Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


27.1.11

Cafezinho


Bobagem, já superei. Acabou bem. Ainda assim continuo me perguntando, o que aprendi com o episódio? A não hesitar? A não ser ansioso? E desde quando se aprende a não ser ansioso, a não hesitar? Que culpa tive eu? Enfim, perdi o casamento da minha afilhada, apenas isso. Conto como aconteceu:

A caminho, resolvi fazer uma boquinha na padaria, que casamento de igreja costuma enrolar. Cafezinho com espuma de leite e pão com manteiga na canoa. Simples, nada mais. Hora de pagar. Padaria cheia, mas por sorte as três caixas quase vazias; a primeira e segunda ficam frente a frente, a terceira, deslocada, sai para a outra rua. Minha velha ansiedade com filas; avaliei rapidamente a situação e me posicionei na caixa um, atrás de uma senhora com apenas três pacotes, que preferi a dois, pois ali a funcionária estava absorvida em alguma contabilidade. Meu grande erro, responsável por toda a epopeia porvir, se daria neste instante: parti intempestivo em direção à três – deixando pra trás a minha caixa com as compras daquela senhora quase concluídas –, meramente por avistar que a moça de lá já passava o cartão de um rapaz e, portanto, logo estaria livre. Acontece que encontrei a moça e o jovem em meio a uma paquera, pelo que pude depreender da troca de cochichos e sorrisos entre ambos. Não ficaria segurando vela, o cartão deu errado, claro, eles fizeram dar errado – não nasci ontem. Voltei de imediato, todavia as condições haviam mudado: a caixa dois atendia alguém (portanto a tal contabilidade era passageira) e, naquele lugar de onde eu nunca deveria ter saído, outro freguês se colocara. Escolhi a dois, de onde desapontado observei o rapaz da três partindo; a paquera era superficial e a vaga estava aberta. Uma tentação. Resolvi apostar, fui – a meio caminho, um casalzinho alegre antecipou-se e me fez retornar envergonhado, observando ao redor se alguém reparara e ria da minha hesitação. Não, ninguém. Mas claro que o ridículo não deixaria por menos, e já um outro ocupava meu lugar na dois. Ato contínuo, verifiquei a situação da caixa um, justo quando a funcionária, depois do último atendimento, levantava-se para dar a fatídica voltinha. Ainda me adiantei para perguntar se podia ainda atender, mas minha voz saiu fraca, presa, razão pela qual, imagino, não obtive resposta. Voltei à dois, atrás daquele alguém que começava a ser atendido e, dou graças, à frente de uma mulher feia que se aproximava manquitolando. Dou uma espiada na três, satisfeito por constatar que aquele casal tardava. Era melhor ficar quieto, é óbvio, parar numa fila de vez (nem faz muito tempo, pagávamos para o próprio balconista que levava o dinheiro em confiança para a máquina do patrão... Mas eram outras padarias!). Eu me distraí: de repente, a tal feia e certamente mal-educada avançou para a caixa um que deveria estar vazia caso a funcionariazinha não tivesse retornado. É por isso que sou partidário da fila única; se eu estava na frente, como alguém que chega depois se acha no direito de passar primeiro? E a mocinha da caixa bem que viu a maroteira, pois olhou de soslaio pra mim – porém, pareceu preferir a cara indignada de um homem que qualquer conflito com mulher feia. Fiquei na minha. Mas então, o que acontecia? Pelo visto, resolvi me fixar atrás do único cliente realmente emperrado; cartão sem crédito, ou aquele tal de sistema fora do ar. Tudo certo, era só acalmar. Pois bem, a feia espertinha saiu saltitante, pulei para a um, vaziazinha da silva. Era a minha vez. O quê? Nova voltinha daquela mocinha? Ela resolveu dar outra voltinha? Agora entoei a voz nitidamente, comprava briga: porra! na minha hora você fecha? Na minha cara? Você não para quieta? Conforme avançava em sua direção, a simplória, assustada, gaguejando algo sobre seu turno, dirigia-se para perto do segurança que, juntando-se ao gerente, vieram pôr ordem na casa; o primeiro somente cruzando os braços, o segundo exigindo-me calma, que eu me dirigisse às outras caixas, apontando-me à terceira que inclusive estava vazia, enquanto ponderava que a funcionária tinha razão, seu turno etc. Ele próprio gentilmente se ofereceu para passar minha comanda, mas dei as costas, debochado (meu segundo erro crasso), e parti para a três que, era evidente, num piscar de olhos havia se enchido. Chega. Porém, não daria o braço a torcer, jamais aceitaria ajuda de um gerente fabricado em relações públicas. Só queria sair. Estava preso, preso! Calorão no corpo, a pressão baixou, ou aumentou, nunca soube a diferença. Calma. A ansiedade é um problema que me acompanha desde sempre, deve ser enfrentada, podia ver, o erro era todo meu. Se tivesse ficado quieto... Calma. Mas havia o casamento, estava me atrasando... Foda-se a missa. O mais importante é se libertar. Falava pra mim: a liberdade é interna. Eu não estou preso! Vamos começar de novo. Melhor pedir outro café.

