Nessa página de vidro pretendo simplesmente fazer caber a minha vida. Talvez falte, talvez sobre espaço, conforme o tamanho da vida em questão. É claro, estou chamando de vida o restrito departamento do trabalho. Mas a palavra cabe, se o trabalho tiver sido realizado com profundo amor. Chamamos um filho, algumas vezes, de minha vida. Talvez a produção artística tenha uma dimensão semelhante, por pobre que seja; a obra nasce de um estreito relacionamento com um Outro que reside dentro de nós, e é grande o esforço de gestação. Se o fruto não servir pra nada, a culpa não é dele, nem do autor, nem do Outro; foi com amor e esforço também que a natureza criou alguns homens, vermes e cascalhos, que deixariam perplexo quem buscasse neles um sentido de existência.

Dentre as qualidades dessa página de vidro, destaco sua transparência. A luz aqui pode entrar e sair, ser vista de frente – por mim – ou por trás – onde estão vocês. No salão informal desse espelho vazado, todos convivem de livre e espontânea vontade. Um trabalho apreciado com tal intimidade e por tantos lados se aproxima de sua razão de ser.

A página inicial não trará novidades da semana, como costuma acontecer nos verdadeiros blogs, mas conteúdos que semanalmente espero dispor em destaque, retirados dos livros e desenhos organizados no interior do blog. Poucos gostam de ler tantos contos ou poemas ou peças, ou ver tantas imagens; nessa página primeira, a maioria dos visitantes poderá ter um panorama do meu trabalho – e logo desistir, se for o caso. Portanto, somente nas páginas internas se encontrará a totalidade daquilo que quero expor.

De resto, o blog se explica por si mesmo. Vocês encontrarão nesses primeiros meses setores incompletos, por conta da cansativa revisão de todo o material, da produção das fotos de esculturas e baixo-relevos e pelas próprias dificuldades técnicas dessa mídia, tão comum às pessoas, mas estranha a mim.


29.3.12

Parafina (9x9x23,5 cm) (detalhe)

28.3.12


Bico de pena (17,5x24,5 cm)


Bico de pena e pastel (17,5x24,5 cm)

13.3.12


Bico de pena (24x31 cm)

7.3.12

Três Cascas


Poesia não muda de tema
sempre o mesmo mar e o pequeno grão de areia
e o céu o sol o vento e o rio que passa
e a flor efêmera e a lua cíclica,
metáforas que expressam mais a retórica
que uma experiência individual contemplativa.

E a natureza é tão vasta e vertiginosa
que nesse pedaço de praia velha
encontro três pequenas obras
que hoje me parecem mais prodigiosas
que o próprio mar:
a casca do coco, a casca do amendoim e a casca da laranja.

Porque o grão de areia e o mar são mais poéticos?
Talvez um grão nos fale da unidade ínfima
e o mar, de um íntimo infinito
– grandezas com que se mede a vaidade do homem –
e as cascas não inspirem metáforas nobres
por serem uma classe de natureza pobre
meras embalagens
como se o coco sem água
o amendoim sem amendoim
e a laranja sem suco
perdessem a razão de existir
e até mesmo sua condição natural.

Ninguém quer a beleza
a graça, a leveza, a ordem, o movimento
dessas cascas
(penso que se caminha pela praia
com as pernas
ou com a cabeça
ou com os olhos).
Ninguém dá valor aos ocos.

*

O mar recua, a casca do coco dá duas, três voltas
e para, chique
no meio do tapete brilhante
como uma escultura moderna
disposta no chão elegante de uma galeria.
Um coco se difere do coco
pelas arestas hexagonais com que foi lapidado
abstrato
mas um abstrato com significado
pois no topo abre-se um olho caolho
cujo olhar cego para o mundo
chupa a mim, a praia e o mundo todo
e tudo cabe em seu buraco negro
mais negro ainda pela intensidade do sol.

Adiante encontro pequenos sarcófagos
quase soterrados na areia
e com pincel de arqueólogo
limpo esse sítio mais mundano que histórico
até recuperar todo o grupo.
Reparo que os amendoins mantêm entre si uma relação proporcional
(são sempre um, dois, três ou quatro amendoins)
e suas cascas assim espalhadas, contíguas
sugerem a existência de um código
um possível alfabeto oracular;
lançadas na areia pelo gesto do homem
transmudadas em seguida pelo gesto do mar
restando só um contratempo de ondas
para se decifrar.

Finalmente, no ocaso da marola
lá vem a desinibida casca da laranja
girando em si mesma como uma embarcação futurista
até se encalhar a meus pés
com o glamour de uma caravela.
Pode ser que seja só bela
essa circunferência perfeita sobre meia esfera – já basta;
mas observando o seu bagaço
que parece mais um esqueleto
vejo que carrega consigo um segredo
de alguma alquimia essencial:
estrutura, areia, água e sal.

As algas em algumas
cobrindo as cascas como heras
dão a elas o aspecto de velhas
e de fato são:
não flores vivas
mas antepassadas antecipações.






6.3.12

Bico de pena (21x29,5 cm)