Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


22.11.12


Resposta         (segunda versão)
 
 
Quero sentir o sabor da pinga
que um cara me serviu em Caratinga
"é pura, de cabeça, envelhecida etc."
de fato, nunca bebi uma dessa.
Trouxe um litro pra São Paulo
mas aqui a pinga tinha gosto de álcool
o que me deixou surpreso, ou quase
pois logo entendi a metamorfose:
este sabor é de dia paulista
este sabor é de rotina
o gosto mudou porque a pinga
sente a falta de Minas
porque até a pinga é viva
e chegar numa cidade cheia de conhaque
whisky, vodca e vinho importados
não é fácil para um pobre destilado.
 
Isso posto, doravante
não quero saber de nada que fuja à ordem da natureza
daquilo que nela é fugaz ou permanente
que no ser fugaz me ensina a seguir
e no ser permanente, o essencial.
Digo isso de um modo geral para que se entenda
porque não quero nada com o novo
a ideia do novo me aborrece demais.
O que escrevo é e sempre será
banal, comum, reconhecível
porque me esforço por me aproximar
por me assemelhar
por amar as coisas à minha volta
e com elas me distrair e por elas me entregar
a um movimento casual e religioso
- como encanar com uma folha de quaresmeira
que hoje encontrei junto ao telefone da delegacia
e que se parecia com outra folha
que fotografei ali mesmo outro dia.
Perguntei: meu Deus
aquela era verde com manchas vermelhas
esta, vermelha com manchas verdes;
será que o tempo transformou a primeira
ou terá caído uma outra no mesmo lugar?
Me importa esta diferença
mas a verdade mesma, o que importa?
 
Preciso ver as marcas do tempo nas coisas
(não seria isso a beleza simplesmente?)
então eu saio nas ruas e fico contente
quando observo o paradoxo das transformações
e as confusões do homem em nomear a matéria alterada;
quando a casa é ruína?
quando a folha é sujeira?
quando a menina é mulher?
(Minha mulher não tem idade definida
e me encanto com sua ambiguidade
de beleza de jovem madura
de inocência de velha menina.)
(Isso me faz pensar em mim mesmo:
onde estou? a que ponto do fim?
a que distância do começo?)
 
Escrever vale mais que o escrito
eu gosto de usar muitas palavras
porque não sei definir aquele homem-menino
esperando o caminhão vir buscar sua barraca de laranja.
Olhe, antes, é preciso que eu diga:
não gosto de poesia
nunca tive paciência com abstrações poéticas
nem com arte refinada de espécie alguma;
para mim, a poesia simplesmente vaga
como alma penada em busca de um corpo
e naquele dia encarnou naquele garoto.
Não que ele fosse puro, belo, sábio
-- na verdade, nem vi sua cara
se era japonês, se estava feliz...
Era poesia e só
e na hora não notei
– na hora eu parecia um aloprado caçador de formas poéticas
procurando o melhor ângulo para fotografar
uma uva solta no asfalto –
(mas agora vejo tão bem)
aquele menino-homem
sozinho, domingo, três da tarde, rua deserta
sentado na sarjeta esperando o caminhão
com o corpo inclinado tocando o chão com os dedos
como se tivesse encontrado algo ainda menor que a minha uva...
e nem precisasse fotografar...
 
É por isso que eu digo:
se a ideia do transitório está na moda, foda-se
porque com ela aprendi tudo o que sei
sobre seu fio ilusório é que procuro equilibrar-me,
entre um crepúsculo subindo do oco da terra
e uma alvorada, sempre à frente, caindo do céu.
Por isso o passarinho continua lindo
e a morte, desfilando ao leu como dama da noite
e a vida, como a puta do dia
e Deus em cima da pinta me dizendo:
ora você pensa que de você Eu quero muito
ora que quero pouco
mas a medida é menos que seu muito
e mais que seu pouco.
(Estas palavras não me enganam
estão cheias de orgulho e vaidade.
Como quando ouço dizer
que o homem é um grão de areia
dito com a arrogância do mármore.)
 
Poeira. Canta o passarinho já.
Pegue seu caso: você escolheu sua mulher
porque diferente das outras
mas quando a conheceu de perto era igual.
Se passou desse ponto e mergulhou mais fundo
encontrou de novo a diferença e tocou o essencial.
Se penetrar ainda mais em seu espírito
poderá se deparar com nova semelhança
num lugar e tempo
que são todos os lugares e todos o tempos
iguais.
Verá que a eternidade está a seu lado
na sua mulher, nas coisas, em tudo.
Quem sou eu pra dizer isso?
De que serve saber? E o que me importa?
Só me importo com isso
e esta é a minha resposta.
 
 
 
 
 

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