem parar e fui andando, andando, a voz dela foi sumindo, sumindo, pra onde? Morreu? Mas fui voltando, a voz baixinho, aumentando, até reaparecer igual. Então ela some, então ela volta. Fogo! Ninguém entende. Andei pra longe da fogueira. É a mesma coisa; a luz foi diminuindo até desaparecer na escuridão. Você vai longe, vê a fogueira pequenina, mas ela não ilumina. Quando volta, ela continua iluminando. Pensava que fosse por respeito a mim. Não; acontece com qualquer um, eu vi. Pra onde foi a luz? Some no vazio. O cheiro é igual. De longe não se sente. O vazio chupa tudo. Tudo vira azul. O som, o cheiro, a luz: azuis. E o pensamento, e eu? Azul. Não sei. Não consigo dormir. Tenho pouco tempo pra entender. Eles estão vindo, hoje ou amanhã. Eu sei. Os rapazes têm medo de ficar na vigia. Pus a velha. Pelo menos serve pra isso. Berrará, antes. Porque os lobos vêm vestidos de noite. Não dá pra ver sem lua. Quando eles derem o bote na velha, a gente acorda. Pra quê? Só pra acabar com alguns antes de morrer. É bom. Eu não, não perco tempo, nenhum eu mato, não sou de guerra, meu posto é outro. Observarei parado, do alto de minha pedra. Eles me respeitam, deixarão pro fim. Se eu quisesse, matava meia dúzia ou mais, de que adianta? Mata um vem dez, mata dez vem cem. A história está escrita, é fim. A tribo do meu avô. Antes dele, ele me contou, a tribo era pequena e vagava. Igual a muitas por aí – tudo comida ambulante de bicho. Ele encontrou esse buraco de pedra, com água abundante na frente e disse: ninguém viaja mais. Sábio: a tribo cresceu. Sempre que tinha visita de homens, a gente deixava entrar, na surdina, cercava e descia o pau. Resguardava as moças e crianças. Feneceram aqui dentro várias tribos que sequer sabiam falar. Não dava pra entender o que rosnavam. Mas mulher é bom no mundo todo – e sobrevinha a temporada de farra. Umas anunciavam uns costumes... Uns bons tempos. Meu avô me explicou que o mundo é distante e tem tipos diversos de gentes e bichos. Me contou o que é mãe. Disse que eu tinha tido uma. O velho sabia tudo, ia me ensinando devagarinho: que o filho sai do pinto do homem na fornicação. Que eu observasse que menina só ganha barriga depois que uns enfiam. Isso era segredo antigo; o filho sai na horinha do choque. Penso muito nisso; o que sai do pinto é a gosma doce, filho nenhum. Que sai pequenininho eu sei, porque depois cresce na barriga, nove ou dez luas. Mas não vejo nenhum menininho. Só se fosse antes, na horinha do choque, não na gosma mesma. No choque... parece que sai uma coisa forte de dentro, que depois sobrasse a gosma... Tem muita coisa na vida que a gente não vê como acaba nem começa. Exemplo, como o primeiro homem que nasceu, exemplo, como o fim do mundo depois do deserto. Eu não entendo por que não vejo o corpo de Deusa. O sol eu vejo, a lua, o raio, a chuva, a terra e o céu. Deusa fala comigo no pensamento ou quando eu durmo. Às vezes já vi, voando cabeluda com um bundão enorme. Meu avô dizia que ela tem rabo, mas não reparei. Não gosto do que não se vê, por isso não gosto da noite escura, como esta. Tudo escondido. Pensava que as coisas também sumiam no vazio, até a aurora. Invocado, saí com a brasa mínima para não clarear, na escuridão, queria descobrir o esconderijo. Os galhos viram galhas pra assustar, as árvores ficam gentes, tão pretas que iluminam sua volta. Vi que continua árvore, fui lá tocar, era, e as pedras também eram, e nada tinha desaparecido; eu tinha deixado antes um pau de propósito ali, e o pau continuava lá. Então esconderijo nenhum, somente um brilho de carvão nas coisas, no vazio. Só lobo cego pra preferir o avesso. Mas isso é modo de dizer, não tem carvão nenhum, não entendo; se o Sol dorme e não ilumina, a verdadeira coisa real some? Fogo meu. Tenho pouco tempo, por isso de tudo vou pensando hoje. Morrer sabendo seria alguma coisa. É o caso da sombra. Sou eu? Me mexo, ela também. Está grudada. Mas se dou uma cacetada na cabeça dela que é a minha, não sinto nada. Sombra é uma parte da gente que não se pega. Como o vento. Mas vento é vento e a sombra é uma coisa da coisa. Sol faz a sombra, reparei, o fogo também. Caralho, que o problema é o mesmo: pra onde vai a sombra no escuro? Vou morrer jovem... Então uma parte minha some no escuro. Morre um pouco? E quando eu durmo, morro um pouquinho? Muitas vezes eu viajo dormindo. Visito lugares que já fui ou não fui. Vôo, sei voar. Sei correr sem pôr os pés no chão. Mas sempre esqueço o fogo. Às vezes, roubaram meu fogo. Acordo suado, aflito, a boca colada de sede. E se eu não voltasse, se continuasse viajando, até o fim, depois dos mil invernos? É a morte. É isso. Mas quando eu durmo eu levo meu corpo, morto nenhum leva o seu. Chega! Não dá pra entender. Como se a sombra saísse, deixasse o corpo apodrecendo e viajasse por uma noite que nunca amanhece... Mas tem o dia, não adianta imaginar que não. Tudo sumir, apagar de vez, acabar a boa vida, será? e o meu pensamento, este mesmo que estou fazendo? Chega! Não consigo dormir. Meu pau está duro e não tem ninguém. Se eles não vierem hoje, de dia é que não. Quando me pegarem, rasgar tudo, quero estar bem vivo pra ver.




Velho


Não ando à toa, não
vago preciso e despreocupado
topando tantas brigas propriamente ditas
quanto tediosas intrigas de egos
peremptoriamente certos.

Acertam em mim
em si, em rouxinóis
tanto faz;
uns vivem pela guerra
outros morrem pela paz.

Por onde passo
milhares de objetos diretos
abatem pronomes pessoais;
se me acertam eu contra-ataco
com paradigmas paranormais.

Se em vão ou não
vou indo
vá tu.
Quem sobrevoa sobretudo lindo
é o urubu.
A Escola


Planície.1959.

