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Nanquim (10,5x13 cm) |
Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.
Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.
De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.
Um comentário:
Zé,
Vai aqui um comentário deste teu texto.
Envolvi-me com ele instantaneamente. Fui acompanhando o que se dava com interesse, curiosa, quase sem fôlego (exagero linguístico que uso pra falar do meu envolvimento). De repente, depois de "desisti da procura", o encanto se perdeu, me senti traída pela solução prosaica, tanto objetivamente (hora de ir à farmácia....) como pela sensação que havia saído da ficção e havia sido lançada numa história comum. Foi estranho, quebrou o ritmo e o envolvimento. Me deu a impressão que você desistiu de terminar a história....
Separei o texto em dois, no exato momento que senti se dar a quebra.
O Bicho
Estava distraído na TV, quando senti uma fisgada na sola do pé, bem no meio do calcanhar. Tirei logo o sapato, a meia e vi, com repulsa e horror, um bicho penetrando no meu pé. Não havia tempo para pensar, precisava arrancá-lo imediatamente pela parte do seu corpo que ainda se esperneava fora. Puxava aquela coisa surpreendendo-me com o seu comprimento, parecendo mesmo, naquele longo instante, que não teria fim. O bicho saindo do meu pé assemelhava-se a uma centopeia que tivesse longas pernas como de grilos e asas transparentes como de moscas. Quando por fim o retirei, aquilo se debatia na minha mão com tal repugnância, que o larguei de pronto – e ele se rastejou em direção à lavanderia. O problema é que o buraco aberto no meu calcanhar ficou cheio de seus restos, patas, pedaços de asas, que eu ia limpando com algum sofrimento, pois inevitavelmente fisgava um pouco da minha carne. A natureza daquele bicho não era desconhecida, já ouvira falar a respeito dessa espécie de artrópodes que penetra rapidamente no corpo humano – mas não recordei o nome. Decidi então matá-lo, para evitar novos incidentes tanto comigo quanto com os outros. Contudo, não estava fácil encontrá-lo dentre às folhas e panos que se espalhavam pelo chão. Quando enfim o encurralei, faltou-me a ferramenta adequada, uma vassoura, um sapato qualquer, com o que pudesse exterminá-lo. Catei uma pá, e com ela acertei bem no meio do bicho, o que só aumentou duas vezes meu trabalho, pois agora eram duas metades correndo em direções opostas. Sem hesitar um instante, esmaguei a primeira delas com meu pé perfurado. O nojo causado pelo efeito sonoro e gosmento foi ainda maior que a dor, como se eu tivesse estourado uma lesma com epiderme de plástico. A outra metade escapou e desisti da procura.
Até porque já era hora de me cuidar, de pedir ajuda para alguém me levar a uma farmácia, pois agora, reexaminando a ferida, fiquei impressionado com os nacos de carne que dela se desprendiam, e bastante preocupado com uma possível infecção, especialmente por conta dos dejetos pretos que restavam incrustados. Percebi que o tratamento disso levaria tempo e que certamente iria levar muitos pontos.
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