Pureza, Solidão
O camelo pastava areia na beira do rio
absorvido e me mantinha entretido com seu olho que se mexia enquanto eu flutuava
em sua órbita.
Durante o dia eu vivia como rei do
Saara no alto do sofá de napa de onde eu nada via além do camelo pastando.
Tinha medo do oco poço que havia atrás
do meu trono de napa e se abria de madrugada quando o ar do reino parava e além
disto vibrava com estranho magnetismo.
Então era grande o risco de tudo ser
tragado pelo poço pois sabia que por mais que eu vigiasse o sono me pegaria, e
de repente:
Eu era puxado pelos pés, agarrava-me à
cama, parede, mesa, bufê, mas tudo ficava mole e torto e pouco a pouco chupado
pelo poço que me queria atrás do sofá de napa.
Uma mulher chamada mãe, porém, aparecia
(tudo voltava ao lugar), passava ao lado do menino vário e ralhava de soslaio:
– Que
mania de viver sempre tombado!
Eu não podia explicar o que ela não
iria entender.
*
O medo veio muito depois junto com o
tempo que também começou depois.
Que o nome dela era mãe, eu sabia, como
o nome pai e nome irmãos
Mas só depois nome mãe virou a mãe
Nomes do mundo, o mundo
E o nome medo, o medo.
Quando conheci a alegria e a tristeza foi
fácil dizer: lá não havia alegria.
Mas nunca fez falta porque sempre
esteve ausente
Como eu não sentia medo porque nunca
esteve ausente.
Hoje eu fumo charuto sem saber o que
ganhei ou perdi no dia em que fomos embora daquela casa.
*
Quando a carroça estava cheia e um
homem me ajudava a subir
O cavalo me olhou com um olho que ria
da minha cara
Do meu jeito de escalar as malas com a
mão segurando o calção que insistia em cair.
Enfim me instalei no ponto mais alto para
esperar aquilo que chamava mudança
Que viria a ser um vendaval de nomes
Nome para cada grão do meu deserto de
areia.
O cavalo então moveu o ar que moveu o
ar e o vento
Ardia meu rosto e varria-me por
dentro.
Com medo da escuridão eu arregalava os
olhos que logo cerrava para não ver a luz
Mas esbugalhei-os definitivamente no
momento em que me invadia uma sensação
Coisa que era um sentimento, o
primeiro sentimento que eu tinha
que foi simplesmente sentir que
sentia.
Ao fim da travessia aprendi o ruim da
vida
Na imagem que eu vi
Do meu pai e minha mãe rindo de mim.
*
O medo paira, gira, some, volta, está
aqui, vejo, se quiser pego...
Aquela pessoa mãe antes já era mãe que
hoje em dia para mim antes não era
E os irmãos que não eram, eram
E a formiga que não andava, andava
E o tempo que não existia, passava.
Hoje sei das coisas e dos nomes de
tudo
Labirinto, relatividade, memória,
perdão, culpa, Deus e a parte que me cabe nesse latifúndio.
Se hoje quando cheguei em casa foi
difícil abrir a porta e entrar na sala vazia e subir as escadas com as pernas
duras para escrever palavras sombrias
Sei que o medo é o mesmo que no meu
Saara eu não sentia
Mas agora dói demais porque sei
sentir.
Não tenho tendo mais o pai que tive e
não tinha,
Pai acabou como a chuva termina
Mãe, como duração de um gosto de bala
Resta-me destilar a pureza dos nomes
trás os montes de nadas.
Desço as escadas vejo minha filha
dormindo e procuro amar as perguntas que me dividem:
Como recomeça? Como se livra? Como se
anima?
*
O camelo vem
mansinho, aproxima-se
de um velho sozinho.
Seu olho agora é um olho egípcio
girando em órbita
em torno...
(de quem?
de mim... de quem?)
de mim.
Para, vai
está aqui, acolá
ri
agora sumiu...
Vai voltar...
(em torno de quem?...)
não vai...
vai...
se es-
vai...
+(9).JPG) |
Parafina |
2 comentários:
lindo.... lindo..
Muito bom!
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