(De onde eu venho?). Estou perdido, cansado, viajando por descampados sem fim. Os raros nativos que encontro nada esclarecem, ao contrário, conduzem-me ainda mais para esse ermo. Um garoto me assegura de que me aproximo de um povoado, mas não sabe o que é gasolina. O carro sofre com a estrada pedregosa e entrecortada por leitos secos. Daqui ele não passa – uma espécie de ponte feita de caixotes encaixados aos pares, sob a qual curiosamente não há vestígio de nenhum curso d’água que a justifique. Com certo desalento, desço do carro e ultrapasso a precária travessia para então concluir que se trata de uma ponte-porteira, pois uma sensação de aconchego ou uma frescura me dá a impressão de entrar em outro lugar... Mera impressão, a estrada segue idêntica, tão árida e esburacada quanto antes, porém... pareço divisar logo adiante, e me aproximo, um morro perfeitamente camuflado na paisagem, que se ergue interceptando o caminho. Não é alto, eleva-se como um enorme degrau em noventa graus, e sei que devo escalá-lo pelo simples fato da forma da estrada em perspectiva continuar no morro, incrustada, como se naturalmente o rumo prosseguisse na vertical sem que a altura impusesse obstáculo algum. Por este motivo não era percebido à distância – digo comigo. Com dificuldade alcanço o topo e sou recebido pelo vento e o verde brilhante de uma campina de folhas alongadas e finas, estendendo-se num vale a se perder de vista. Isso não é um arado, é um jardim! O sentido de ordem dessa natureza se confirma quando distingo uma insólita construção, num ponto que centraliza tudo à volta, para onde me dirijo.

Dou voltas e mais voltas em torno da excelência dessa arquitetura inconcebível, inconcebível sobretudo nesse fim de mundo. As pessoas do lugarejo não se importam comigo, apenas sorriem entre si como se compreendessem meu espanto. Sou eu, com meu jeito urbano, moderno e bem trajado, que deveria ser o alvo das atenções, mas não, aqui pareço um roceiro deslumbrado que caiu no centro de uma metrópole. Certa inibição me impede de entrar no prédio, ou antes, a premência da sede me desvia, ao pedir água para um rapaz sentado na porta de sua casa. O mulato chama e sua mulher aparece do escuro da sala com uma jarra e cumbuca. Depois das perguntas iniciais e trocas de gentilezas, ele me conta a história desse lugar.

"Dizem (e existe na Escola uma cratera destinada a isso) que seu Carmo partiu daqui ainda jovem, quando essa aldeia perdida estava prestes a perder-se até mesmo de si. Nunca fomos coisa alguma que merecesse um nome (mesmo hoje não o temos, mas por opção), os primeiros que aqui chegaram estavam à procura de diamantes no rio – e, pelo visto, nada acharam. Esboçou-se então uma aldeia longe de tudo, nesse vale esquecido por fazendeiros e autoridades – o planiço desértico que nos circunda ao mesmo tempo nos separa e protege do mundo. Graças a esse pequeno oásis de terra fértil e clima temperado, pudemos viver longos anos de lavouras e criações. Não, esse rio não dá peixe, só água; a nascente é aqui perto, mas não sei pra onde segue. Com a morte do primeiro e único padre, o povoado ficou à espera de um novo missionário que nunca apareceu. Sem outra opção, alguém se fazia padre e conduzia um ritual cada vez mais distante dos preceitos cristãos, uma vez que a memória dos cânones primitivos perdia-se pelas gerações. No fim do século dezenove, por influência notadamente indígena, um novo rito tomou curso, devotado ao chá de cogumelo. Esse sincretismo religioso que paradoxalmente unia restos de dogmas católicos com as características alucinógenas do chá acabou por engendrar um sistema moral supersticioso e fantasmagórico, responsável por uma crescente perda das referências básicas do tempo e consequente derrocada da pobre economia de subsistência. Calculo que isso se deu na década de vinte. Não posso afirmar se por resquícios do antigo mito do padre substituto ou, o que é mais provável, pela ansiedade coletiva que tomava conta de uma tribo caótica, o fato é que se disseminou a fé de que alguém um dia chegaria – um líder. E, quando maior era a miséria e a decadência – o povoado, então, reduzido a umas dezenas de moradores – um desconhecido – o velho Carmo – retornou para implantar o seu projeto que, apesar de intrinsecamente revolucionário, preservava alguns traços da singularidade da nossa cultura. Você verá.

"A fase inicial foi dividida em três etapas, que descrevo em ordem cronológica: primeiro construiu uma olaria, o que propiciou a reformulação da estrutura das casas, que passou a ser de alvenaria. Essa aquisição não tinha em si maior importância, destinava-se principalmente a gerar trabalho aos homens e a levantar a autoestima da comunidade que, sem perspectiva ante coisa alguma, viu seus casebres crescerem e tornarem-se sólidos, belos e duráveis – era um voto de confiança o que ele buscava. A segunda medida foi montar um engenho para a destilação da batata, cujo resultado foi amplamente aprovado numa festa de confraternização. Consolidada a adesão à nova bebida, alcoólica mas não alucinógena, proibiu o chá de cogumelo. A terceira e última etapa (na verdade, a razão de ser de tudo) foi dar início à obra da Escola, para a qual contou também com o ingresso de moradores vizinhos, convencidos por ele a mudarem-se para a nossa região.

"Você já viu a Escola por fora, com suas paredes de tijolos, exceção feita aos dois quartinhos de sapé – deve ter reparado. A forma é um dodecaedro perfeito. Em cada face há uma porta, portanto são doze entradas, um número cabalístico dos possíveis caminhos de uma vida. (Por ora, esqueça os quartos de sapé.) Dia chega que a gente sente nitidamente vontade de conhecer a Escola (raramente na infância, via de regra quando os jovens se cansam das brincadeiras da aldeia). O pretendente deve então correr em volta do prédio até a exaustão completa, e sob esse estado cambaleante dar ainda uma última volta, dessa vez olhando a direção das setas penduradas no alto dos batentes, que, sensíveis ao vento, apenas uma apontará perpendicularmente para o centro de uma porta: justamente aquela que será a sua entrada na Escola. É a porta do seu destino; por ela, e somente por ela, você penetrará todas as vezes. Desejar explorar seu interior por outra via de acesso é perder-se num emaranhado de caminhos estranhos e sem nexo. Esse ritual é de grande importância, por isso acompanhado de perto pelos mais velhos.

"Logo após ingressar no prédio, o caminho se bifurcará sucessivamente (mas não infinitamente), e o iniciante deverá conhecer intuitivamente as inúmeras opções, sem outra intenção que não seja a de travar um primeiro contato com o lugar. O uso da Escola nesse começo é sempre alegre e superficial, você ingressa por sua porta sem saber pra onde ir (a estrutura labiríntica não é feita para se perder, mas para se achar, portanto as indicações de saída são claras), segue uma ou outra ramificação que o levará casualmente a muitas crateras abertas do térreo e em especial ao coração da Escola – um grande salão central. Como? Crateras são salas de concentração, cada qual dedicada a um conteúdo específico. Chama-se cratera em razão de sua forma ovalada; você não imagina, o que se vê daqui de fora não é nada comparado à verdadeira dimensão que se oculta nos subterrâneos, onde a Escola se espalha numa rede de túneis orgânicos – daí a semelhança das crateras com órgãos do corpo humano. Muito bem – eu estava dizendo –, nessas primeiras crateras e nas galerias de interligações, e mesmo ainda nos corredores mais estreitos, o iniciante encontra muita gente que o auxilia, acompanha; trata-se aqui de uma etapa básica e comum a todos, em que predomina um espírito jovial, mas nada vulgar. É por isso que essas crateras são abertas, de livre acesso, não sendo necessário o uso de senhas, pois seus temas referem-se a princípios elementares e estruturais da vida, como relações de respeito e hierarquia, direitos e deveres sociais, significação do trabalho, do amor etc.; como também nos prepara para tudo o que concerne à vida prática, como arar a terra ou construir casas, poços, moinhos, artefatos domésticos; e apresenta as primeiras lições sobre a desarmonia, em particular na manifestação em doenças, crises do espírito, desejos, egocentrismo etc. Nesse período, os mais velhos aconselham a sair (entrar, nunca!) por todas as doze portas, a fim de que nos familiarizemos, mesmo que inversamente, com a trajetória dos outros, e assim desenvolver, desde logo, uma razoável compreensão dos tipos humanos. Essa fase tem importância relativa para cada indivíduo; há aqueles que dela quase prescindem, há os que nela permanecem por anos.

