Adans
Adans atravessava o deserto em seu cavalo. Quando o sol bateu a pino, sentiu que havia se perdido. Homem do oeste acostumado às desventuras, bebeu o que restava no cantil e seguiu impassível. Anoiteceu, o frio castigou. Amanheceu, seu cavalo desistiu e arriou. Aprumou o chapéu e partiu em direção à longínqua montanha. No fim da tarde, as pernas cederam e ele desabou num sono profundo. Sonhou que seu chapéu esquentava a sua cabeça e ele não conseguia arrancá-lo. Sonhou que era criança e não tinha força para fechar o cinto. Acordou no começo da noite chupando o próprio suor de sede. Desandou a correr desatinado no meio da escuridão. Depois se esqueceu. O dia estava claro quando abriu os olhos e viu, rente ao chão, nesta ordem: as esporas, as botas, a calça de couro duro e o homem – um homem forte, cego e sujo. Esqueceu-se novamente.
Despertou dentro de um paiol, com uma chicotada nas costas. O homem ordenou que pegasse água no poço e enchesse a moringa. Diante daquela figura, pensava continuar sonhando. Exausto, a fala não saía. Nova chicotada lançou-o pra fora num salto. A luz do sol, bruta, cegava. Nada entendia, não tinha condições de entender coisa alguma. Aos poucos focou o poço, enquanto uma sombra atravessava o pátio com passos firmes, indo se acomodar numa cadeira da varanda. Adans arrumou forças pra içar um balde d'água, mergulhou sua cabeça e bebeu como um boi. Soltou a corda de novo, recolheu outro, que despejou em seu corpo num alívio. O terceiro, levou à presença do homem. Este escarrou em sua cara e lhe aplicou chicotadas até ele desfalecer.
Quando se recuperou, estava novamente no paiol. Saiu cambaleando atrás daquele que permanecia sentado na varanda. Queria falar, ia perguntar, quando o outro se adiantou dizendo que nunca tocasse na água sem seu consentimento. Em seguida, jogou em sua direção um rabo de cobra assada. Adans se abaixou, catou e devorou a carne. O homem mandou que desse água aos porcos. Depois da tarefa, em algum momento e lugar, caiu e dormiu.
No dia seguinte, aproximou-se timidamente do cego que engraxava a sela do cavalo. Sentindo-se melhor, mas ainda lento com as palavras, balbuciou qualquer coisa que interrogava onde estava, logo emendando que era gente rica e importante de Mour Smith. O sem-olhos o encarava. Continuou gaguejando que sua pessoa valeria uma boa recompensa, e adiantou, numa tímida ameaça, que, cedo ou tarde, sua família viria resgatá-lo. Desde o peito do outro, todo carapaça de tiras de couro, soou uma gargalhada ao cabo da qual ecoou um silvo, depois calou-se. Apontou com o queixo para uma bosta de animal; com voz dócil, pediu para que comesse. Adans paralisou. Repetiu uma vez mais, olhando vazio para o céu. Adans pegou a bosta e comeu.
De manhã, cuidava do enorme jardim de cactos que se estendia por um atenuado declive logo adiante do chiqueiro; à tarde tratava dos porcos e penteava os cavalos; nos intervalos, cavava poços que invariavelmente davam em nada. Sob qualquer pretexto, apanhava. No começo da noite, ganhava água e restos de carne.
Mesmo sentindo-se continuamente debilitado, conseguia agora concatenar algum pensamento. Queria entender como um homem cego podia andar com tanta desenvoltura, conhecer os caminhos e saber de tudo o que se passava, a ponto de controlá-lo inteiramente. Mas logo sua mente obnubilava e se confundia em dimensões oníricas, num estado de constantes sobressaltos ante o terror dos sofrimentos físicos.
Na primeira tentativa de fuga, o cavalo empinou ao assobio do homem que o deixou dois dias sem água. Na segunda, caminhou um dia inteiro na direção do sol poente, levantou a cabeça e deu de frente com o outro que o trouxe de volta arrastado pelo animal. Na derradeira, partiu de madrugada sem rumo e andou até o dia clarear; quando a luz tingiu a areia, distinguiu o corpo ereto de uma serpente; virou-se, e outra lhe apontava; para onde quer que se voltasse, serpentes o cercavam. Às suas costas, o dono do cavalo.
Desta vez o homem o encarapitou na garupa. De volta ao sítio, fez sinal para que ele entrasse na desconhecida casa, outro para que subisse ao sótão. Lá, Adans avistou as quatro direções do deserto através de quatro amplas janelas. Aquela voz fina e rouca ordenou-lhe que afrouxasse o cinto e deitasse de bruços na esteira. E assim o cativo o fez. Tirou-lhe lentamente os trapos, um a um, passou o grosso da pele das mãos naquele corpo de cima para baixo e abriu caminho entre suas pernas. Adans sentiu a saliva, o dedo, o pau e sobretudo o cheiro do cara. Ao final, ficou ali estendido, enquanto o outro saiu a cavalgar.
As coisas então se acertaram de outra forma. Adans fazia seu trabalho diário com diligência, podia beber à vontade e alimentava-se regularmente. O patrão parecia alheio, reservado, e com frequência desaparecia dois ou três dias sem que o servo soubesse se viajava ou apenas recolhia-se em casa – coisa que, de resto, não lhe importava, entretido deveras com seu jardim de cactos, que se expandia numa ordem minuciosa que a cada estação se tornava mais elaborada.
Como Adans havia sumido, o homem foi procurá-lo. Já não tinha a mesma compleição de outrora, o tempo o fez mais lento e arqueado. O cavalo estancou a certa altura do jardim, avisando que não podia prosseguir. O cavaleiro arriou e seguiu a pé por entre alamedas que não reconhecia mais – cactos imensos batiam-lhe à face e feriam seus braços. Cheio de ódio, acelerou os passos, o que só multiplicou tropeços e arranhões. Pressentindo a traição, resolveu retornar, mas uma grande touceira espinhosa tombou no exato momento, impedindo sua saída. Aí foi um berro, e o deserto comoveu-se: uma ventania, poeiras, voos de aves rasantes, cavalos relinchando em disparada, porcos rebentando cercas... Cercado, a besta enfurecida escalou como pôde o cacto caído, para então precipitar-se do outro lado no fundo de um poço seco. Em cima, Adans agachado jogando aos pouquinhos a areia.
A refrega acabou. Passou soberbo entre os animais cabisbaixos, entrou na casa, subiu ao sótão e descansou em paz. De lá, no inverno, quando o dia amanhece, ele vê, ou imagina, a silhueta azulada da montanha onde nasceu.
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Guache e nanquim (22x27,5 cm) |