E saborear – isso sim, muito bem. O nervoso não sai, eu sabia, mas é preciso ter autocontrole. É claro que reparava que a padaria enchia ainda mais, as filas cresciam e as três caixas atuavam freneticamente. Mas calma: acabar o café. Acabei. Agora é só escolher uma fila e ficar. E não olhar pro lado. Pronto. E tem mais (porque preciso aprender): iria escolher a mais cheia. Ótimo. Caixa três. Quantos na frente? não interessava. Veja, meu caro, como uma fila pode ser boa. Era só abstrair. Mas, cacete, irrompia uma cólica! Sempre tenho dor de barriga quando fico nervoso. Não ia dar, banheiro já – justo quando a coisa andava bem. Tinha que ir. Fui. (Nem conto o que aconteceu.) Voltei com a decisão tomada: a mesma fila, fosse como fosse – e continuava intensa. Mesmo assim, fiquei. Contudo, ironicamente, de fato essa caixa empacou – não tratava-se de loucura minha; parece ter dado problema com todos os cartões, com a máquina, com a falta de troco, com tudo o que pudesse fazer uma fila não andar. Mas eu não levantava a cabeça. Não, não e não. Cabeça baixa, sem aflições, sem pensar em casamento, em nada. Em nada, nem que eu estava preso, nada. Somente o estômago a arder, pudera, com aquela quantidade de café. Vamos lá, devagarinho chegava a minha vez, vamos indo... E não é que chegou? Ou quase, o cara apenas arrumava as moedas no moedeiro, e eu já tinha nas mãos o dinheiro trocado! Mas qual! Uma idosa! Uma estúpida idosa! Não! Obrigada senhor... na minha idade tem gente que não aguenta... mas eu luto! Dou minhas caminhadinhas... Faço questão de vir aqui todos os dias pra comprar o pãozinho quentinho. Minha filha diz que etc. Eu moro ali na etc. Mocinha, hoje eu estou sem nenhum trocado...

Acreditem ou não: a velha terminou seu ritual no instante em que acabava a luz da padaria. Não estava acontecendo isso comigo. Agora tinha certeza de que não seria possível. É claro, brincadeira de estúpidos, a tal pegadinha de televisão. Certeza. Onde estavam as câmeras? Avistei ao alto, ali uma delas. Fiz sinais, falei oi, oi, oi, podem parar, já pesquei! Um tipo advogado me olhava torto. Estou sendo filmado! – e dei uns passos desajeitados de samba. Virei-me para uma dona atônita: eu não sou trouxa. Dá um sorrisinho pra câmera, ali, ó, estamos sendo filmados! A atônita se afastou. Tocou o celular, alguém agoniado do outro lado da linha, eu não, estava até bem demais: não, não vou chegar não... Porque não dá! Estou sendo filmado... Depois você me vê na TV! O gerente passou por mim, encarou-me severo e seguiu para a caixa dois. Aqui, por favor, ele chama os clientes – atenderia manualmente. Fila indiana. Todo mundo foi, eu também. Consegui o nono lugar, ótima colocação para o dia de hoje – ao menos deixei três atrás de mim. Tremia. Suava. Uma dama de verdade, serena, bem vestida, que devia estar observando meus desvarios, aproximou-se atenciosa: o senhor não quer se sentar um pouco? Tome um café, uma água... A luz logo volta... Não. Sentar, não, enfrentar, sim. Enlouquecer, não, controlar-me, sim. Meia-luz de gerador. Um por um. Sujeito queria nota, tudo bem, é seu direito. Beltrano comentou o caos, ora bolas, estava mesmo um caos. Meu filho ligou-me preocupado: não consegui, nem conseguirei. Está tudo bem. Sem explicações: não posso. Olha aí, chegando a minha vez novamente. Meu coração batia forte, podia não resistir se... Porque obviamente iria acontecer alguma coisa, disto não havia dúvida. O destino estava traçado: nunca sairia desta padaria! O casamento já era; com sorte ainda pegava a festa. Chegar lá, explicaria o quê? Que não consegui sair de uma padaria? Coração na boca, esperando o inesperado. Iria acontecer. Minha vez. Aconteceu.

Assalto. Cinco mascarados com armas pesadas. Piada sem graça. Acho que desmaiei, pois me recobrei no momento em que era amparado por dois homens, em direção aos fundos. Os caras recolheram relógios, celulares e carteira de todos. Menos de mim; pularam-me, esqueceram-me – porém, ainda atordoado, nem notei. Os fatos se precipitaram a minha volta, não assimilei gravidade alguma. A polícia cercou, corre-corre, tiroteio e um cadáver na calçada. Encerrada a confusão, um capitão entrou no recinto com a frase mais evidente dessa história: ninguém sai da padaria! Eu não entendi por que minha boca articulou: pode me prender, eu estou por trás de tudo isso... anda... está esperando o quê? Era um delírio, é claro, mas hoje me parece que havia uma perspicácia por trás do repente; eu ali intuí que ser preso significaria escapar do lugar. Mas, na verdade, a minha reação tinha a inocência de um doido. Soube depois que um dos bandidos estaria imiscuído entre nós. O gerente nervoso (perdeu a pose de treinamento) comentou com o oficial que eu era de fato suspeito, que já vinha arrumando confusão, que zanzava havia tempo pra lá e pra cá, e escutara também uma estranha conversa no celular, em que eu dizia algo como tem câmeras, vai aparecer na televisão... Três ou quatro se exaltaram ao constatarem que eu fora o único preservado do roubo. Uma das mocinhas horrorosas das caixas também tinha ouvido de mim, em outra ligação, algo como não posso falar, agora não... Intercedi: pois então: me levem! O que estão esperando...?

Desses detalhes recordou mais tarde o delegado, ao se desculpar com meu filho pela detenção, depois do mal-entendido ter se esclarecido e eu recobrado a razão – se for adequada a palavra razão, tendo em vista os ataques de beijos e abraços que desferi em vários espantados investigadores que passavam à minha frente na delegacia, alvoroçado como estava com a minha libertação.




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