"Pois então, passado o fogo da curiosidade e a água da inocência, com a maturidade sobrevém o desejo de penetrar realmente nos meandros da Escola, o que significa se entregar para receber seu conhecimento físico e metafísico, sua sabedoria racional e transcendente. Assim sendo, o aluno deve, desde um ponto arbitrário da aldeia (que é pequena, delimitada pelo barranco de onde você apareceu e o rio que a circunscreve como uma ferradura), o aluno deve então contar exatamente o número de passos com que percorre o trajeto em direção ao centro da grande salão, onde se eleva a pilastra incrustada com milhares de senhas, uma para cada número de passos possível desde o extremo da divisa. Já lhe explico. Nesse marco de trinta e nove palmos – chamado pelos eruditos de axis mundi, e pelos meninos de cacetão (por ser orgânico e lembrar um falo) –, todo ele ornamentado por longas listas de senhas, a pessoa encontra a correspondência entre o número de seus passos com um código específico – justamente a senha. De posse desta, seu caminho pela Escola jamais será aleatório; o explorador deverá obedecer aos sinais numéricos e alfabéticos de sua senha e, através deles, seguir à direita, à esquerda, acima, abaixo, conforme as demarcações afixadas nas bifurcações, cujo fim será conduzi-lo a crateras específicas, onde poderá permanecer o tempo que lhe concernir, conforme a sua empatia com conteúdo oferecido. Esgotada a experiência, repete-se quantas vezes desejar o procedimento para aquisição de nova senha; muitas vezes no mesmo dia ou uma vez ao ano, isso varia demais. Andar nos subterrâneos sem ela, como já foi feito por uns abilolados, principalmente em épocas passadas, é se expor a um perigo quase fatal; existem centenas de túneis enlameados que desembocam em fossos suficientemente profundos para serem escalados, e garanto que ali não se enxerga nada – as passagens de luz e ventilação restringem-se às crateras e às demarcações de direção. Portanto, sem a ajuda de um transeunte esporádico que passe casualmente por perto e ouça seu pedido de socorro, o aventureiro não sai daquele fundo.

"Há quem acredite que a Escola seja infinita; não é, evidentemente, apesar de ser impossível conhecer sua totalidade. Veja: para isso seria preciso que se obtivessem as senhas de todas as crateras, o que exigiria que se falseasse o número de passos, algo inconcebível para nós e, de qualquer maneira, não haveria tempo o bastante numa vida para usufruir tal benefício (qualquer cratera, por menor que seja, possui um universo próprio). Nossa Escola vem sendo construída por muitas gerações, segundo os projetos deixados por seu Carmo. Ele foi, sem dúvida, o grande mentor de tudo, mas não daria cabo da empreitada sem a ajuda do filho Marco, o nosso Marquinho, que aqui chegou quando a obra estava bem avançada e seu pai já bastante debilitado – faleceu dias após sua aparição. Jeitão de moleque, simples, quieto, logo ganhou a estima de todos e o mesmo respeito e liderança antes dedicados ao pai. Tudo fora previsto pelos dois: o pai se adiantaria para iniciar e consolidar o projeto, enquanto o filho se dedicava, longe das atribulações da obra, ao estudo e definição exata dos conteúdos. Trouxe consigo, em não sei quantas carroças e carros de boi, enorme carga de objetos. (Faria ainda muitas viagens para completar o material da Escola.) Ninguém sabe onde os dois se formaram, nem quem financiou o projeto (eles não revelaram nada a respeito, diziam que isso não tinha relevância), por isso alguns estudiosos defendem a ideia de que os dois criaram tudo sozinhos, de suas cabeças ou, no máximo, com auxílio de livros comuns a qualquer biblioteca. Outros dão como certo que, além da genialidade inata, ambos teriam viajado o mundo em busca de experiência – a cratera do oceano, por exemplo, revela a intimidade de um navegante. Eu acho que não. Estou com a maioria que pensa que pai e filho cursaram escolas da Europa e Oriente – incluindo Índia, Japão e China –, estudaram em grandes bibliotecas, tiveram contato com místicos de toda sorte a fim de desenvolverem uma síntese particular que desse sentido à vida humana em sociedade. E o segredo por eles descoberto, ao menos seu vetor principal, não foi outro senão abolir do conhecimento todos os nomes próprios e o tempo histórico. Eliminaram com isso de uma só vez a competição, a vaidade e a ideia de evolução; qualquer conceito, razão, poesia, fé, conhecimento, música ou imagem têm ou não têm valor em si, e deverão ser apreendidos segundo a experiência pessoal direta. Conheço a fundo tudo isso porque na aldeia sou um dos poucos familiarizados justamente com os nomes e as datas, pois a mim foi dado encontrar a cratera das datas e nomes, e, como resultado, ter acesso à visão histórica tradicional – é de própria constituição a Escola dispor ao menos de uma cratera para conteúdos contrários à sua ideologia. Por essa razão, para mim não resta dúvida de que eles tenham absorvido muito do ensino clássico dos povos – com o objetivo de abdicá-lo. Sonhavam com um mecanismo pleno e autônomo que nos enraizasse na aldeia, levando às últimas consequências a noção de que um lugar contém todos os lugares e um tempo, todos os tempos. Mas é natural que os jovens, entre os quais já me incluí, sejam possuídos pelo desejo irracional, espero que você me entenda, de desconhecer o mundo – talvez o único conteúdo que escape à Escola. Por conta disso, sempre houve casos de desastrosas incursões aos arredores – com o tremendo choque cultural, raros sobrevivem ao terceiro dia. São tantas as razões, destaco apenas este detalhe: nunca manuseamos o dinheiro. (Deve haver uma cratera sobre trocas financeiras, mas ninguém a tirou.) Curiosamente, aqueles que retornam são tomados por várias doenças e confusões mentais, e passam um longo período de recuperação. Outros desaparecem por aí. Essas experiências nunca nos legaram nada de positivo exceto talvez, como contraponto, para reverenciarmos ainda mais os nossos patriarcas, pela habilidade com que nos esconderam e nos livraram de um mundo onde a experiência de viver é reduzida.

