Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


4.9.12

Pureza, Solidão 
 
 
O camelo pastava areia na beira do rio absorvido e me mantinha entretido com seu olho que se mexia enquanto eu flutuava em sua órbita.

Durante o dia eu vivia como rei do Saara no alto do sofá de napa de onde eu nada via além do camelo pastando.

Tinha medo do oco poço que havia atrás do meu trono de napa e se abria de madrugada quando o ar do reino parava e além disto vibrava com estranho magnetismo.

Então era grande o risco de tudo ser tragado pelo poço pois sabia que por mais que eu vigiasse o sono me pegaria, e de repente:

Eu era puxado pelos pés, agarrava-me à cama, parede, mesa, bufê, mas tudo ficava mole e torto e pouco a pouco chupado pelo poço que me queria atrás do sofá de napa.

Uma mulher chamada mãe, porém, aparecia (tudo voltava ao lugar), passava ao lado do menino vário e ralhava de soslaio:

Que mania de viver sempre tombado!

Eu não podia explicar o que ela não iria entender. 

* 

O medo veio muito depois junto com o tempo que também começou depois.

Que o nome dela era mãe, eu sabia, como o nome pai e nome irmãos

Mas só depois nome mãe virou a mãe

Nomes do mundo, o mundo

E o nome medo, o medo.

Quando conheci a alegria e a tristeza foi fácil dizer: lá não havia alegria.

Mas nunca fez falta porque sempre esteve ausente

Como eu não sentia medo porque nunca esteve ausente.

Hoje eu fumo charuto sem saber o que ganhei ou perdi no dia em que fomos embora daquela casa.
 
* 

Quando a carroça estava cheia e um homem me ajudava a subir

O cavalo me olhou com um olho que ria da minha cara

Do meu jeito de escalar as malas com a mão segurando o calção que insistia em cair.

Enfim me instalei no ponto mais alto para esperar aquilo que chamava mudança

Que viria a ser um vendaval de nomes

Nome para cada grão do meu deserto de areia.

O cavalo então moveu o ar que moveu o ar e o vento

Ardia meu rosto e varria-me por dentro.

Com medo da escuridão eu arregalava os olhos que logo cerrava para não ver a luz

Mas esbugalhei-os definitivamente no momento em que me invadia uma sensação

Coisa que era um sentimento, o primeiro sentimento que eu tinha

que foi simplesmente sentir que sentia.

Ao fim da travessia aprendi o ruim da vida

Na imagem que eu vi

Do meu pai e minha mãe rindo de mim. 

* 

O medo paira, gira, some, volta, está aqui, vejo, se quiser pego...

Aquela pessoa mãe antes já era mãe que hoje em dia para mim antes não era

E os irmãos que não eram, eram

E a formiga que não andava, andava

E o tempo que não existia, passava.

Hoje sei das coisas e dos nomes de tudo

Labirinto, relatividade, memória, perdão, culpa, Deus e a parte que me cabe nesse latifúndio.

Se hoje quando cheguei em casa foi difícil abrir a porta e entrar na sala vazia e subir as escadas com as pernas duras para escrever palavras sombrias

Sei que o medo é o mesmo que no meu Saara eu não sentia

Mas agora dói demais porque sei sentir.

Não tenho tendo mais o pai que tive e não tinha,

Pai acabou como a chuva termina

Mãe, como duração de um gosto de bala

Resta-me destilar a pureza dos nomes trás os montes de nadas.

Desço as escadas vejo minha filha dormindo e procuro amar as perguntas que me dividem:

Como recomeça? Como se livra? Como se anima? 

* 

O camelo vem

mansinho, aproxima-se

de um velho sozinho.

Seu olho agora é um olho egípcio

girando em órbita

em torno...

 (de quem?

de mim... de quem?)

de mim.

Para, vai

está aqui, acolá

ri

agora sumiu...

Vai voltar...

(em torno de quem?...)

não vai...

vai...

se es-

vai...
 
 
Parafina
 

2 comentários:

Anônimo disse...

lindo.... lindo..

Anônimo disse...

Muito bom!