"Sim, eu ia lhe contar sobre a construção da Escola e me desviei. Já disse que as crateras abertas ficam no térreo e que as verdadeiras riquezas residem no subterrâneo, onde a Escola se estende até os limites da aldeia. A obra está no fim, duas equipes que ainda cavam irão se encontrar qualquer dia, fechando o derradeiro círculo. Grande parte da lentidão se deveu às regras impostas pela própria Escola; toda etapa de trabalho dependia de alguém, através de sua senha, se deparar inesperadamente, num beco sem saída, com uma intimação para continuar a escavação – um velho documento com diretrizes específicas. O escolhido assumia então o cargo de mestre-de-obras, e convocava uma turma de empregados especializados para ajudá-lo. Cumpria a sua tarefa até o dia em que simplesmente desistia, por exaustão ou desinteresse, deixando então aquele segmento à espera de outro mestre – e sua equipe era desfeita. Mas saiba que sempre foi uma glória para nosso povo cavar a Escola, mesmo que depois do camarada estruturar corredores e crateras, limpar, iluminar e deixar tudo pronto para receber o conteúdo que ele próprio, como último gesto, depositava cuidadosamente (sempre de acordo com as indicações do documento e sob a supervisão dos nossos dirigentes), enfim, depois de tanta presteza, sobreviesse a frustração de ter de abandonar o local sem esperança de um dia retornar – requereria a sorte de uma repetição de senha, o que é raro. Por isso, na verdade, trata-se de um trabalho feito para o outro, o que de resto faz parte do próprio espírito da Escola.

"No fim de um dia extenuante de trabalho ou estudo, quando sobre nós recai um cansaço gostoso, costumamos nos reunir ao pé das casas (como agora, com você) para relatar nossas descobertas. Esse orgulho passa de geração a geração, e todos aqui possuem um sentimento de deferência diante da grandeza da obra. Mas esta deferência, por parte de alguns, tem se esvaído num mero respeito formal. Isso porque, nos dias de hoje, pairam incertezas no ar, veja só: talvez pela eminente proximidade de sua conclusão, ou por qualquer mudança imperceptível nos costumes, vem crescendo uma impaciência entre os jovens que se arriscam cada vez mais em viagens desnecessárias, mesmo que a maioria retorne posteriormente. Como já falei, são aventuras de curta duração e repletas de confusões, porém, afora a preocupação individual, há sempre o perigo da exposição de nossa aldeia a curiosos, homens de poder e dinheiro, degradadores, gentes do mundo, afinal, que poriam tudo a perder em pouco tempo – nossa duração depende de ignorarem-nos. E também já existem casos de rapazes que recolhem raparigas nas redondezas, certamente inebriados pela beleza, o que fomenta um inevitável conflito com as nossas mulheres. E sabemos que os filhos dessas moças jamais serão criados de forma pura, segundo nossos valores, no que se anteveem futuras discriminações. Além dessas imigrantes, por sua vez, atraírem seus familiares... Tudo isso nos preocupa demais e nada podemos fazer, pois sabemos – a própria Escola nos ensina – ser inútil restringir o arbítrio das coisas, pois estas se darão de um jeito ou de outro. Forasteiros como você não nos incomodam; chegam aqui perdidos e sabemos fazê-los saírem ainda mais atônitos."

– Hora da bebida.

É a jovem esposa oferecendo um destilado numa bandeja, onde equilibra com graça uma moringa e três cumbucas. Estão acendendo os lampiões na aldeia. Não posso deixar de reparar na beleza dessa mulher, mulata forte, de pele brilhante, com um sorriso permanente e contido, quase malicioso, coberta apenas por um vestido largo – pano outrora branco, agora desbotado. Tenho certeza de que não veste nada por baixo, e nela fico absorto, distraído, enquanto o rapaz me serve uma dose. A bebida é mesmo especial, leve e seca; parece se dar gole em nada.

– Queria conhecer a Escola – falo por falar, o outro nada responde. – Afinal, o que há dentro das crateras?

"Nenhuma se repete, nem mesmo as vazias (que nos convidam, evidentemente, à meditação ou simples repouso). Raramente ocorre de se topar com alguém dentro delas – se acontece, é a relação que deve ser observada, em si ou em função do tema ali proposto. Em sua maioria, as crateras se caracterizam por ensinamentos específicos ou meras curiosidades aparentemente sem propósito: podem conter somente uma flauta, um livro ou uma estante cheia de livros (sempre manuscritos, sem autores nem datas); o mapa de um país anônimo, com detalhes, por exemplo, de sua rede de metrô; uma mesa com lápis e caderno; um professor de gramática (alguém que abdica de continuar a exploração da Escola e se atém à sua última senha – e nessa cratera simplesmente espera a chegada de um aluno); receitas culinárias, fórmulas para o tingimento do algodão; pequenas armas de guerra com manual de instrução etc. Eu venho me dedicando, nessa fase – e a sorte parece que me acompanha – a um gênero de crateras um tanto depreciado por meus amigos, em razão de sua insólita natureza: numa, um colchão o convida a deitar e a contemplar o céu através de um cano com três palmos de diâmetro o qual vasa um pé-direito baixo, o que para mim (assim interpreto) quer configurar a noção de um instante; noutra, espalham-se peças de um quebra-cabeça cuja imagem final (que parece de um corpo humano bastante deformado) é muito maior que o espaço interno da cratera, de modo que montamos um pedaço de cada vez; noutra ainda, cujo sentido nunca pude decifrar (e lá me deixei ficar bastante tempo), a sala é forrada com um tapete de veludo vermelho, as paredes se erguem como um cilindro, brancas, altas, até uma cúpula também branca, de onde desce imponente um lustre de cristal como fossem gotas sobre uma mesa redonda cujo tampo é um espelho convexo. A luz parece irradiar do espelho e não do lustre, e, não sei por qual efeito, os cristais refletidos projetam uma torre sem fim, e, o que mais me intriga, ao darmos uma volta em torno da mesa, em ponto algum do espaço o espelho nos reflete. Fico calculando o enorme esforço de Marquinhos para trazer esses objetos, não se sabe desde onde, e me pergunto: por quê? É fácil concluir que não haja sentido algum, mas não penso assim – certa vez, por exemplo, estive numa cratera onde dois manequins de plástico mal engendrados moviam-se pendurados obliquamente no ar, e do alto abria-se uma fenda estreita, por onde penetrava uma réstia de luz. Na minha derradeira incursão, quando já havia decidido não mais voltar, o foco da luz de um determinado dia e hora incidiu de tal forma nos bonecos que suas sombras cambiantes sobre a parede irregular perfaziam um espetáculo de posições sexuais para mim de todo inusitadas, além de incrivelmente sensuais.

"Há relatos de crateras imensas, com biblioteca completa, laboratório químico, fábrica de brinquedos, ateliês de pintura, observatório astronômico, e até de teatro para concertos ou peças, que não imagino quando seria inaugurado, tamanho o número de senhas coincidentes necessárias. Todas as crateras são nobres, mas é evidente que aquela onde se concentram os estudos e documentos da família Carmo, bem como o mapa completo da Escola com a relação e distribuição dos conteúdos, e onde, além do mais, jazem o pai e filho – bem, esse lugar se destaca, senão em importância, ao menos hierarquicamente. Aquele que é levado a descobri-la (sempre alguém de idade, não sei por quê – parece haver aí algum segredo) traz consigo o estandarte de nossa aldeia e será então aclamado como o novo dirigente, em substituição ao anterior que, nesse momento, passa a auxiliá-lo. Curioso observar que esses dirigentes, após conhecerem a fundo tal cratera, justo quando se lhes revela todo o segredo e, desse modo, sabedoria para andar livremente pela Escola sem a obrigação de senhas, sucede-lhes que raramente voltam a ela ou, quando muito, retornam apenas para resolver problemas de conservação e limpeza. E quando lhes indagam a respeito, respondem o mesmo bordão dos antecessores: que a Escola está em tudo e que tudo é Escola – como se ela somente espelhasse os caminhos e conhecimentos da vida, que se vertem em qualquer canto, a todo instante. Às vezes consigo me aproximar dessa ideia, como agora, aqui, falando com você, nesse pé de escada. Longe de mim comparar-me a esses dirigentes, mas sinto qualquer coisa especial entre nós, de uma intimidade que só se vivencia nos encontros casuais nas crateras...”

– Bebida?

É a mulher, cada vez mais graciosa, me servindo. Sinto-me inebriado com o relato, e o álcool eleva ainda mais o estado de êxtase e alegria. Não consigo desviar meu olhar do movimento saltitante do seu corpo, e o rapaz parece não se importar com isso. Agora ele tira a camisa que passa a servir de apoio, no degrau, para a sua cabeça passiva que contempla a noite. A moça entrou num quarto escuro e, por um momento, penso no absurdo de que possa estar me convidando a segui-la. Mas logo retorna trazendo um estojo de pele transparente, cheio de cosméticos coloridos, que despeja no chão ao lado do outro – e agora, senta-se junto a nós, abaixo de mim. O marido como que desperta, esperando já pela minha pergunta:

– O que é isso? – digo, reparando nos estranhos petrechos de cabinhos de bambu, cujas pontas parecem batons, de cores muito vivas mas gelatinosas.

E ele (será que fala baixo, ou sua voz está mais doce?): "esse material é rotineiro entre os jovens, e mesmo nós, casados, não deixamos de usá-los. Pra você entender, preciso lhe contar sobre os quartinhos de sapé. Diante deles abre-se uma clareira a céu aberto, onde se dispõem paralelamente, defronte de cada porta, dois bancos compridos. A tendência geral é de sentar meninos de um lado, meninas do outro – mas não há regra. Você deve ter em mente que essa edícula fica no quintal da Escola, a ela, pois, vinculada, mas em outra dimensão, sem senha, sem regra alguma; a qualquer momento, e com quem quiser, meninos e meninas sentam-se nos bancos. Com esse estojo, cada grupo decora os pintos e as vulvas dos interessados, antes da relação sexual. É determinante que o pinto se mantenha duro, para a plena definição do desenho – em geral, feito a lápis – e a vulva bem molhada, para que se dilua a tinta. Os desenhos masculinos tende ao geometrismo, ora recobrindo inteiro o membro, ora sua base, ora apenas a cabeça – cada estilo explicita um tipo de desejo. A decoração feminina costuma ser mais discreta: um dégradé nos lábios lembrando um arco-íris, e os pêlos tingidos com pigmentos variados. Depois de tudo pronto, o casal se recolhe num dos quartinhos recobertos de esteiras. O efeito é excitante; no momento da penetração as cores se fundem, gerando inicialmente um tom cinzento que, aos poucos, no vai e vem, adquire um matiz esbranquiçado, até atingir, junto ao gozo, uma transparência brilhante. Diz-se então, se não restarem vestígios de tinta, que tudo foi bem. Se o casal estiver unido já por uma intimidade particular, um prepara o outro nos bancos, e ninguém os incomoda. Mas, no cotidiano, nas bolinações despretensiosas, a praxe é meninos pintarem meninos e meninas pintarem meninas. E não é incomum que os meninos gozem ali mesmo, entre eles, no meio da brincadeira. Mas cuida-se de preservar a energia para a parceira escolhida no banco em frente, ou nas trocas de olhares pelas ruas da aldeia, ou nos encontros dentro das crateras (não se aconselha sexo no interior da Escola).”

– Você se excitou com a história, moço, estou só vendo! – a mulher ri maliciosa, enquanto prende o cabelo. O marido completa:

– Se quiser eu desenho no seu, me dê... – e se aproxima afável, sorrindo também – e eu não sei como permito essa liberdade. Ele começa a abrir os botões da braguilha do meu terno, a mulher se ajeita para melhor assistir à operação. Sinto-me solto, solto a ponto de pensar que a bebida tenha me possuído...

De repente me enrijeço, recuo, levanto, me aprumo, dizendo:

– Eu não sou daqui – ecoa no fundo da minha cabeça: de onde eu venho? –, não tenho esse costume.

Envergonhado – por deixar acontecer ou por impedir que acontecesse – não olho mais o rapaz. A moça troca sua vívida feição por outra de ligeira preocupação. Não estou em mim, meus gestos não têm consciência, eu e meu corpo somos dois e o segundo flutua de excitação e bebida.

Agarro a mão da mulher e a levo para um quarto escuro – disso ainda me recordo com exatidão. Mas não me lembro do quarto, muito pouco do sexo que fizemos, apenas que ela não oferecia resistência, e também de sua expressão condescendente, durante ou depois, como se me falasse que nada daquilo era necessário. Ao final, esgotado por tudo, deitado numa cama ou esteira, parece que vi seu corpo nu se erguendo, e talvez seu marido lhe dizendo na porta: "tudo bem?". Sei que dormi.

*
Só queria poder voltar mais uma vez àquele lugar e dizer ao rapaz, mas então carinhosamente, que de fato meu mundo é outro, que ali eu estava só de passagem, mas, se porventura lá vivesse, se eu fosse um deles, ele seria o meu escolhido, o meu namorado.

Trecho da peça "Todas": primeiro monólogo do imperador

Imperador, pensando: Ver cada uma. Todas! O ideal seria um esforço conjunto que associasse investigações em todo o mundo, em nome de uma grandiosa arguição que se pudesse chamar de exata, não só por atingir a totalidade das mulheres como pela diminuição da subjetividade de um só ponto de vista. Isso não tem cabimento, eu sei, mas será que não tenho o direito de examinar, no perímetro da minha terra, dentro de meu próprio país, nem mesmo aquelas que estão sob meus cuidados? Para então descobrir, despindo-se de estereótipos e maneirismos, a fórmula elementar da mulher em si, a eterna, a mesma, seja ela uma, seja ela uma série. Quem é, o que está contido lá dentro do limiar do seu corpo? Por que a beleza se divide entre todas, que uma expressa apenas um fragmento? Onde repousa a satisfação? Por que ao homem não basta uma, nem cem, nem mil das mais belas? É chegada a hora de alguém analisá-las como um todo, juntas, como uma coisa só; desmistificar a mulher, acabar com esse papo tacanho de mistério feminino. Não há mistério algum e sim desconhecimento. Esse conteúdo que chamamos mulher é analisado com paixão, e eu pergunto: pra que serve a ciência? Pra estudar passarinhos? Por que todos os fenômenos naturais são avaliados de forma racional, menos ela, justamente a responsável por tantos desvios, desvarios e desarmonias da vida humana? Alguém precisa juntar as peças e montar de vez esse quebra-cabeça, e esse alguém sou eu. Quero colhê-las, abraçá-las, selecioná-las em tipos, estudar suas variações – finitas, espero – até codificar uma essência comum, se ali houver (mas há de haver), para um dia enfim devolver a meu povo (ao mundo, que certamente acompanhará de perto minha experiência) a conclusão, a resposta a mais antiga das questões, razão de ser do tormento maior do homem em particular, mas também da própria mulher, de saber afinal o que são, o que querem, ou melhor, como querem!

Muitas já declararam seu amor por mim e eu mesmo, a meu modo, amei algumas. Mas por que uma? ou ainda, será por instinto ou tradição que escolhemos uma em meio a tantas? Oh Deus (se soubessem o quanto me custa), não sei nem formular a questão! Como dar início a uma pesquisa se não tenho claro nem a pergunta? Uma rosa é uma rosa – essa palavra compreende uma pequena variação reconhecível da espécie; um rio é um rio – óbvio em seu sentido, claro em suas metáforas. A natureza, a arte, as leis sociais, as tecnologias – tudo parece estar devidamente nomeado e organizado, dentro do movimento contínuo de transformação e desenvolvimento. O próprio sentido da vida (mesmo metafísico) não causa tamanha turbulência social, não afeta nem oprime tanto as pessoas – quem sabe pela evidência do inatingível, quem sabe simplesmente por ser uma abstração – do que a presença perturbadora de uma mera mulher. Ela está aqui, à nossa frente, é concreta demais, fala como o homem, toma água em copo de vidro, faz compras na mercearia, sua, espirra, caga – mas ninguém a entende. E por que ela não se explica? Porque – e é assim que resumem a questão – não é de sua natureza! Então, quem há de esclarecer? Aquele a quem interessa a solução, aquele que padece com as conseqüências: o homem. Para este não há sossego, e não por causa de si – não há nada mais evidente para o homem que seu próprio ser –, mas por tentar compreender e possuir a mulher. Qual seria o motivo para um pedaço de carne mole alterá-lo tanto? Há quem diga que esse abalo advém de resquícios de comportamentos instintivos de origem animal, portanto de natureza irracional e incontrolável. Como pode? Após milhares de anos, atingido tal avanço em todas as áreas do conhecimento, seríamos vítimas ainda, a ponto de adoecermos, enlouquecermos, assassinarmos, de um impulso animal? Não. Aprendemos a dominar a linguagem, e não é possível que não consigamos traduzir a mulher em palavras.

No decurso da história, civilizações as mais diversas concederam ao homem o direito de tomar conta de algumas, amá-las como bem entendesse, chegando muitas vezes até à prática das maiores arbitrariedades – seja como for, a carência primitiva permaneceu sempre inalterada. Para cada mulher que possuímos, milhares são deixadas de lado, justamente aquelas que desfilam pelas ruas, escolas, escritórios, quando não invadem nossas próprias casas, exibindo-se invariavelmente no limiar máximo de sedução – que a característica básica da fêmea é nos atiçar a todo momento, a troco de nada. Elas querem ser medidas, reparadas, desejadas, não lhes interessando as conseqüências de seus atos irresponsáveis. Não sei como não há lei contra isso; não se atenta para a maldade intrínseca dessa aparente inocência – o sadismo é aceito como inevitável. Provocam-nos com seus rebolados, com o cruzar de pernas, com o sorriso malicioso, cobrem-se com roupas e adereços que, por ocultarem exatamente aquilo que se deseja, realçam-no ainda mais. É claro que tiram proveito das convenções dos costumes, do que, de resto, somos todos cúmplices, nós, maridos autoritários que criamos as regras para tentar assegurar pelo menos uma: a nossa. Mas creio que a própria necessidade desesperada dessa garantia advém do pouco que se possui; se o homem tivesse livre acesso a todas, não haveria de lutar atarantado por uma. Essa barreira limitadora é determinante para a mesquinhez possessiva – não há como viver em paz ao mesmo tempo consigo e com os outros se o material é escasso. Mas quem são os responsáveis por esse estado de coisas? Os homens, as mulheres?

Não se trata de achar culpados, tudo isso começou junto às primeiras tentativas de convívio social – o que não significa que não se possa adotar outro rumo. (Quantos equívocos ancestrais da conduta humana vêm sendo esclarecidos e transformados ao longo do tempo?) Por isso, minha obra não é particular, egoísta, nem acredito em abuso do poder – apesar de ter consciência de que somente alguém com as minhas condições lograria os recursos materiais e humanos necessários para tal empreitada. Não a faço por mim, quero apenas ajudar o homem a livrar-se da angústia desse desejo obscuro. Quero encontrar o engano primordial, se possível detectar o momento do desvio, que deve ter ocorrido num dia qualquer, lá quando o primata resolveu abandonar sua vida solitária e organizar uma sociedade. Deve ter ocorrido então um lapso. O caminho bifurcou-se, e se tomou a vereda errada; havia uma esquina com uma placa apontando às direções uma e todas – mas o homem não sabia ler. Não, posso estar enganado; quem sabe o caminho esteja certo, e eu venha a concluir que as mulheres não passem de uma dúzia de tipos – e, sendo assim, pra que variar? –, ou que haja um ponto de saturação (qual a quantidade?), em que a própria diversidade torne-se repetitiva. Então meu trabalho apenas restituiria à humanidade, depois de percorrida a volta completa, a premissa popular de que uma mulher contém em si todas as outras, e que por isso – mas então, comprovadamente – nos é dado amar somente uma. Serveria pois como um atestado de que a vida, seja como for, está certa. Mas por que haveríamos de aceitar tal axioma (aliás, sem lógica alguma)? Por pura ignorância ou por limitação logística para a experimentação? Somente pelo pudor de submetê-las, todas, a uma análise integral? Eu quero demonstrar que o tabu feminino pode ser desmascarado, revelado e substituído por um princípio ativo e, justamente por isso, estabilizador, que traga paz para todos nós, homens e mulheres, assim como um dia a lei da gravidade trouxe ordem para o aparente absurdo do mundo das coisas.





Bico de pena (17,5x24,5)


23.11.10

Anais da Medicina


Esse caso é verídico, bastante comentado no início da década de setenta, época em que a virgindade ainda era um tabu. Um jovem bonitão, vinte e três anos, se engraça com sua querida prima, uma princesinha de dezesseis, e lá um dia não podem mais: a menina cede, mas pelo rabo (procedimento comum naqueles anos, como forma de contornar o problema). E então acontece o drama dos jovens, comédia para nós.

Os pais os pegam no flagra e a filha, em estado de choque, trava o ânus. Três vozes ecoam na sala: a mãe grita, o pai xinga e o desesperado rapaz berra solta, solta... Ato contínuo, o pai esbofeteia a filha emudecida e chuta o sobrinho, usando aquele típico linguajar: sem vergonha, cafajeste, canalha... Mas a garota está fora de órbita e não solta o negócio de jeito nenhum. Agora, a mãe agarra os cabelos da filha dizendo você arruinou minha vida... e o pai parte de porrada na cara do menino que grita vários ais, ao mesmo tempo pelas pancadas que recebe e a dor no pinto que tenta arrancar. Então, a hora e a vez da ameaça: seu filho da puta, vou contar até três, se você não tirar daí eu juro que corto essa porra fora, um... O desditoso, com os braços abertos, para o tio: não dá, tá doendo pra caralho, ela travou, não sai... Dois, três: Denise, segure bem a menina, vou dar um jeito nisso e é já! Agarrando-o pela cintura, puxa (ai, ai!), puxa, até o sobrinho lhe aplicar um violento safanão e enfrentá-lo com braveza de gente grande: porra, tio, não dá, calma aí, ela tem que soltar! A mãe quer desmaiar, mas um susto a recompõe de imediato: quem desmaia é a menina. O pai recua, a mãe prende o choro e fala o que o marido já via: a Sissinha desmaiou! Ele traga água, ela melhor sal, ele pegue água e sal, ela está branca, ele, medindo o pulso, está batendo – e o jovem aos prantos, com a cabeça nas costas da prima (ai...), e a garota de bunda pra cima e a cara estatelada no chão.

Não dá pra eu tirar... ai... o rapaz chorando, repete a frase como um bordão, ouvindo como resposta vários “canalha”. A menina abre os olhos esbugalhados, seu olhar está longe, virado, e só faz tombar de lado, levando consigo o cavaleiro para o chão. O pai se prostra na poltrona, nesse momento é ele quem emudece. A chorosa mãe muda de tática, e com voz adocicada fala com a filha, enquanto acaricia aquele frágil rosto molhado de suor: filhinha, relaxe, solte o Anselmo, isso não pode continuar assim, você errou, tudo bem, mas agora precisa relaxar, acabar com isso... Os olhos da jovenzinha parecem saltar. Filhinha, o susto já passou, solte o Anselmo, por favor..., e batendo delicadamente numa nádega relaxe aqui, filhinha, está prendendo... machucando o Anselmo... Que soluçando, acrescenta sem nenhuma psicologia: pô, Sissinha, pelo amor de Deus, me solta, eu não aguento mais, e sacoleja os flancos da prima, buscando despertá-la para a realidade. O pai, afundado na poltrona, olha pra uma diagonal. De repente, o drama se complica: a menina inicia uma convulsão, babando, tremendo e revirando os olhos. Nelson, nossa filha...! O marido desperta. – O que é que eu faço?– Pegue a língua! – Precisamos ir para o hospital. Deus misericordioso! – Chame uma ambulância. – É melhor a gente levar, pra não chamar a atenção. – Vamos, rápido. Então, o jovem: e o que é que eu faço? – Canalha, quando isso acabar a gente conversa. – Nelson, rápido! – Ponha uma blusa nela. E você, vista isso, rápido. Precisamos de um lençol, rápido! Suplica novamente o infeliz: mas o que que eu faço, meu Deus? O pai: venha, carregue a Sissinha. A mãe chega com o pano e enrola o casal. Não dá pra ficar em pé com ela! O tio: dá, sua besta, dá sim. Para Anselmo conseguir andar, a menina agonizante tomba a cabeça para frente, as pernas ficam suspensas e seguras por ele o que, enrolados ao lençol que a mãe mantém fechado com as mãos, faz do conjunto um pequeno bumba-meu-boi. Bem que queriam ter a sorte de não serem vistos por ninguém ao saírem no jardim, mas não era o dia da família; atraídos, é certo, pelos berros, cortinas e portas entreabrem-se furtivamente, um grupo de colegas da menina disfarçam sentados na calçada e a vizinha de frente, na janela: dona Denise, algum problema? – Minha filha está passando mal. Os meninos esticam os pescoços, enquanto daquela janela: o que ela tem? O casal atrelado entra aos tropeços no carro, o pai já dentro, enquanto a mãe responde: convulsão, estamos indo pro hospital. Obrigada. Mas a família não pode ocultar a bizarra imagem da garota no colo do namorado, cobertos pelo pano branco como se passassem frio, quem sabe...

Muita coisa estava por vir, e ainda pior. A mãe se recusa a entrar sem o marido no hospital, quando este tenta escapar dizendo que precisava estacionar o carro . Descem então em meio àquele entra-e-sai de um pronto-socorro, deixando catatônicas as pessoas que assistem à cena, e que só não riem descaradamente pelo aspecto cadavérico estampado nas feições da menina. Mas o zunzunzum se espalha até a antessala da enfermaria. A pobre família nota uma falsa movimentação entre enfermeiros, funcionários e pacientes, que vão e voltam sem clara justificativa. Desnecessário dizer que o namorado geme, a mulher chora e o esposo olha fixo pra uma diagonal... Dentro do consultório, enfim, o pai retira abruptamente o lençol e exclama: doutor, dê um jeito nisso! Quando o médico percebe do que se trata, engole saliva tentando manter uma precária seriedade. O pai pontua que já fizeram de tudo, a mãe, que a filha teve convulsão, mas o médico não ouve; está à beira de um ataque de riso, pede licença, diz que buscará ajuda, e sai abruptamente da sala para liberar o acesso. A saleta de espera está repleta de abelhudos sarcásticos. Ele demora uma eternidade para uma família aflita, e traz consigo quatro médicos, argumentando que precisava de uma junta. A mãe, notando a hipocrisia, avança para cima do tal juntamento e fala com todas as letras: minha filha está morrendo! Somente então o doutor responsável se toca com o estado desfigurado da menina. Nesse mesmo instante, o gemedor grita para todo o hospital ouvir: aiii, preciso mijar!

Ordens para ir direto ao centro cirúrgico, cadeira de rodas, enfermeiras – uma pequena multidão acompanha o deslocamento e o caso se espalha feito vírus no hospital. A bexiga do comedor em vias de estourar, os médicos sem saber o que fazer. Quanto à menina, soro e doses maciças de calmante e relaxante muscular parecem o suficiente; o problema se resolveria em meia-hora, no máximo. Mas, que procedimento tomar em relação ao rapaz? Discutem – nessa altura, a junta médica crescia e se justificava. (A mãe chora, o pai olhando fixo para...) O caso do jovem se complica: passa a debater-se, em seguida a bater na própria prima, no que logo é contido pelos médicos que o amarram à cadeira. Sua dor não minimiza, a primeira opção é sedá-lo. Talvez precisem fazer uma inserção direta na bexiga, outro propõe um corte no reto da menina, mas estão inseguros: cirurgia num caso desse, por conta de alguns minutos... Um médico cochicha ao jovem: não dá pra fazer aí dentro? O paciente responde em outro tom, nada discreto: não dá, caralho, não sai! Retiram os pais do quarto, porém estes logo retornam, ao se depararem com um hospital inteiro, lá fora, de plantão. A discussão continua, um estagiário levanta este dilema: tanto na bexiga de um como no ânus da outra, o acesso ao local da cirurgia está complicado...

Um respeitável médico é convocado e aconselha com sabedoria: calma. Vamos abrir um pequeno orifício e introduzir uma sonda na bexiga do rapaz, depois é só esperar – as fezes da mocinha não têm urgência. Procedimento realizado, os dois agora repousam abraçadinhos numa cama especial. Os pais, sob efeito de sedativos, desabam no sofá do quarto. A noite simplesmente passa, com excesso de zelo dos enfermeiros, que fazem questão de examinar inúmeras vezes a intimidade do casal para saber se a menina havia desprendido.

Como estão? Soube que ainda não soltou... – Doutor, eu não sinto nada, será que necrosou? – Vamos ter que fazer uma chapa. A menina está bem, mantém os olhos fechados por recato e ainda não pronunciou palavra alguma. O pai saiu cedinho, apressadamente, descendo os oito andares pela escada, de cabeça baixa, evitando qualquer olhar; mas, para sua surpresa, na porta do hospital, enfrenta dois repórteres de rádios populares: não foi nada, não foi nada, minha filha teve uma convulsão, por favor, dão licença. A radiografia indica que o sangue ainda flui no membro. A mãe queria rezar na capela, mas é abordada por uma freira que lhe aconselha a se confessar; irritada, volta a se fechar no quarto, onde a humilhação não parece menor: um médico, por exemplo, batendo numa nádega da menina, diz: vamos relaxar, mocinha, sua mãe precisa ir embora... outro, para o jovem, você entrou pelo cano... outro, para a mãe, pelo menos, minha senhora, ela nunca mais fará isso... Contudo, quanto ao caso clínico em si, o astral melhora: o menino come com apetite, a menina belisca alguma coisa e pronuncia suas primeiras palavras: preciso ir ao banheiro. A mãe retruca: não dá. Tem que fazer na comadre ou pedir pra pôr a sonda de novo. O namorado: a gente dá um jeito, tia. A garota: é, dá...! O rapaz se levanta, levando a prima no colo e a mãe a tiracolo. Ao sair o xixi, o namorado cochicha alguma coisa no ouvido da prima que esboça um sorriso. A mãe de imediato repreende: sem-vergonha você, não, Sissinha? fica muda o tempo todo, mas pra pensar bobagem está tudo bem, não é? Você me paga!A menina baixa a cabeça, o namorado fez menção de enxugá-la, mas a mãe: ela sabe muito bem se limpar sozinha; o cu está preso mas as mãos estão livrinhas da silva! – Tia Denise...! – É isso mesmo, seu pilantra, e não me chame mais de tia. Quando meu irmão souber... vocês não têm ideia do que eu e o Nelson estamos passando... etc. etc. Os dois se encolhem na cama com aquela mulher falando sem parar, o que induz no casal um sono profundo. O dia segue na mesma balada; dessa vez é o menino quem quer ir ao banheiro fazer cocô, tia!, e lá vão os três, tia, dá licença, assim não posso, por favor! Encostam a porta, a menina se aconchega melhor em seu colo, enquanto o namorado passa a mão por baixo de sua blusa.

Era um tal de ir ao banheiro, dormir, comer e voltar ao banheiro, que a mulher põe a boca no trombone quando o marido retorna. Diz que estão sendo enganados, que eles fizeram isso, aquilo... Seu Nelson: Eles vão me pagar. Não vai ficar assim, não. Essa menina vai pro internato. Isso já nos custou os olhos da cara, e mais um dia de hospital... Mas teu irmão vai pagar a conta, ah, vai! – Por favor, tio, não conte pra ele... – A cidade inteira já sabe. E eu não sou seu tio, vagabundo. Vocês não imaginam a humilhação. A molecada passando trote... Aquela besta do seu pai vai pagar direitinho... – Meu irmão não tem dinheiro, você sabe disso, Nelson... – Você está defendendo aquele vagabundo? – Não é isso; só estou dizendo que meu irmão não tem nada com isso... – Como não? se tivesse educado... – Ele não tem culpa da irresponsabilidade desses jovens de hoje... – Eu te pago, tio... – Você nem tem onde cair morto... etc. O pai intempestivamente vai embora. O médico dá novo calmante para a mãe, pede paciência, que com tanto relaxante a menina soltaria a qualquer momento...

Se amanhã pela manhã esse negócio não sair, vamos abrir o buraco da menina, foi o medicão dando um ultimato no entardecer do dia seguinte, em que não houve maiores novidades; o casalzinho é que vem trocando mais e mais palavras, sempre aos sussurros, evitando aumentar a irritação da mãe. Dizendo-se exausta, nessa noite a mulher acompanha o marido, e ambos vão pernoitar em casa. Sua filha e o namorado, enfim, ficam a sós, ao menos na entressafra de médicos e enfermeiros. Sissizinha, os caras vão te abrir à força. – Não vão não. – Vão sim, e abraça a prima carinhosamente. A menina está um tanto serelepe: vamos no banheiro fazer xixi? – De novo? Pô, me dói meu corte... Contudo, quando alguém entra no quarto, os dois imediatamente fazem cara de abatidos.

E naquela madrugada: Selminho, não vê, seu bobo? ela remexia levemente os quadris. Ver o quê? – Que entra e sai... Anselmo entende: o quê? Tira abruptamente o lençol e dá de cara com seu pinto fora. Não o sente; está branco, amarrotado. Vige Maria...! – Agora pode entrar, que eu solto. – Como você conseguiu? – De repente... – Ele está amortecido. – Coitadinho... ela rindo de felicidade. Quis virar-se para o namorado que a repreende: não. Fica aí que se eles aparecem... E então, o que nós vamos fazer? Estamos fodidos... – Estávamos... – Ei! Ele está formigando. – Se chegar alguém você põe depressa. – Mas ele está mole! – Mas entra... Os jovens estão excitados com a nova situação, divertindo-se com o próprio medo. Selminho, e se a gente casar? – Sissinha, você é menor de... – E daí? a gente pede autorização. – Seu pai nunca... – Mas é um jeito de dar um jeito... senão a vergonha vai passar pra nós... Como é que eu vou encarar meus colegas? E mesmo você, já pensou? A gente se casa e vai morar em outro lugar... – Mas lindinha, eu não ganho um puto! – Tem que ganhar. E eu também... Trocam muitas idéias, é alta madrugada, há pouco movimento no hospital. Casar, fugir, enfrentar; o episódio une os dois numa solidariedade carinhosa e verdadeira. Apaixonam-se. Chega o momento dos beijos ardentes, pouco depois, o barulho da porta. A menina posta-se adequadamente e ele enterra a pica no ato. Fingem que despertam, entra um enfermeiro: hora da medicação – que a menina cospe sutilmente embaixo do travesseiro. Tudo bem com a sonda. O intruso sai, o jovem começa o movimento. A prima retribui empinando o quadril. A coisa esquenta: a cama range, a menina geme, o rapaz bufa, o lençol voa para o chão. Agora eles estão de quatro, e foda-se o mundo lá fora!




Pastel (18,5x28 cm)